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A alegação de simulação como alternativa à tese de alienação fraudulenta de bens

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Agenda 09/03/2016 às 14:08

O devedor possui artifícios que geralmente escapam às sanções da lei, sendo a simulação alegação eficaz para esses casos. Detalhamos os instrumentos jurídicos mais utilizados para combater a alienação fraudulenta de bens.

RESUMO: Artigo que se propõe a analisar as condições em que ocorrem, no plano material, alienações (inclusive doações) de bens por devedores, insolventes ou em vias de insolvência, em prejuízo da Fazenda Pública. Demonstra que os recursos e instrumentos jurídicos costumeiramente utilizados para impedir tais fraudes não são suficientes, por contingências do próprio ordenamento jurídico, para evitar a dissipação de bens ou sua salvaguarda perante credores. Assevera a necessidade de se buscarem novos mecanismos para evitar tais operações maléficas, indicando como alternativa viável a alegação de simulação, instrumento previsto no Código Civil para infirmar atos que, embora não se enquadrem nos exatos termos da fraude à execução ou fraude contra credores, caracterizam blindagem patrimonial prejudicial aos credores.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil e Processual Civil. Fraude contra credores. Fraude à execução. Simulação. Fazenda Pública.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Blindagem patrimonial – conceito e identificação; 2. Os usuais instrumentos de combate à blindagem patrimonial; 2.1. Da Fraude contra Credores; 2.2. Da Fraude à Execução; 2.3. Da Doação Nula ou Ineficaz; 3. A alegação de simulação como alternativa; Considerações finais.


INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por base argumentação apresentada no bojo de execução fiscal ajuizada contra pessoa jurídica que foi irregularmente dissolvida (isto é, paralisou suas atividades sem regular baixa do registro) após acúmulo de dívidas diversas, o que ensejou o redirecionamento da cobrança em desfavor dos sócios-gerentes, com fulcro no enunciado nº 435 da Súmula do STJ[1].

De se observar que, em casos como esse (extremamente comuns no dia-a-dia das Procuradorias da União, Estados e Municípios), os sócios-gerentes tornam-se solidariamente responsáveis pelas dívidas fiscais contraídas pela pessoa jurídica, haja vista que as autoridades – notadamente os órgãos fiscais e a Junta Comercial, no caso de sociedade empresária – devem ser comunicados do encerramento dos trabalhos daquela, para atualização e baixa dos registros competentes.

Mesmo em caso de dificuldades financeiras (o que, a princípio, dificulta ou impede o cancelamento do registro perante os órgãos fazendários, no caso de dívidas fiscais), a empresa poderá se valer dos instrumentos da recuperação judicial ou autofalência, previstos na Lei 11.101/2005, isentando-se os administradores, dessa forma, de maiores responsabilidades. No caso-exemplo, porém, os sócios-gerentes optaram por simplesmente fechar as portas da empresa, à época já inviabilizada diante de inúmeras dívidas de origens diversas.

Por motivos inerentes ao mecanismo judiciário, entre a deterioração da situação da empresa e a efetiva inclusão dos sócios no pólo passivo da execução (citação), decorreu considerável período de tempo, período no qual um dos sócios transferiu, por doação, imóveis de sua propriedade para seus filhos, reservando a si e à sua esposa o usufruto desses bens, enquanto vivos fossem.

Note-se, na espécie, que os bens foram transferidos antes do registro da penhora, pelo que não seria possível, em tese, aplicar as regras concernentes à fraude à execução – nem as do art. 593 do antigo Código de Processo Civil (CPC), nem as do art. 792 do novo CPC (Lei 13.105/2015), que ampliou sensivelmente as hipóteses de configuração[2]. A priori, apenas quando redirecionada a execução em face dos sócios-gerentes é que a exequente se tornou, por direito, credora deles, agora devedores solidários juntamente à empresa inativada. Assim, a anulação da doação com base no art. 158 do Código Civil (CC)[3] também não seria possível, já que a fraude contra credores exige que o ato fraudulento seja contemporâneo ao crédito – é dizer, a doação só poderia ser anulada se tivesse ocorrido após o mencionado redirecionamento.

Outra maneira de tentar desfazer a doação seria obter sua declaração de nulidade, com base no art. 548 do CC. Porém, como retratado acima, foi estabelecido usufruto em favor dos doadores. Ademais, ao tempo da doação não havia, formalmente, uma situação de insolvência do doador empresário, embora estivesse sua empresa imersa em dívidas – e tais dívidas certamente acabariam por respingar no patrimônio pessoal dos sócios. Com base nessa certeza – situação costumeiramente vivenciada no mundo dos negócios, e que dá origem aos atos de blindagem patrimonial – é que a Fazenda Pública, por seu representante legal, formulou pedido de nulidade da doação por simulação: o que teria movido os doadores não seria uma verdadeira liberalidade para os filhos, e sim a premente necessidade de evitar a perda do patrimônio familiar para credores.

A despeito da rejeição inicial da tese pelo Judiciário, entendemos que o tema da simulação merece maior cuidado dos operadores do direito envolvidos com o processo de execução, ordinário ou especial, de maneira a evitar o uso de brechas jurídicas pelos devedores aptas a livrá-los da constrição de bens particulares.

Nas seções a seguir, trataremos, em linhas gerais, dos ditos atos de blindagem patrimonial, sua prejudicialidade à execução e ao direito dos credores, e dos instrumentos hoje utilizados para se reprimir ou fazer cessar essa prática.

Incontinenti, discorreremos acerca do ato simulado, sua definição legal e a possibilidade de uso da regra prevista no Código Civil (CC) para combater práticas como a acima descrita, tendo em conta que os instrumentos comuns não se revelam abrangentes o suficiente para evitar a dissipação inidônea de bens por devedor.


1. BLINDAGEM PATRIMONIAL – CONCEITO E IDENTIFICAÇÃO

É de se esperar que o termo blindagem, em um país como o nosso, com severa deficiência na segurança pública, já possua seu significado incorporado ao senso comum. A ideia de proteção trazida à memória não destoa do encontrado nos dicionários[4], e é inteiramente aplicável ao presente debate, onde o indivíduo (é dizer, o devedor) tenciona proteger-se de ataques externos, não de criminosos, mas dos credores em busca de seus bens.

A divergência acerca do conceito de blindagem patrimonial se dá em torno de sua natureza jurídica: seria um ato lícito ou ilícito? Gladston e Eduarda Cotta Mamede afirmam que:

“A blindagem patrimonial é um ato ilícito complexo, ou seja, envolve a prática de diversos atos que são considerados ilegais por disciplinas jurídicas diversas: ilícitos civis, ilícitos tributários e ilícitos penais, entre outros. Assim, tanto os profissionais quanto os clientes podem ser responsabilizados, inclusive por meio de processo criminal”[5].

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Já outros juristas afirmam que a blindagem patrimonial, em seu estrito significado, pode indicar o planejamento da pessoa, física ou jurídica, antes mesmo da assunção de dívidas, com vistas a reestruturar suas atividades e torná-las mais eficientes quanto ao alcance das finalidades pretendidas. Assim, por exemplo, a reestruturação de sociedades por meio da constituição de holdings poderia ser considerada uma forma de blindagem patrimonial[6].

Fato é que, mesmo havendo ações tendentes a desfalcar o patrimônio do devedor, esse, segundo Araken de Assis, “conserva a livre disponibilidade de seus bens, incumbindo a seus credores respeitar-lhes os atos negociais, embora seus resultados sejam nocivos e até provoquem a insolvência”[7].

É bem verdade que, a favor da Fazenda Pública, foi estabelecido o art. 185-A do Código Tributário Nacional (CTN), que permite ao juiz decretar, contra o executado, a indisponibilidade de bens e direitos. Contudo, essa medida se revela inócua na prática do processo, visto que somente se lhe faculta o uso após a citação do devedor, tempo em que, provavelmente, seu patrimônio já estará dilapidado.

Ora, a lei não veda, a priori, que o devedor pratique atos de disposição dos seus bens, pois que vigora a presunção de boa-fé. Devemos, assim, concordar com o professor Araken de Assis quando ele diz ser impossível “apartar o negócio hígido do fraudulento, pois eles apenas se diferenciam, substancialmente, quanto à finalidade”[8]. À primeira vista, todos os atos negociais consentâneos com a lei civil seriam válidos. Contudo, dentre esses atos praticados pelo devedor, haverá aqueles cuja finalidade atenta à boa-fé, cujo objetivo principal é reduzir o patrimônio de forma artificial: bens invisíveis aos olhos do credor, porém ainda sob a administração do devedor, por si mesmos ou por seu equivalente.

Tais atos ilícitos, a nosso ver, configuram a blindagem patrimonial tida por contrária ao direito, ainda que se cogite de uma eventual blindagem lícita. Nunca é demais lembrar que a execução é movida no interesse do credor (art. 612 do CPC), realizando-se os atos expropriatórios no proveito desse agente e em face do patrimônio do executado (princípio da responsabilidade patrimonial[9]). Assim, em se tratando de devedor, ressalvados os bens protegidos pela impenhorabilidade (CPC, art. 649), não há que se falar em licitude nos atos tendentes a dilapidar ou ocultar bens, caindo por terra a presunção de boa-fé assim que evidenciado que a pessoa física ou jurídica tinha pleno conhecimento das dívidas que se acumulavam contra si.

Em verdade, bastante raras são as hipóteses de dívidas absolutamente ignoradas pelo devedor. Quando ocorrem, quase sempre têm origem duvidosa ou já se encontram prescritas. Em regra, a pessoa devedora sabe o exato momento em que deixou de pagar determinada obrigação, ainda que não tenha uma contabilidade minimamente organizada. Passando-se os dias e acumulando-se as dívidas, mostra-se inexorável àquele devedor o destino que lhe aguarda: cobranças e ameaças dos credores, muitas vezes culminando em processos judiciais.

No caso das dívidas tributárias, a diferença se dá no tempo decorrido entre o inadimplemento e a cobrança judicial, geralmente alongado por conta dos vários procedimentos que permeiam a atividade fazendária. Nesse interstício, vê o devedor a oportunidade de, mesmo não se livrando da cobrança, permitir que os bens amealhados no período de bonança se livrem da constrição judicial.

Não se pode negar que, em determinadas situações, os atos praticados pelo atribulado devedor se revelam feitos de quase desespero, na tentativa de garantir aos seus uma vida futura com conforto semelhante à vivenciada outrora. No entanto – mais uma vez ressalvando os bens que a lei considera impenhoráveis –, não é dado ao devedor realizar atos negociais com finalidade prejudicial aos credores, ainda que previamente à execução, já que a boa-fé exigida nesses negócios (art. 113 do CC) será, no mínimo, questionável desde seu nascedouro.

Ora, a boa-fé, nos dias atuais, “erige-se em preceito ético informador da vontade negocial válida”[10], de modo que não subsistirá no direito atos maliciosos, violadores da boa-fé, ainda que subjetiva – a qual possui caráter psicológico, interno ao indivíduo, situação comum no caso de blindagem patrimonial.

Tal explicação se faz necessária porque os instrumentos mais comuns para reverter ou declarar ineficazes os atos de blindagem patrimonial, quais sejam, a fraude à execução e a fraude contra credores, não são suficientes para efetivamente coibi-las, especialmente no trato de execuções fiscais. É o que se verá a seguir.


2. OS USUAIS INSTRUMENTOS DE COMBATE À BLINDAGEM PATRIMONIAL

2.1. DA FRAUDE CONTRA CREDORES

Voltemo-nos à situação introdutória. A doação operada pelo sócio-gerente (e responsável solidário pela dívida da empresa dissolvida irregularmente) aos seus filhos, em tese, poderia enquadrar-se na ideia central do art. 158 do CC, já transcrito alhures.

Nos dizeres de Silvio Rodrigues, haveria fraude contra credores quando “(...) o devedor insolvente, ou na iminência de tornar-se tal, pratica atos suscetíveis de diminuir seu patrimônio, reduzindo, desse modo, a garantia que este representa, para resgate de suas dívidas”[11]. Para a configuração da fraude se exige a prova do eventus damni e do consilium fraudis, e no nosso caso-exemplo ambos os requisitos estariam presentes, considerando a prática, pelo executado, de um ato de disposição gratuita de bens (a doação) e a ciência, mesmo antes do ajuizamento das execuções, do acúmulo de dívidas em nome da empresa e do risco de que tais obrigações recaíssem sobre seu patrimônio pessoal, situação de ordinário verificada em processos trabalhistas e fiscais.

Ainda que, para ajuizamento da ação pauliana (prevista no art. 161 do CC), não se exija do devedor ter específico conhecimento de sua insolvência, fato é que apenas o credor à época do fato poderá pleitear sua anulação (§ 2º), e esse pedido se submete ao prazo decadencial de quatro anos, conforme previsto no art. 178 da Lei Civil. Sob os estritos termos da lei, no caso apresentado na introdução, não seria viável o ajuizamento da ação pauliana, especialmente em razão da constituição tardia do crédito.

No que pertine aos interesses da Fazenda Pública, a ostentar posição de credora privilegiada, surgem as dúvidas (a) acerca de sua legitimidade para pleitear a anulação e (b) sobre a data em que se poderá considerar credora: se a partir do inadimplemento do tributo ou somente após a constituição do crédito e sua inscrição em dívida ativa.

Quanto à legitimidade, há de se atentar inicialmente ao que quer dizer a lei com credores quirografários. É que, na espécie, não está em discussão a ordem estabelecida pelo ordenamento pátrio em sede de concurso de credores, onde a Fazenda se coloca em posição somente inferior à dos credores trabalhistas e, na falência, também a dos hipotecários.

Com efeito, como afirma João Franzen de Lima, citado por Orosimbo Nonato,

“Quirografários são os credores que não têm garantia real, isto é, hipoteca, anticrese ou penhor. Aos que têm essa garantia, não interessa a ação [pauliana], porque têm no bem a que aderem enquanto existir, a segurança do pagamento (...)”[12].

Dessa feita resulta que a Fazenda Pública, no mais das vezes, assume posição de credor quirografário, somente recebendo tratamento especial nos estritos limites dados pela legislação. Portanto, em não se tratando de tributo de natureza real (de que são exemplo os impostos sobre a propriedade territorial urbana e rural – IPTU e ITR), a garantia do crédito público será genérica, ficando à disposição do Fisco o manejo da ação pauliana quando o caso concreto a exigir.

Já no que diz respeito ao tempo da constituição do débito, é certo que, antes da inscrição em dívida ativa, não há presunção legal acerca da certeza e liquidez do crédito a ser perseguido em face do contribuinte devedor (art. 3º da Lei 6.830/1980). Contudo, há situações em que o contribuinte, antes da ação fiscal, já tem conhecimento da obrigação que possui e não cumpre: os débitos tributários declarados à Fazenda Pública, se não pagos no seu devido tempo, ficam desde logo constituídos, sem que se faça necessário qualquer intervenção da autoridade. Contudo, mesmo constituída a dívida, sua cobrança não será imediata, pois que demandará atividades administrativas preparatórias ao ajuizamento da execução fiscal, tais como a apuração do exato valor devido e a própria inscrição em dívida ativa.

Isso significa que, estando a empresa em dificuldades financeiras, deixando de pagar os tributos a que está obrigada, poderá também, desde logo, se desfazer de ativos, antes mesmo que a Fazenda Pública inicie os procedimentos para cobrança da dívida. De igual modo, contemplando o agravamento da situação, poderão os sócios-gerentes se desvincular de bens em seus nomes antes que a responsabilidade sobre as dívidas da empresa recaia sobre seus patrimônios particulares.

Outro grande obstáculo, nesse aspecto, será o prazo decadencial de quatro anos para pleitear a anulação do negócio. Embora pareça ser um prazo razoável, o fato é que ele é contado desde a realização do ato, independentemente da data que se o haja descoberto, já que o princípio da actio nata, em tese, apenas se aplica aos prazos prescricionais. Assim, quando ajuizada a execução fiscal e obtida a citação do réu, é bastante provável que já haja decaído o direito de pleitear a anulação do negócio, consolidando-se a fraude em prejuízo da Fazenda Pública.

Como não é possível “queimar” etapas no processo de constituição da dívida tributária de maneira a agilizá-la, e tendo em conta que o arrolamento de bens e direitos do contribuinte é reservado para situações específicas[13], haverá inúmeras situações concretas em que a fraude escapará ao controle da autoridade, porque não detectada no seu início, demandando então o estudo de medidas complementares para ser combatida.

2.2. DA FRAUDE À EXECUÇÃO

Diferentemente da fraude contra credores, vício que afeta o negócio jurídico, que se sujeita a prazo decadencial para anulação (por se tratar de direito potestativo do credor alegá-la), na fraude à execução se verifica um ilícito processual, ato que atenta à dignidade da justiça, sendo por isso nulo de pleno direito, se verificados os requisitos da lei para sua configuração.

Com a sanção do novo CPC, cuja entrada em vigor ocorre em março de 2016, o instituto da fraude à execução teve seus contornos ampliados, sem trazer, no entanto, garantias mais consistentes ao credor cujo título não estava formado ao tempo da alienação ou oneração de bens pelo devedor.

Com efeito, nos termos do novel art. 792 da Lei 13.105/2015, considera-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bem – em acréscimo às hipóteses do art. 593 e 615-A do revogando CPC[14] –, quando há averbação, no registro público do bem, de hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial (inciso III). Aliás, de acordo com a nova Lei Processual Civil, quando pendente ação fundada em direito real, é necessária a averbação de tal fato no registro competente, para que essa demanda seja capaz de induzir a ineficácia da alienação ou oneração do bem (inciso I, c/c § 1º).

Portanto, se os atos de blindagem patrimonial se antecipam às ações do credor para garantia de seu crédito, é evidente que o instituto da fraude à execução não possuirá qualquer serventia, já que a averbação no registro público de restrições ao uso, gozo e disposição do bem não poderá preceder, quando exequente a Fazenda Pública, a apuração da dívida e sua inscrição para fins de cobrança judicial.

Retornando à situação-exemplo trazida pela introdução, a doação teve lugar em meio à deterioração da sociedade empresária, mas antes de seus sócios-gerentes serem diretamente responsabilizados pela derrocada. Nesse panorama, uso da regra da fraude à execução não socorre ao credor fazendário, por maior que seja sua diligência em efetuar uma ágil cobrança da dívida fiscal.

2.3. DA DOAÇÃO NULA OU INEFICAZ

A situação-exemplo trazida para debate não possui qualquer ineditismo no mundo jurídico. Ela é apenas uma das medidas de que se servem os devedores para, na prática, se livrar do pagamento de suas obrigações. São empresas que, muitas vezes, “quebram” não por contingências do mercado, mas por ingerências de seus sócios, às vezes realizando retiradas além das suportadas pelo caixa da empresa, de maneira que o patrimônio pessoal daqueles cresce à medida que a atividade empresarial se inviabiliza.

Quando a dívida aumenta de forma exponencial e o fim da empresa é inevitável, surge a necessidade de garantir que os bens acrescidos ao patrimônio pessoal não sejam ameaçados pelas dívidas da empresa mal gerenciada. Uma das formas de se garantir a “sobrevivência” desse patrimônio é a doação a herdeiros[15]. No caso retratado na introdução, uma doação com reserva de usufruto dos doadores.

Em reforço às disposições legais acerca da fraude contra credores e fraude à execução, em se tratando de doação, o Código Civil assevera o seguinte:

“Art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador.

Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.

Como se vê, a doação a herdeiros necessários com reserva de usufruto está a salvo das nulidades apontadas supra, já que o usufruto garante a subsistência do doador (afastando a nulidade do art. 548), e a liberalidade a herdeiro necessário garante a inaplicabilidade do art. 549, que se refere a doações que superam o limite de que se pode dispor em testamento.

Por outro lado, é sabido que, conforme o art. 2.002 do Código Civil, os herdeiros “são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele [de cujus] em vida receberam, sob pena de sonegação”. Essa conferência é chamada pela lei de colação e, embora tenha por fim precípuo igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente (art. 2.003[16]), ela também se mostra importante para os fins do art. 1.997, pelo qual se tem que a herança responde pelas dívidas do falecido.

Em outras palavras, os bens trazidos à colação são levados em conta para responder pelas dívidas do espólio. Afinal, apenas serão partilhados os bens que sobejaram ao pagamento das dívidas do espólio. E, se assim é, como reputar eficaz uma doação que, desde sua formalização, se deu em prejuízo dos credores?

Note-se que a blindagem patrimonial, escassamente tratada pela lei, não passa de uma estratégia mais bem elaborada de inviabilizar a execução, escapando às características clássicas da fraude. Por isso mesmo há de ser considerada manobra mais grave, pois o devedor não está se desfazendo de seu patrimônio e consumindo o valor arrecadado, mas está lançando mão de providências para que tal patrimônio continue dentro de sua esfera familiar.

A exemplo das maneiras buscadas por indivíduos para se furtar ao rigor da norma de direito, não é de hoje que a doutrina vaticina a insuficiência da lei para regular as mais diversas particularidades vistas no mundo dos fatos[17]. A doação com reserva de usufruto, como apresentado no exemplo introdutório, é indubitavelmente estratégia a priori a salvo das regras punitivas do Direito Civil, daí a importância da interpretação sistemática das normas civilistas para se impedir a locupletação ilícita do indivíduo que, in casu, encontra-se em débito para com a Fazenda Pública.

Sobre o autor
Thiago Batista da Costa

Bacharel em Direito e pós-graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Procurador da Fazenda Nacional em Caxias do Sul/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Thiago Batista. A alegação de simulação como alternativa à tese de alienação fraudulenta de bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4634, 9 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46976. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Este artigo é fruto de pesquisas e estudos empreendidos pelo autor após caso concreto vivenciado em sua atuação enquanto Procurador da Fazenda Nacional.

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