4. LIMITES E CONDICIONANTES À ALTERAÇÃO DO AUXÍLIO-RECLUSÃO
Estabelecidas as premissas anteriores, resta perquirir acerca da viabilidade da extinção ou da alteração do auxílio-reclusão.
A princípio, numa análise açodada e superficial, não haveria óbice à extinção do benefício em tela, desde que operada mediante prévia reforma legislativa. E a reforma, se pretendida, haveria de se iniciar pela alteração do art. 201 da CF/88, o qual veicula a regra matriz da cobertura previdenciária, isto é, o núcleo dos riscos a serem cobertos pela Previdência Social, dentre os quais figura a subsistência dos dependentes do recluso.
Também caberia falar em diminuição da amplitude do benefício, mediante a adoção de critérios mais restritivos para a sua concessão. Para isso, em tese, bastaria a modificação da legislação infraconstitucional, a qual disciplina os requisitos para o deferimento do benefício, como, por exemplo, os critérios para a caracterização da baixa renda.
Desde que preservado o cerne da proteção previdenciária brasileira, nada impede que os benefícios, em espécie, sejam suprimidos ou restringidos, de modo a adequá-los à realidade sócio-econômica.
Não obstante, os benefícios correspondentes àqueles riscos sociais elencados na Constituição Federal, inclusive o auxílio-reclusão, já foram devidamente implementados pelo legislador infraconstitucional, como se infere da Lei nº 8.213/91. Assim, e considerando que a previdência social é um dos direitos sociais expressamente previstos na Constituição (art. 6º), os quais são caracterizados como direitos fundamentais, o princípio da vedação do retrocesso social inviabiliza a supressão, ou mesmo a restrição, pura e simples da referida cobertura previdenciária. A mera subtração do auxílio-reclusão da ordem jurídica, ou mesmo a diminuição de seu âmbito de abrangência, poderia caracterizar um retrocesso legislativo na seara dos direitos sociais.
Uma proposta de extinção ou mitigação do benefício previdenciário, desse modo, deve ser devidamente justificada e, quando cabível, acompanhada de medida alternativa ou compensatória. A justificativa há de ser efetiva, baseada em “dados confiáveis que indiquem a ineficácia da medida social e as vantagens que a sua revogação trará”.[29] Outrossim, “é preciso considerar sempre a proporcionalidade da medida restritiva e o respeito ao princípio da proteção da confiança”.[30] A mesma proporcionalidade deve ser observada quanto às medidas alternativas ou compensatórias, sob pena de enfraquecer a cobertura previdenciária amplamente considerada e, ipso facto, gerar o indesejado regresso nas conquistas sociais da população.
O auxílio-reclusão, como visto, é um benefício destinado a pessoas de baixa renda, muitas vezes marginalizadas em razão de sua condição sócio-econômica, e que se veem temporariamente desprovidas da renda propiciada pelo seu mantenedor. Uma proposta de emenda constitucional ou de alteração legislativa que não preveja qualquer medida compensatória ou alternativa ao amparo atualmente concedido, ou que não demonstre, concretamente, eventual desvirtuamento da finalidade do auxílio-reclusão, deve ser rechaçada de plano. Há de se avaliar, ainda, a proporcionalidade de uma medida substitutiva, evitando-se o amesquinhamento da proteção previdenciária. Da mesma forma, premissas retóricas ou equivocadas, sem qualquer respaldo em dados concretos e de reconhecida idoneidade, obviamente não se prestam a infirmar o benefício previdenciário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O auxílio-reclusão é um benefício social, de cunho previdenciário, destinado aos dependentes do segurado de baixa renda, contribuinte do Regime Geral de Previdência Social. Os direitos previdenciários, por seu turno, são espécie dos direitos sociais (art. 6º da CF/88). Já os direitos sociais integram os chamados direitos fundamentais ou individuais.
Dada essa equiparação com os direitos individuais, os direitos sociais – dentre os quais figuram os direitos previdenciários – não podem ser reduzidos ou excluídos mediante emenda constitucional, estando materialmente protegidos pelas denominadas “cláusulas pétreas” (art. 60, §4º, da CF). Não bastasse isso, os direitos sociais, por traduzirem conquistas históricas diretamente atreladas à dignidade da pessoa humana, uma das bases do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III, da CF/88), estão acobertados também pelo princípio da vedação do retrocesso.
O princípio da proibição do retrocesso não torna a Constituição e as normas infraconstitucionais imutáveis. Apenas impede que as conquistas sociais existentes sejam suprimidas ou mitigadas, zelando pelo o núcleo dos direitos sociais já realizado. Nesse passo, as medidas que tenham por finalidade suprimir ou reduzir direitos sociais já concretizados devem vir acompanhadas de (i) justificativa, amparada em dados concretos e confiáveis, que demonstre a ineficácia do direito social em questão e as vantagens oriundas de sua revogação; ou de (ii) dispositivos compensatórios ou alternativos, preferencialmente mais eficazes na promoção do bem-estar social.
A princípio, nada impede a extinção ou a alteração do auxílio-reclusão. Entretanto, tratando-se de benefício previdenciário já devidamente implementado pelo legislador infraconstitucional, bem como a sua natureza jurídica (direito social), aplica-se às investidas legislativas o princípio da vedação do retrocesso.
Assim, eventuais propostas de emenda constitucional ou de alteração legislativa que não prevejam qualquer medida compensatória ou alternativa ao amparo atualmente concedido, ou que não demonstrem, concretamente, o desvirtuamento da finalidade do auxílio-reclusão, devem ser rechaçadas de plano. Caso apresentem medidas substitutivas, estas devem ser proporcionais à supressão ou à redução do auxílio-reclusão, evitando-se o amesquinhamento da proteção previdenciária. Premissas retóricas ou equivocadas, sem qualquer respaldo em dados concretos e de reconhecida idoneidade, também não se prestam a infirmar o benefício previdenciário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
GARCIA, Sérgio Renato Tejada. O princípio da vedação de retrocesso na jurisprudência pátria - análise de precedentes do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Regionais Federais e da Turma Nacional de Uniformização. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 36, jun. 2010. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao036/sergio_tejada.html> Acesso em: 29 jul. 2014.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
PIOVESAN, Flávia. Proteção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Consultor Jurídico, 26 de agosto de 2002. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2002-ago-26/direitos_economicos_sociais_culturais_desafios?pagina=4>. Acesso em: 19 nov. 2014.
SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público n. 9, março/abril/maio, 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 19 set. 2014.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000.
VIANNA, João Ernesto Aragonés. Curso de Direito Previdenciário. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
Notas:
[1] Na redação originária da Constituição Federal, a cobertura previdenciária da “reclusão” estava prevista no inciso I do art. 201. Com a Emenda Constitucional nº 20, de 1998, passou a constar do inciso IV do mesmo dispositivo, ocasião em que também se estipulou expressamente na Constituição que o benefício do auxílio-reclusão teria destinado aos “dependentes dos segurados de baixa renda”.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público n. 9, março/abril/maio, 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>. Acesso em: 19 set. 2014.
[3] “Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (...) IV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; (...)”
[4] VIANNA, João Ernesto Aragonés. Curso de Direito Previdenciário. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 555.
[5] “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010). Ressalte-se, por oportuno, que a previdência social já constava da redação originária do art. 6º da CF.
[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 289-290.
[7] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 26.
[8] MORAES, Alexandre de. Ob. cit. p. 653.
[9] PIOVESAN, Flávia. Proteção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Consultor Jurídico, 26 de agosto de 2002. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2002-ago-26/direitos_economicos_sociais_culturais_desafios?pagina=4>. Acesso em: 19 nov. 2014.
[10] “Art. 60. (...)
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.”
[11] MORAES, Alexandre de. Ob. cit. p. 653.
[12] MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 199. p. 95, apud MORAES, Alexandre de. Ob. cit. p. 654.
[13] SILVA, José Afonso da. Ob. cit. p. 69.
[14] SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit.
[15] Idem, ibidem.
[16] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 338-339.
[17] PIOVESAN, Flávia. Ob. cit.
[18] Idem, ibidem.
[19] SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit.
[20] GARCIA, Sérgio Renato Tejada. O princípio da vedação de retrocesso na jurisprudência pátria - análise de precedentes do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Regionais Federais e da Turma Nacional de Uniformização. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 36, jun. 2010. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao036/sergio_tejada.html> Acesso em: 29 jul. 2014.
[21] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit. p. 340.
[22] GARCIA, Sérgio Renato Tejada. Ob. cit.
[23] Idem, ibidem.
[24] Idem, ibidem.
[25] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 1.946/DF. Relator: Ministro Sydney Sanches. Julgamento: 03 abr. 2003. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Diário da Justiça, 16 mai. 2003. p. 90.
[26] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 2.065/DF. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, Relator para o acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Julgamento: 17 fev. 2000. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Diário da Justiça, 04 jun. 2004. p. 28. Sem destaque no original.
[27] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 3.128/DF. Relatora: Ministra Ellen Gracie, Relator para o acórdão: Ministro Cezar Peluso. Julgamento: 18 ago. 2004. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Diário da Justiça, 18 fev. 2005. p. 4.
[28] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 639.337/SP. Relator: Celso de Mello. Julgamento: 23 ago. 2011. Órgão Julgador: Segunda Turma. Diário da Justiça Eletrônico, 14 set. 2011.
[29] GARCIA, Sérgio Renato Tejada. Ob. cit.
[30] SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit.