Leopoldo Heitor de Andrade Mendes era chamado de “advogado do diabo”. Muitos comentavam que conseguiu sair incólume em caso rumoroso, objeto de investigação no inquérito sobre falsificação de um cheque de dezoito milhões de cruzeiros; colaborou para a condenação do ex-tenente Alberto Franco Bandeira, acusado como autor do crime do Sacopã (assassinato do bancário Afrânio Arsênio de Lemos, em 1952); foi indiciado como autor de crime de latrocínio contra a milionária Dana de Teffé. E neste crime ainda se falava em ocultação de cadáver da vítima.
Dana de Teffé era uma tcheca que teve uma vida agitada. Ainda adolescente, perdeu os pais e a irmã na Segunda Guerra Mundial e fugiu para a Itália, onde seu primeiro marido também foi morto. Fugiu de novo para a Espanha, onde esteve casada por quatro anos. Depois da guerra, já separada, mudou-se para o México, onde se casou pela terceira vez. Dois anos depois já estava separada outra vez, e desembarcou no Brasil, onde se casou pela quarta vez e se separou pela terceira.
Tida como belíssima, culta, falando seis idiomas, Dana de Teffé gostava de coisas caras e requintadas. Sua última separação havia lhe rendido várias joias e um apartamento no Rio de Janeiro, mas ela não podia viver de renda para sempre, então teve vários empregos a partir de 1958.
Quando Dana se separou de seu último esposo, quem cuidou dos tramites burocráticos da separação foi Leopoldo Heitor, o advogado do diabo.
A milionária tcheca Dana Edita Fischerova de Teffé tinha 48 anos, e estava no Brasil há três, quando saiu do apartamento onde morava em Copacabana e entrou no carro do advogado Leopoldo Heitor Andrade Mendes, rumo a São Paulo, para nunca mais ser vista. Era 29 de junho de 1961, e ali começava um dos casos policias mais rumorosos do país, naquela década. Acusado de homicídio e ocultação de cadáver, sendo detido em 31 de março de 1962, Heitor disse que Dana estava sendo ameaçada por terroristas tchecos e que de São Paulo viajaria para a Europa. Em seu depoimento à polícia, contou que seu carro foi interceptado na altura de Angra dos Reis e que a milionária tinha sido sequestrada por espiões comunistas. Na primeira versão, disse que Dana de Teffé havia viajado para seu país, em busca de sua mãe, que estaria num asilo para velhos, fato que foi tido como não verdadeiro, logo após sua viagem a São Paulo.
O corpo de Dana nunca foi encontrado e o caso ficou sem solução. Heitor negou ser amante dela, mas tinha uma procuração em relação ao cuidado de seus bens. E fez uso do documento. Ele era advogado da vítima e do diplomata brasileiro Manoel de Teffé, o terceiro ex-marido de Dana. Em 4 de outubro de 1962, Heitor fugiu do Estado Maior da Polícia Militar, no Centro do Rio. Dez dias depois foi capturado em Mato Grosso.
Em fevereiro de 1963, Heitor foi condenado a 35 anos. Passou oito anos preso. Entre 1963 e 1971 acabou absolvido em outros três julgamentos. Por falta de provas, em 1974, o Supremo Tribunal de Justiça não autorizou a reabertura do processo. O crime prescreveu em 1981. Diga-se que chegou a ser condenado, mas o Supremo Tribunal Federal entendeu que o crime descrito era homicídio qualificado seguido de apropriação indébita (mas a apropriação dos bens de Dana somente ocorreu muito tempo depois de seu desaparecimento, e não antes, depois ou logo depois do suposto homicídio). Afastou-se a hipótese de latrocínio.
Leopoldo Heitor, um brilhante advogado, apresentou três versões para o caso. O Ministério Público entendeu que eram inverídicas todas elas. Dizia que ela fora sequestrada por comunistas (em outra versão disse que, na estrada, envolveu-se em luta com assaltantes). Falou que a sua viagem a São Paulo foi para que Dana fosse empregada na Olivetti, fato nunca provado.
O correto enquadramento para o fato era no tipo penal de latrocínio, onde se mata para roubar (artigo 157, parágrafo terceiro do CP). Em fevereiro de 1963, Leopoldo Heitor foi levado a julgamento por latrocínio e condenado a trinta e cinco anos pelo Juiz Ulysses Valadares, que entendeu haver “provas torrenciais” contra ele. O condenado recorreu ao Tribunal de Justiça que acatou a tese de que o enquadramento correto do fato seria pelo crime de homicídio qualificado e não latrocínio, razão pela qual seu julgamento foi anulado.
Por homicídio foi levado ao Tribunal do Júri em Rio Claro, cidade onde possuía amplo conhecimento da população, e lá foi absolvido.
Leopoldo Heitor morava no Rio de Janeiro e o homicídio teria ocorrido no seu sítio de Rio Claro, sul do Estado. Como coautor foi arrolado Hélio Soares Vinagre, que teria ajudado a matar e enterrar Dana no sítio e fora visto pelo caseiro Francisco da Silva, que depois disso, teria desaparecido.
Leopoldo Heitor voltou no dia seguinte ao do fato com um ferimento na perna (chegou a afirmar num depoimento que o ferimento na coxa teria sido causado por uma bomba junina) e uma história mirabolante: Dana havia encontrado um velho amigo da família dela em São Paulo e ele tinha lhe dito que sua mãe ainda estava viva. Dana havia partido, então, para a Europa ao encontro da mãe, não sem antes, claro, deixar uma procuração (que depois se provou ser falsificada) para que Leopoldo Heitor vendesse todos os seus bens para o custeio da viagem. Entendeu-se, na época das investigações, pela ilicitude da procuração outorgada por Dana ao acusado, em 30 de junho, para serem vendidos os seus imóveis, isso depois da morte dela, que teria ocorrido, segundo Leopoldo Heitor, em 29 de junho daquele ano de 1961.
Cinco meses depois da viagem, Leopoldo Heitor já havia vendido todos os bens de Dana, inclusive o apartamento do Rio de Janeiro, por preços bem abaixo do mercado. Ele apresenta claros sinais de enriquecimento, o que levantou as suspeitas de amigos de Dana e de Oscar Stevenson, advogado que havia sido amigo e sócio de Leopoldo Heitor.
A polícia, alertada por Stevenson, começou a investigar o sumiço de Dana de Teffé. A revista “O Cruzeiro” também entrou no caso e descobriu que não havia registro da saída de Dana do país e nem emprego algum para ela na Olivetti. A farsa de Leopoldo Heitor começava a cair.
Preso sem mandato, e supostamente torturado em 1962, Leopoldo Heitor contou uma história mirabolante: ao parar para consertar o carro na Via Dutra, trocou tiros com dois assaltantes, sendo Dana atingida mortalmente por uma bala perdida. Mesmo ferido, ele disse ter voltado ao Rio de Janeiro, onde mandou se desfazer do corpo com medo da repercussão negativa que ele traria.
Porém, uma testemunha de nome Chico, empregado de Leopoldo Heitor no seu sítio em Rio Claro, desmentiu o patrão e disse que ele havia enterrado o corpo de Dana no tal sítio. Uma ossada chegou a ser encontrada num local indicado por Chico, mas era de um cavalo.
Chico, talvez a mando de Leopoldo Heitor, mudava detalhes da história a cada novo depoimento. Mesmo com toda a confusão, e sem nenhum corpo para provar, Leopoldo Heitor foi formalmente indiciado como o assassino de Dana de Teffé. Aliás, na época, diversas pessoas telefonavam para a polícia dizendo que tinham visto, enterrado em terreno, o cadáver de Dana de Teffé. Na verdade, até ossada de cachorro foi encontrada. Veja-se como o caso envolveu a opinião pública. Quando criança, ao ler a revista “O Cruzeiro”, fiquei impressionado com o caso.
Enquanto aguarda julgamento, Leopoldo Heitor foi preso, mas fugiu em 05 de outubro de 1962, sendo recapturado 15 dias depois no Mato Grosso. Em novembro daquele mesmo ano ele foi ouvido pelo juiz e contou mais uma versão para o desaparecimento de Dana de Teffé: ela havia sido sequestrada e levada para a Europa com um nome falso, por isso não havia registro da sua saída. Enquanto aguardava a sentença, Leopoldo Heitor fugiu de novo. Julgado à revelia, em 16 de janeiro de 1963, foi condenado a 35 anos de prisão. Em agosto, foi encontrado na fronteira com o Uruguai e preso novamente.
De volta ao Rio de Janeiro, Leopoldo Heitor recorreu e conseguiu duas vitórias importantes: o direito de fazer a própria defesa e que o julgamento do caso ocorreria através de júri popular em Rio Claro, onde ele era muito popular.
Erros na investigação, um advogado brilhante, que soube envolver o Júri como ninguém, contribuíram para o desfecho do caso. O cadáver de Dana nunca fora encontrado.
Era um caso que se somava a outros como o dos irmãos Naves (condenados injustamente, com confissão sob tortura, por uma morte que nunca cometeram, pois a suposta vítima não havia morrido, mas se afastado do local), ou ainda de Elisa Samudio (durante as investigações, uma das testemunhas relatou aos investigadores do caso que a moça teria sido morta por estrangulamento. Em seguida, o cadáver teria sido esquartejado e enterrado sob uma camada de concreto).
Nas ocasiões em que não se encontra um cadáver, seria caso de exame de corpo delito indireto.
O exame do corpo de delito é direto ou indireto. O primeiro é aquele em que os peritos dispõem do próprio corpo de delito para analisar.
Já o exame do corpo de delito indireto é o realizado com a ajuda de meios acessórios, pois o corpo de delito não mais subsiste. Não sendo possível o corpo de delito direto, por estarem desaparecidos os vestígios da infração, supri-lo-á a prova testemunhal.
Estamos diante de prova pericial que é o exame procedido por pessoa que tenha conhecimento técnico científico em determinada área do conhecimento.
As perícias, em regra, são realizadas por um perito oficial, que integra os quadros do Estado, portador de diploma de nível superior (artigo 2º, Lei 12.030/09).
Fazendo a sua própria defesa diante dos “compadres” de Rio Claro, o brilhante advogado que era Leopoldo Heitor conseguiu a sua absolvição.
O primeiro júri realizou-se em 10 de abril de 1966 e Leopoldo foi absolvido por 6 votos a 1. No entanto, como a imprensa invadiu a sala secreta onde os jurados estavam votando o caso, o Promotor César Augusto de Farias pediu e conseguiu a anulação do julgamento.
O segundo julgamento pelo Tribunal do Júri foi em abril de 1969 e Leopoldo acabou novamente absolvido por 7 votos a 0. Na defesa estiveram o próprio Leopoldo e os advogados Rovane Tavares Guimarães e Eurico Rezende. Este último, na época, senador pela Aliança Renovadora Nacional, e, posteriormente, governador do Espírito Santo.
Leopoldo Heitor foi novamente julgado em Rio Claro, em janeiro de 1971, sendo absolvido por 4 votos a 3. Também desta vez, ele próprio fez sua defesa, juntamente com o advogado Rovane Tavares.
A tese do Ministério Público foi de que Leopoldo levara Dana até a fazenda e lá a matara, sumindo com o corpo e ficando com seus bens; mas prevaleceu a absolvição. O Promotor Nunes mostrou que havia um tiro na parede da sala da casa da fazenda e uma cova revolvida no cemitério da capela, onde o corpo havia sido posto e depois retirado. Além disso, Leopoldo era a última pessoa a ter visto Dana com vida. A argumentação da acusação, porém, de nada adiantou.
Quando do terceiro julgamento pelo Júri, em 1970, Leopoldo estava em prisão domiciliar. O Promotor de Rio Claro era, então, Inácio Nunes. Entendendo que não havia isenção dos jurados da Comarca para julgar Leopoldo, Nunes pediu o desaforamento para a Comarca de Niterói. O Tribunal de Justiça do Rio, porém, levou muito tempo para decidir sobre o pedido e, na data marcada para o julgamento, ainda não havia solução para o requerimento de desaforamento Quatro meses depois do último julgamento, a polícia foi informada por um ex-empregado de Leopoldo Heitor onde estaria enterrado o corpo de Dana de Teffé. Com, finalmente, um corpo para exibir, a polícia tentou reabrir o caso, mas o STF o rejeitou, por unanimidade, em 3 de dezembro de 1973. O advogado do diabo se safou mais uma vez.
Não se poderia reabrir o caso, pois não há, no Brasil, uma ação de revisão pro societate.
Em maio de 1966, Leopoldo Heitor lançou um livro sobre o caso, “A cruz do advogado do diabo”. Hélio Vinagre foi julgado em Rio Claro e foi absolvido por unanimidade.
Leopoldo Heitor morreu em 22 de fevereiro de 2001 vítima de infarto.
Fica o caso como um exemplo vivo para estudiosos do direito.