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Indispensabilidade do inquérito policial

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Agenda 12/01/2016 às 11:32

Em que pesem as críticas que recaem sobre o inquérito policial, bem como a possibilidade em tese de se ofertar a peça acusatória sem a investigação policial prévia, busca-se explicar as razões de ser um procedimento indispensável na persecução penal.

 O inquérito policial é certamente um dos mais questionados mecanismos estatais de persecução penal, não faltando especialistas e principalmente leigos que lhe atribuam a culpa por todas as mazelas da instrução criminal. A maioria das discussões envolvendo esse procedimento policial é movida antes pela emoção do que por conhecimentos teóricos e empíricos da matéria.

O bombardeio de críticas infundadas não impede o reconhecimento de falhas. Aliás, a persecução penal como um todo, o que abrange não apenas a investigação preliminar, mas também o processo penal, carece de maior efetividade e celeridade, não sendo esse defeito uma exclusividade do inquérito policial. Todavia, a necessidade de melhorias não afasta os necessários elogios ao fundamental papel que exerce num sistema processual penal que se pretenda garantista e democrático.

A par das censuras, fundadas ou descabidas, o fato é que não por acaso esse procedimento policial vem atravessando os séculos como o mecanismo central do Estado para a apuração da verdade na fase pré-processual. Desde a Lei 2.033/1871 e o Decreto 4.824/1871, consolidou-se o inquérito policial como principal instrumento de investigação criminal. Nem o advento da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95), que abriu espaço para o termo circunstanciado de ocorrência, acarretou a perda de seu protagonismo.

O inquérito policial consiste em importante ferramenta de proteção de direitos fundamentais e produção de elementos informativos e probatórios[1], levado a cabo pela Polícia Judiciária, durante prazo razoável[2] e com incidência mitigada dos postulados do contraditório e ampla defesa.[3] Cuida-se de procedimento eminentemente administrativo (ou processo administrativo penal[4]), o que não exclui o fato de comumente se revestir de alguma judicialidade, expressa na necessária intervenção do Judiciário quanto às medidas restritivas de direitos fundamentais acobertadas sob o mando da cláusula de reserva de jurisdição.

Não se trata de mecanismo unidirecional, como quer fazer parecer parte da doutrina ao iluminar apenas função preparatória, de colheita e acautelamento de provas para que o titular da ação penal ingresse em juízo. Além dessa finalidade subsidiária, que nem sempre ocorre (já que as investigações podem levar à reunião de elementos exclusivamente em favor da defesa), existe a missão preservadora, que é a principal, de inibição da instauração de processo penal temerário, resguardando a liberdade do investigado e evitando custos estatais desnecessários.[5]

Essa garantia do cidadão, no sentido de que não será processado temerariamente nem punido arbitrariamente, é tão latente que foi expressa na exposição de motivos do CPP, ao destacar que o inquérito policial traduz uma salvaguarda contra apressados e errôneos juízos, formados antes que seja possível uma precisa visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Pertence ao caderno apuratório, e não à fase intermediária de formulação e recebimento da denúncia,[6] o verdadeiro papel de evitar acusações infundadas.

Nessa perspectiva, a instrução preliminar pode ser vislumbrada como a ponte que liga a notitia criminis ao processo penal[7]. Retrata a transição do juízo de possibilidade para probabilidade, que autoriza o indiciamento pelo Delegado de Polícia e a decretação de medidas cautelares e o recebimento da denúncia pelo juiz, ou, de outro lado, a confirmação da completa ausência de justa causa.

Se o processo penal pode ser tomado como um instrumento em prol da aplicação do direito objetivo, o inquérito policial, que ampara o processo, denota uma instrumentalidade qualificada.[8] Nesse ponto, cabe sublinhar que essa instrumentalidade de segundo grau não afeta a natureza garantista da investigação preliminar, porquanto não se pode negar que se trata de formidável ferramenta de tutela de direitos fundamentais, não só da vítima e das testemunhas, mas do próprio investigado.[9]

A deflagração de um processo penal e a imposição de sanção estatal não podem ser atos automáticos e açodados. Nesse sentido, o inquérito policial materializa a via pavimentada a ser percorrida pelo Estado para que a atuação restritiva na esfera de liberdades públicas do cidadão não se convole em arbítrio.

Por isso mesmo sustenta a doutrina que o processo penal sem a investigação preliminar é um processo irracional, uma figura inconcebível e monstruosa que abala os postulados garantistas.[10] No mesmo sentido, afirmamos anteriormente[11] que a investigação preliminar é o ponto de partida para uma persecução penal bem sucedida, que atenda ao interesse da sociedade de elucidar crimes sem abrir mão do respeito aos direitos mais comezinhos dos investigados.

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De fato, há que se reconhecer que no bojo do inquérito policial ocorrem grande parte das restrições às liberdades individuais do investigado, seja por decisão do Delegado de Polícia[12], seja por ordem judicial[13]. Como grifa a doutrina:

Não se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medida assecuratórias), ou seja, com base nessa peça “meramente informativa” (como reducionistamente foi rotulada ao longo de décadas), podemos retirar o “eu” e “minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset)...

Sem falar que também serve para condenar pessoas... Ou não? Na medida em que o artigo 155 do CPP autoriza (gostemos ou não) que o juiz se baseie também no inquérito para condenar (não pode é ser “exclusivamente”...o que representa uma fraude conceitual evidente), é claro que ele acaba adquirindo valor probatório. Sem falar no tribunal do júri, em que (absurdamente) os jurados decidem por “íntima e imotivada” convicção. Leia-se: podem condenar exclusivamente com base no inquérito (e até fora dele e do processo...). Alguém vai seguir com o discurso de peça meramente informativa à luz dessa realidade?[14]

Com efeito, o Brasil adotou um sistema de investigação preliminar conduzido pela Polícia Judiciária, no qual avulta o inquérito policial presidido pelo delegado[15] natural[16] como a principal forma de se descortinar a realidade. Isto é, incumbe à Autoridade de Polícia Judiciária ditar os rumos da investigação criminal por meio dos diversos procedimentos policiais, seja através do inquérito policial, do termo circunstanciado de ocorrência ou da verificação preliminar de informações,[17] sem olvidar do boletim de ocorrência circunstanciado no caso de atos infracionais.

Daí a confirmação pelas Cortes Superiores de que a presidência do inquérito policial é incumbência exclusiva do Delegado de Polícia,[18] sendo vedado aos membros de outras instituições, a exemplo do Ministério Público, realizar e presidir o procedimento policial. A doutrina não diverge:

O inquérito policial é conduzido de maneira discricionária pela autoridade policial, que deve determinar os rumos das diligências de acordo com as peculiaridades do caso concreto. (...) O Delegado de Polícia, na qualidade de autoridade policial, continua conduzindo o inquérito policial de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico.[19]

O sistema de investigação preliminar policial caracteriza-se por encarregar à Polícia Judiciária o poder de mando sobre os atos destinados a investigar os fatos e a suposta autoria (...). É importante destacar que neste sistema a polícia não é um mero auxiliar, senão o titular (verdadeiro diretor da instrução preliminar), com autonomia para dizer as formas e os meios empregados na investigação e, inclusive, não se pode afirmar que exista uma subordinação funcional em relação aos juízes e promotores.[20]

Parece não haver dúvidas de que a instauração do inquérito policial é a principal forma de evitar acusações precipitadas. E por isso mesmo é comum que o Ministério Público, ao receber a notícia de um crime, ainda que já disponha de elementos suficientes para dar suporte à denúncia, prefira encaminhar os documentos à Polícia Judiciária, requisitando a instauração de inquérito policial. Essa providência nada mais é do que o reconhecimento da instrução preliminar como freio aos excessos da perseguição estatal, para que a persecução penal tenha início perante órgão imparcial antes que o órgão acusador tome frente. É bastante raro encontrar ações penais não precedidas de inquérito policial.

Não se esperaria outra postura do Órgão Acusador. A Polícia Judiciária é a instituição constitucionalmente vocacionada a presidir investigações criminais no Brasil[21]. Cuida-se de instituição sem compromisso com a acusação ou a defesa[22], e exatamente por isso o ordenamento jurídico outorgou a condução da instrução preliminar ao Delegado de Polícia. Ao presidir o inquérito policial, a Autoridade Policial deve agir com isenção e independência, garantindo os direitos fundamentais de todos os envolvidos e tendo como norte unicamente a busca da verdade.

E justamente por esse motivo, ainda que o Ministério Público possa propor a ação penal sem o inquérito policial, na esmagadora maioria dos casos o Parquet não abre mão desse filtro processual.

Não se desconhece que a doutrina[23] vem apregoando há décadas, amparada na literalidade de alguns dispositivos do CPP (arts. 12, 27, 39, §5º e 46, §1º), que o inquérito policial seria dispensável. Tais dispositivos, lidos apressadamente, levam à falsa percepção de que seria desnecessário o procedimento policial. Todavia, como visto, a exceção é que a ação penal não seja precedida do inquérito policial. Destarte, os estudiosos, baseando-se na extraordinária oferta de denúncia desacompanhada da instrução policial, transmudam a exceção em regra. Nessa esteira, mais adequado é aceitar a indispensabilidade do caderno investigatório.

De mais a mais, não se deve perder de vista que nos crimes de ação penal pública incondicionada a regra é a obrigatoriedade de instauração do inquérito policial (art. 5º do CPP), e este procedimento deve acompanhar a peça acusatória sempre que servir de suporte à acusação (art. 12 do CPP).

Destarte, admitir a importância e a imprescindibilidade do inquérito policial não é incompatível com o reconhecimento da possibilidade de imprimir mais eficácia e celeridade às investigações policiais. Da mesma maneira que a defesa do processo judicial como importante instrumento de tutela de direitos em nada prejudica a necessidade de se combater a morosidade processual.

Mister se torna modernizar os procedimentos policiais, algo que já é possível por intermédio da legislação hoje vigente, como por exemplo através da realização de atos por meio audiovisual (art. 405, §1º c/c art. 3º do CPP). Todavia, o comando legal não se tornará realidade sem investimentos suficientes.

Nesse diapasão, já se encontra superado o discurso daqueles que pretendem colocar o inquérito policial como bode expiatório para as máculas estruturais da Polícia Judiciária, transferindo para o procedimento policial a responsabilidade pelas nefastas consequências do descaso do Estado com a fase inicial da persecução penal, como se a eventual extinção do inquérito policial tivesse o poder de suprir a carência de políticas públicas estatais.

Beira a inocência ou a má-fé reduzir o problema da criminalidade à Polícia, mais especificamente à investigação criminal concretizada pelo inquérito policial. Enxergar a questão com essa visão distorcida cria campo fértil para propostas mirabolantes, tais como a militarização da investigação[24] ou a sua atribuição à parte acusadora. Precisa a observação doutrinária:

Lamentavelmente, em tempos atuais, talvez mais por fatores de conveniência política e interesses corporativos, há uma orquestrada anatematização (até mesmo em segmentos da doutrina pátria) do inquérito policial como peça de instrução penal preliminar, com argumentações pouco justificadas em rigor científico e amparadas unicamente nas deficiências estruturais e históricas das polícias judiciárias. Porém, sequer conseguem formular uma proposição alternativa que consolide a substituição do inquérito policial.[25]

Nesse prisma, o inquérito policial, principal procedimento investigativo pátrio, sobressai-se como imprescindível ferramenta de busca da verdade na persecução penal. A admissão de sua indispensabilidade não fecha as portas para as necessárias mudanças com o desiderato de modernizar e imprimir mais agilidade à investigação criminal, sem descurar da carta constitucional de liberdades individuais.

Parafraseando a célebre frase de Winston Churchill sobre a democracia, o inquérito policial é a pior de todas as formas de investigação preliminar, excetuando-se as demais.


Referências 

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Sobre o autor
Henrique Hoffmann

Professor e coordenador de pós-graduação do CERS. Autor de livros e coordenador de coleção pela Juspodivm. Colunista do Conjur e da Rádio Justiça do STF. Professor da Escola da Magistratura Mato Grosso, Escola da Magistratura do Paraná, Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e SENASP. Coordenador do IBEROJUR no Brasil. Mestre em Direito pela UENP. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF. Bacharel em Direito pela UFMG. Delegado de Polícia Civil do Paraná. Premiado como melhor Delegado de Polícia do Brasil na categoria jurídica. Publicou mais de 25 livros e 70 artigos, e proferiu mais de 60 palestras em 17 estados. www.henriquehoffmann.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Henrique Hoffmann. Indispensabilidade do inquérito policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4577, 12 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45166. Acesso em: 24 nov. 2024.

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