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A evolução da fidelidade partidária na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

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O STF vem mudando o seu entendimento sobre a fidelidade partidária nos casos de desfiliação ou troca de partido político por mandatário eleito. Este trabalho analisa esse percurso jurisprudencial até a decisão na ADI 5081, de 2015.

RESUMO: O Supremo Tribunal Federal (STF) vem mudando o seu entendimento sobre a fidelidade partidária nos casos de desfiliação ou troca de partido político por mandatário eleito. Num primeiro momento, já no contexto da vigente Constituição, a evolução da jurisprudência do STF operou-se apenas em relação aos mandatos derivados do sistema proporcional, uma vez que a perda da investidura política decorreria do próprio sistema representativo previsto – implicitamente - na Constituição da República. Não muito tempo depois, decidindo pela constitucionalidade de normativas do Tribunal Superior Eleitoral, parecia ter endossado a posição daquele tribunal no sentido de que a desfiliação partidária ou a troca de agremiação sem justa causa implicaria também a perda dos mandatos conquistados em eleições majoritárias. Contudo, quanto aos últimos, recentemente, em decisão prolatada em sede de ADI, a Corte Constitucional, redesenhando o instituto, reafirmou a possibilidade de o mandatário trânsfuga, quando detentor de cargo eletivo decorrente do sistema majoritário, manter a investidura.

Palavras- chave: Fidelidade Partidária; mudança de partido; Supremo Tribunal Federal.


A Constituição Federal e a fidelidade partidária

No regime constitucional brasileiro o partido político assume destacada posição. É que, entre nós, pode postular candidatura a cargo eletivo apenas quem é – como condição típica de elegibilidade – filiado a partido  (artigo 14, § 3º, inciso V, da Constituição Federal). Diante da imprescindibilidade da filiação a partido para o exercício da capacidade eleitoral passiva, o estudo do instituto da fidelidade partidária emerge com superlativa importância.

A fidelidade partidária, expressando o vínculo fiduciário entre o detentor do mandato eletivo e seu respectivo partido político, ostenta caráter dúplice. Reportando-se à dimensão exigente de lealdade ao estatuto, programas e diretrizes legitimamente estabelecidas pelo partido, tal como disciplinado no art. 17, §1º, da Constituição Federal, a quebra da fidelidade autoriza, no caso de descumprimento pelo mandatário, aplicação de sanção decidida pela própria agremiação política. Uma segunda dimensão supõe o compromisso de permanência no partido daquele que tenha sido eleito por ele, significando isso que, à luz da jurisprudência do STF, inocorrente justa causa, a troca de partido implica perda do mandato. Esta dimensão da fidelidade partidária não se confunde com aquela, sobretudo por que as consequências de uma e outra são distintas.[3] O presente estudo cuida apenas da segunda dimensão da fidelidade partidária.

A Constituição Federal de 1988, ao contrário da Constituição anterior (Emenda Constitucional 1/69), não disciplina expressamente a possibilidade da perda do mandato em função de infidelidade partidária (ROVANI; DUARTE PEREIRA, 1996, p. 35-39); (BISPO SOBRINHO, 1996, p. 60); (MOREIRA REIS, 1996, p. 185); (ANDRADA, 1997, p. 39); (JARDIM, 1994, p. 95). De acordo com a disciplina constitucional dos partidos políticos, conforme previsão do artigo 17, a estes é garantida a autonomia para a definição de seu desenho interno, disciplinando sua organização e funcionamento. Disso decorre a possibilidade dos partidos apresentarem suas próprias disposições normativas cuidando de sua estrutura e funcionamento. Aquilo que está implícito nesta liberdade é a autonomia para a formação de uma ordem interna democrática (SILVA, 2011, p. 407). Porém, se por um lado é garantida a referida liberdade para a organização dos partidos, não há previsão constitucional expressa para a perda do mandato por infidelidade partidária. Haverá perda do mandato, entretanto, na circunstância de cancelamento da filiação partidária ou troca de partido pelo mandatário, inocorrente hipótese de justa causa.

Manifesta-se, aqui, o segundo tipo de fidelidade partidária, insuscetível de autorizar sanção, constituindo, portanto, a perda do mandato decretada pela Justiça Eleitoral, nos termos do atual entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, simples consequência do nosso modelo de democracia representativa fortemente marcado pelo monopólio partidário das candidaturas aos cargos eletivos. A Constituição não trata, expressamente, reitere-se, deste segundo tipo de fidelidade. Cuidaria, entretanto, implicitamente nos termos da orientação jurisprudencial a propósito da matéria.

Assim, nos termos da Constituição de 1988, como, aliás, das anteriores, a democracia brasileira, ao lado das técnicas de participação direta da cidadania, erige-se a partir do conceito de mandato representativo. Ora, como preleciona José Afonso da Silva, o:

(...) mandato se diz político-representativo porque constitui uma situação jurídico-política com base na qual alguém, designado por via eleitoral, desempenha uma função política na democracia representativa. É denominado mandato representativo para distinguir-se do mandato de direito privado e do mandato imperativo. O primeiro é um contrato pelo qual o outorgante confere ao outorgado poderes para representá-lo em algum negócio jurídico, praticando atos em seu nome, nos termos do respectivo instrumento (procuração); nele o mandatário fica vinculado ao mandante, tendo que prestar contas a este, e será responsável pelos excessos que cometer no seu exercício, podendo ser revogado quando o mandante assim o desejar. O mandato imperativo vigorou antes da Revolução Francesa, de acordo com o qual seu titular ficava vinculado a seus eleitores, cujas instruções teria que seguir nas assembléias parlamentares; se aí surgisse fato novo, para o qual não dispusesse de instrução, ficaria obrigado a obtê-la dos eleitores antes de agir; estes poderiam cassar-lhe a representação. Aí o princípio da revogabilidade do mandato imperativo. O mandato representativo é criação do Estado liberal burguês, ainda como um dos meios de manter distintos Estado e sociedade (...). Segundo a teoria da representação política, que se concretiza no mandato, o representante não fica vinculado aos representados, por não se tratar de uma relação contratual; é geral, livre, irrevogável em princípio, e não comporta ratificação dos atos do mandatário (SILVA, 2011, p. 138-139).[4]

No Brasil, portanto, é possível afirmar que o exercício do mandato decorre dos poderes conferidos pela Constituição, capazes de garantir a autonomia do mandatário que vai se sujeitar aos ditames de sua consciência, ao programa partidário e às diretrizes legítimas estabelecidas pelo partido através de órgão competente. O mandato, portanto, compondo espécie de condomínio, é, a um tempo, do partido e do parlamentar, ou melhor, é do parlamentar em função do partido, sendo certo que o representante eleito, observado o estatuto e programa partidários, assim como as diretrizes legitimamente adotadas pela agremiação, mantendo lealdade, o exerce com ampla margem de liberdade.[5]

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É a opção pelo mandato representativo que atrela o exercício da representação com as “exigências deliberativas” do Estado Democrático Constitucional. Não haveria espaço para deliberação democrática na vigência do mandato imperativo. Todavia, e esse é um risco, a forte configuração do regime de fidelidade partidária pode empurra a prática representativa para o campo próximo do mandato imperativo. Para Eneida Desiree Salgado: “Essa concepção de Parlamento como órgão de deliberação não se coaduna com um mandato vinculado, em que os representantes políticos recebem instruções, de seu eleitorado ou do seu partido, e manifestam-se estritamente no sentido predeterminado, sendo impossibilitados de refletir sobre os outros argumentos apresentados” (SALGADO, 2010, p. 71).

Assim, no tocante à fidelidade partidária, há uma tensão que envolve (i) a natureza do mandato (princípio da democracia representativa), (ii) a liberdade de consciência (direito fundamental) e, finalmente, (iii) o princípio da fidelidade partidária, considerada esta enquanto lealdade ao partido. Cumpre encontrar solução prestante de deferência simultânea aos termos em tensão. Deve o intérprete, portanto, manejando técnica adequada (concordância prática ou ponderação), harmonizar ou resolver o quadro de tensão. Por isso, a fidelidade partidária não pode ser aplicada de qualquer modo, significando a vulneração dos demais termos da equação referidos.

A violação da primeira dimensão, observado o devido processo legal, autoriza a aplicação de sanção, inclusive a expulsão se prevista nas disposições normativas internas do partido. Substancia, portanto, hipótese de infidelidade-sanção. No segundo caso – foco desta análise- não haveria propriamente emergência de sanção, como pretende a orientação jurisprudencial do STF e do TSE, mas antes a perda do mandato por exigência do sistema.

Manifestações do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal proporcionaram o plano de fundo desse entendimento no tema da fidelidade partidária. Cabe, então, delinear a evolução dessas posições e como a questão se apresenta atualmente.

O entendimento do Supremo Tribunal Federal: notícia de um giro jurisprudencial

Promulgada a vigente Lei Fundamental, de início, o STF, julgando o mandado de segurança n. 20.927, em 1989, relatado pelo Ministro Moreira Alves,[6] posicionou-se no sentido de que a fidelidade partidária não autorizava a perda do mandato do parlamentar que mudasse do partido político pelo qual se elegeu. Essa orientação permaneceu por quase 20 anos.

Em 27 de março de 2007, o TSE, inaugurando nova orientação, concluiu que o mandato pertence ao partido político e não ao parlamentar. Assim, em relação a Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores, a migração partidária poderia implicar  a perda do mandato. O entendimento foi exarado na resposta à Consulta n. 1.398.[7] O pronunciamento causou alarde por sua inovação, substanciando verdadeira mutação constitucional, originando a Resolução n. 22.526, de 27 de março de 2007. Para o Relator, Ministro Cezar Asfor Rocha,

(...) não há nenhuma dúvida, quer no plano jurídico, quer no plano prático, que o vínculo de um candidato ao Partido pelo qual se registra e disputa uma eleição é o mais forte, se não o único, elemento de uma identidade política, podendo ser afirmado que o candidato não existe fora do Partido Político e nenhuma candidatura é possível fora da bandeira partidária. Por conseguinte, parece-me equivocada e mesmo injurídica a suposição de que o mandato político eletivo pertence ao indivíduo eleito, pois isso equivale a dizer que ele, o candidato eleito, se teria tornado senhor e possuidor de uma parcela da soberania popular (...). Creio que o tempo presente é o da afirmação da prevlaência dos princípios constitucionais sobre as normas de organização dos Partidos Políticos (...)

Na mesma ocasião, o Ministro Cezar Peluso afirmou “que os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando, sem justificação nos termos já expostos, ocorra cancelamento de filiação ou e transferência de candidato eleito para outra legenda.” Nesse viés, concluiu que a relação entre candidato e partido deve manter-se enquanto perdurar o mandato partidário assumido pelo representante sob os auspícios do partido. Isso porque o mandato teria caráter inequivocamente partidário. Afirmou o Ministro: “Afere-se, aqui, não a fidelidade partidária, mas a fidelidade ao eleitor!”. O único voto vencido foi subscrito pelo Ministro Marcelo Ribeiro que se baseou na inexistência de norma constitucional ou infraconstitucional determinando a perda do mandato por mudança de partido.

No pronunciamento do TSE sobre a matéria (Resolução 22.526, de 27 de março de 2007, em resposta à Consulta n. 1.398), já restava evidenciada a circunscrição do novel regime aos casos de infidelidade envolvendo migração partidária (transfuguismo partidário). Do voto do Ministro Cezar Peluso se extrai o seguinte: “os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando, sem justificação nos termos já expostos, ocorra cancelamento de filiação ou a transferência de candidato eleito para outra legenda.”

Em 1º de agosto de 2007, respondendo a consulta, o TSE novamente se pronunciou sobre o tema, agora por meio da Resolução n. 22.563. A Consulta n. 1.423 foi formulada nos seguintes termos: “(...) os Deputados Federais e Estaduais que trocaram de partido político que os elegeram e ingressarem em outro partido da mesma coligação, perdem os seus respectivos mandatos legislativos?”. Por unanimidade, os Ministros reiteraram que “O mandato é do partido e, em tese, o parlamentar o perde” ao ingressar em nova agremiação, ainda que inegrante da mesma coligação. Posteriormente, por meio da Resolução n. 22.580, de 30 de agosto de 2007, o TSE confirmou o entendimento.

Após esses precedentes, sobreveio manifestação do Supremo Tribunal Federal. Em 04 de outubro de 2007, a Colenda Corte, reconstruindo a sua compreensão sobre a matéria, confirmando o giro hermenêutico operado no TSE, decidiu que a infidelidade partidária pode levar à perda do mandato. O Partido Popular Socialista (PPS), o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Democratas (DEM) apresentaram à Mesa da Câmara dos Deputados, com base nas Resoluções do TSE, pedidos de declaração da vacância dos mandatos dos Deputados Federais que haviam mudado de partido. O Presidente da Câmara dos Deputados indeferiu os requerimentos e contra essa decisão se voltaram as agremiações por meio de mandados de segurança impetrados perante o Supremo Tribunal Federal (MS 26.602, Rel. Min. Eros Grau; MS 26.603, Rel. Min. Celso de Mello; e MS 26.604, Rel. Min. Cármen Lúcia).[8] O STF, por maioria, confirmou a posição do TSE proferida na resposta à Consulta n. 1.398.

 Como o candidato é eleito por meio do partido, o patrimônio dos votos no sistema proporcional é atributo do partido, e não do candidato. A prescrição dessa fronteira, além de fundamentar algumas Resoluções posteriores,[9] foi materilizada na Resolução n. 22.610, a qual disciplina o procedimento de perda de cargo eletivo e aquele de justificação de desfiliação partidária. Conforme a Resolução, a desfiliação partidária sem justa causa é a única hipótese hábil a ensejar ação de perda de mandato (art. 1º, caput). Ademais, também nos mandados de segurança ns. 26.602, 26.603 e 26.604[10] e nas ADIs 3.999 e 4.086,[11] restou assentado pelo Supremo Tribunal Federal que os partidos políticos têm direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral se, salvo justificativa legítima, o candidato eleito cancelar sua filiação partidária ou transferir-se para legenda diversa, a partir da data da Resolução do TSE. Do mesmo modo, estabeleceu-se que essas hipóteses de perda de mandato por migração e desfiliação partidária voluntária não configuram sanção, mas, sim, decorrência lógica do regime jurídico da fidelidade partidária, pois se vive, no Brasil, uma “democracia partidária”. 

Em 16 de outubro de 2007, pouco depois do giro hermenêutico  do Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral voltou a se manifestar sobre o tema. Os Ministros do TSE definiram que Senadores, Prefeitos, Vice-Prefeitos, Governadores, Vice-Governadores, Presidente da República e Vice-Presidente que mudarem de legenda, após as eleições, também poderiam perder seus mandatos. A orientação consta da Resolução n. 22.600 do TSE, fruto da Consulta n. 1.407.

Com base nos entendimentos aqui listados, em 25 de outubro de 2007, o TSE aprovou a Resolução 22.610, disciplinando o processo de perda de cargo eletivo e de justificação de desfiliação partidária. O Supremo Tribunal Federal, em 12 de novembro de 2008, ao julgar improcedentes duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.999 e 4.086) que impugnaram as Resoluções n. 22.610 e 22.733, do TSE, as quais – repise-se - disciplinaram o processo de perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa, reconheceu a validade temporária das regras criadas pela Justiça Eleitoral até que o Congresso Nacional edite lei a respeito do tema.

Tudo permaneceu assim até o corrente ano. Com efeito, julgando a ADI 5.081[12] o STF decidiu que a perda do mandato em razão de mudança de partido não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário, argumentando que a hipótese violaria a soberania popular e as escolhas feitas pelo eleitor. Veja-se a ementa do julgamento:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÃO Nº 22.610/2007 DO TSE. INAPLICABILIDADE DA REGRA DE PERDA DO MANDATO POR INFIDELIDADE PARTIDÁRIA AO SISTEMA ELEITORAL MAJORITÁRIO. 1. Cabimento da ação. Nas ADIs 3.999/DF e 4.086/DF, discutiu-se o alcance do poder regulamentar da Justiça Eleitoral e sua competência para dispor acerca da perda de mandatos eletivos. O ponto central discutido na presente ação é totalmente diverso: saber se é legítima a extensão da regra da fidelidade partidária aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário. 2. As decisões nos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604 tiveram como pano de fundo o sistema proporcional, que é adotado para a eleição de deputados federais, estaduais e vereadores. As características do sistema proporcional, com sua ênfase nos votos obtidos pelos partidos, tornam a fidelidade partidária importante para garantir que as opções políticas feitas pelo eleitor no momento da eleição sejam minimamente preservadas. Daí a legitimidade de se decretar a perda do mandato do candidato que abandona a legenda pela qual se elegeu. 3. O sistema majoritário, adotado para a eleição de presidente, governador, prefeito e senador, tem lógica e dinâmica diversas da do sistema proporcional. As características do sistema majoritário, com sua ênfase na figura do candidato, fazem com que a perda do mandato, no caso de mudança de partido, frustre a vontade do eleitor e vulnere a soberania popular (CF, art. 1º, parágrafo único; e art. 14, caput). 4. Procedência do pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade.
 

Relatada pelo Ministro Roberto Barroso, a posição da Corte Suprema entendeu inconstitucional a expressão “ou vice”, do art. 10, e a parte final do art. 13 (“e, após 16 (dezesseis) de outubro corrente, quanto a eleitos pelo sistema majoritário”), ambos da Resolução n. 22.610/2007.[13] Ademais, acordou-se a interpretação conforme a Constituição do termo “suplente”, previsto no art. 10, com a finalidade de excluir do seu alcance os cargos do sistema majoritário.

As razões do acórdão determinaram que, conquanto a Resolução n. 22.610 já tivesse sido objeto de controle perante a Corte, o tribunal apenas tratara da constitucionalidade formal da Resolução do TSE. Do mesmo modo, segundo o novel precedente, a questão dos cargos eletivos do sistema majoritário não fora aventada anteriormente. De acordo com o Ministro Barroso, “A coisa julgada e a causa de pedir aberta no controle abstrato não devem funcionar como mecanismos para impedir a análise de questões constitucionais não apreciadas sobre o respectivo ato normativo. (...) A validade formal do diploma legal não garante imunidade a vícios de natureza material, e não se pode realisticamente supor que o Tribunal irá antever todos os possíveis vícios de inconstitucionalidade material nestas hipóteses.”

Assim, “a perda do mandato, em razão de mudança de partido por candidato eleito pelo sistema proporcional, decorre logicamente da Constituição para que se preserve a soberania popular e as escolhas feitas pelo eleitor. Essa proposição é a que se extrai daqueles mandados de segurança anteriores que o Supremo julgou. Em seguida, eu acrescento: a mesma lógica não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário, sob pena de violação da soberania popular e das escolhas feitas pelo eleitor.”

Dessa forma, continua o Ministro, “no sistema majoritário a ‘regra da fidelidade partidária’ não consiste em medida necessária à preservação da vontade do eleitor, como ocorre no sistema proporcional, e, portanto, não se trata de corolário natural do princípio da soberania popular (arts. 1º, parágrafo único e 14, caput, da Constituição).”

Daí que o desenho constitucional de fortalecimento dos partidos políticos não se sobrepõe à vontade do eleitor, que, no sistema majoritário, vota na pessoa do candidato, conforme o art. 77, §2º, da Constituição.  Afinal, para o Ministro Barroso, “não parece certo afirmar que o constituinte de 1988 haja instituído uma ‘democracia de partidos’. Com efeito, o art. 1º, parágrafo único da Constituição é inequívoco ao estabelecer a soberania popular como fonte última de legitimação de todos os poderes públicos.”

Portanto, a Resolução n. 22.610, em seus artigos 10 e 13, ao igualar os dois sistemas eleitorais - o proporcional e o majoritário - violou, para o STF, o núcleo do princípio democrático de que faz parte a soberania popular porque desvirtua a vontade concretizada nos pleitos. Esse novíssimo entendimento foi exarado no julgamento de 27 de maio de 2015, com acórdão publicado em agosto do mesmo ano, e modificou, como se viu, a posição estabelecida pelo TSE em 2007.

A fidelidade partidária e a nova Lei da Minirreforma eleitoral

Entretanto, a publicação da Lei n. 13.165, em 29 de setembro de 2015, pode trazer à tona nova interpretação à recente posição da Suprema Corte. Conhecida como Lei da Minirreforma Eleitoral, ela alterou diversos dispositivos da legislação eleitoral, incluindo a Lei dos Partidos Políticos (9.096/95). Sobre o tema da fidelidade partidária, a inclusão do artigo 22-A, além de inaugurar nova hipótese de justa causa (inc. III), suprimiu duas hipóteses de justificação, previstas na Resolução/TSE 22.610, para fins de não decretação de perda do mandato pela Justiça Eleitoral em razão da transmigração partidária.   

Consoante afirmado, enquanto não sobrevinha lei disciplinando o tema, o Tribunal Superior Eleitoral, em observância ao que havia sido decidido pelo Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança n. 26.602, 26.603 e 26.604, expediu a Resolução n. 22.610  com a finalidade de regulamentar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária.  Nessa Resolução, constavam como justa causa, aptas a legitimar a saída do mandatário do partido pelo qual se elegeu, as seguintes hipóteses: (i) incorporação ou fusão de partido; (ii) criação de novo partido; (iii) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; e (iv) grave discriminação pessoal. 

Com o advento da nova lei, duas hipóteses acima citadas não mais subsistem como causas justificadoras da desfiliação partidária. São elas: a incorporação ou fusão de partido e a criação de novo partido. Contudo, houve o acréscimo de uma hipótese de justa causa pela que, de certo modo, flexibilizou a transmigração partidária. Tal hipótese, prevista no art. 22-A, inc. III, da Lei n. 9.096/95, consiste na chamada “janela”.[14]

Consoante estabele o mencionado dispositivo, considera-se como justa causa para a desfiliação partidária a mudança de partido efetuada durante o período de trinta dias que antecede o prazo de filiação exigido em lei para concorrer à eleição, majoritária ou proporcional, ao término do mandado vigente. Ou seja, a partir de então, durante os 30 (trinta dias) que antecedem o prazo limite de filiação para que seja possível lançar candidatura[15], o mandatário que se encontra no fim do mandato em curso – esta é uma das condições - poderá migrar, livremente, de partido sem risco de perder o mandato. 

Ao que parece, ainda que o instituto da fidelidade partidária tenha reafirmado sua relevância para o sistema jurídico, porquanto o Congresso Nacional editou lei disciplinando a temática, é possível afirmar que o Legislador optou por estabelecer mecanismo – a exemplo da “janela” – autorizando mais maleabilidade à transmigração partidária. Contudo, vale repisar, a flexibilidade permitida não afasta, em razão dos requisitos a serem preenchidos para fruição dessa prerrogativa, a regra da fidelidade ao partido que elegeu determinado parlamentar.[16] Cumpre verificar, agora, o que dirá o Supremo Tribunal Federal, quando e se provocado, a propósito da compatibilidade da “janela” criada pela nova lei com as exigências constitucionais da democracia representativa, particularmente na situação dos mandatos eletivos conquistados pelo sistema proporcional.

Sobre os autores
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Ana Carolina de Camargo Clève

Professora de Direito Constitucional e Eleitoral do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil). Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPr). Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Advogada na área de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin; CLÈVE, ANA CAROLINA DE CAMARGO, Ana Carolina Camargo Clève. A evolução da fidelidade partidária na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4492, 19 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43664. Acesso em: 22 dez. 2024.

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