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Início do Estado policial, o meio do caos e o fim da advocacia criminal

Agenda 11/04/2016 às 16:03

Este conto percorre mudanças jurídicas que encaminham o Brasil a uma nova ditadura e a um Estado policialesco, dominado pela prisão preventiva, delação premiada e o fim das garantias constitucionais. Final dramático tal qual em O estrangeiro e 1984.

Um dia assisti calado à generalização dos crimes hediondos. Tudo era hediondo, mas eu jamais cometeria algo assim hediondo... Depois de alguns anos, a hediondez ficou tão banalizada que ninguém mais se importava.

Alguns anos depois, começou a ser aplicado em São Paulo o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Eu e muitos nos calamos.

Um tempo depois, a zona cinzenta da teoria do dolo eventual foi dissipada e ela passou a ser aplicada como regra. Num piscar de olhos, a exceção virou regra e a regra exceção. Ora, afinal de contas, “o sujeito assumiu o risco...” e a partir daí não havia mais a modalidade culposa para quem assumiu o risco (todos concordaram que o indivíduo ao se sentar no banco do motorista assume expressamente o risco de atropelar alguém, portanto, se isso acontecesse, tratava-se de homicídio doloso). Mas eu também não liguei, pois jamais eu ou meus amigos, minha família assumiríamos o risco de "matar" alguém. Sequer notamos que não havia mais crime culposo, mas mesmo assim aceitamos.

A novidade foi também aos conceitos de organização criminosa e lavagem de dinheiro. Não havia uma operação sequer que não trouxesse estes tipos penais, pois eles eram tão abertos e, como se diz no interior, “onde passa boi passa boiada”. Bastava o agrupamento de meia dúzia, de três ou quatro e pronto, a organização estava formada. Mas os tempos mudam, a legislação se aperfeiçoa e continuamos calados.

Eis também que um dia o processo penal foi adaptado - diziam os especialistas que era para agilizar o processo - e enfim chegou-se à grande novidade das audiências UNAS no direito penal.

Pouco tempo depois, a principal arma contra o crime “organizado” era a prisão preventiva, execração pública, divulgação de interceptações telefônicas. Prisões dos suspeitos viraram espetáculos midiáticos e, ao chegar na sede da Polícia Federal, a pergunta que passou a ser feita era: Tem delação premiada? Hoje o MP está em promoção: delate o patrão ou seu irmão e ganhe 100 anos de perdão! Não se preocupe com as provas, pois trabalhamos com indícios! Delate agora que será solto e terá seu dinheiro roubado de volta!

Estranhamente nunca vi um traficante de armas e drogas ou membro de facções que tenha feito delação premiada, somente empresários, políticos, funcionários públicos. Achei estranho no início, mas ninguém ligava. Eu também não liguei e, como de costume, me calei.

Num determinado momento, comecei a perceber que todos os meus pedidos de liberdade provisória, inclusive nos casos mais simples, eram indeferidos, entrava com habeas corpus para o Tribunal de Justiça de São Paulo, era negado, ia ao Superior Tribunal de Justiça, era negado, ia ao Supremo Tribunal Federal e a ordem de habeas corpus era negada e assim meus clientes, muitos eram culpados, eu sei, mas muitos eram inocentes e quase a totalidade (99,99%) aguardava o julgamento preso. Raramente se conseguia aplicar a Constituição Federal quando se chegava ao Supremo Tribunal Federal, o último guardião da nossa Constituição, mas raramente se chegava lá.

Questionei-me profissionalmente e achava que tinha perdido a mão, precisava me reciclar, mas todos os meus esforços eram em vão, eu justamente eu que desde o primeiro ano da faculdade já tinha obtido êxito em habeas corpus, eu que me empenhava e fortalecia minhas peças com a mais pura jurisprudência dos Tribunais Superiores, os melhores doutrinadores, eu que tinha feito duas pós-graduações em Direito Penal e Ciências Criminais, lido tanto, escrito tanto, perdi a inspiração, tal qual um poeta que não encontrava uma rima sequer e, como o problema era comigo, aceitei. 

Comecei a notar um clima de satisfação no ar, reiteradas manifestações midiáticas, vários analistas deram a posição favorável, passeatas e grupos, das vítimas até a Miriam Leitão, Merval, que, além de comentar sobre economia, agora era expert em direito, diziam quem poderia ser indicado para o STF. Afinal todos se alegraram com a mudança do entendimento da Lei e a relativização da ciência do Direito Penal. Chega desta porcaria de Beccaria. Nesses tempos eu lembro que juízes passaram a ser celebridades mais do que os Big brothers.

As pessoas iam às ruas com camiseta estampada com a imagem dos juízes. No carnaval de Recife Bonecos gigantes representavam Joaquim Barbosa, Moro, até o japonês bonzinho da federal foi representado. Nas passeatas, os manifestantes tiravam selfie com os policiais militares e não eram raras as manifestação de apoio aos juízes em frente dos fóruns, cantavam o hino nacional.

Um dia, já desanimado com os rumos do direito penal e o distanciamento das garantias arduamente conquistadas durante séculos, recebi a notícia de que o Guardião da Constituição Federal da mesma e invariável forma passou a decidir, contrariamente à Constituição Federal, que as decisões condenatórias confirmadas em 2º grau pelo Tribunal Colegiado já seria o suficiente para se executar a sentença criminal, ou seja, mesmo aqueles que ainda discutiam seus processos kafkanianos nas cortes superiores seriam imediatamente levados aos presídios com o início imediato da execução, mesmo com os recursos pendentes e sem portanto o trânsito em julgado. O país foi à loucura, várias pessoas nessa situação foram imediatamente levadas aos presídios de modo que os casos excepcionais, aqueles que dominaram o noticiários foram os primeiros a serem cumpridos. Gil Rugai e Luiz Esteves foram os primeiros de dezenas de milhares que se seguiram. Quando acabaram-se as celebridades, a metralhadora giratória delcidiana, virou-se aos desconhecidos, muitos daqueles que eram ouvintes passaram a sofrer também os efeitos colaterais das mudanças do Regime Policialesco que se instalara amiúde, mas como apoiaram ao reclamar não eram ouvidos, afinal a lei é para todos dura Lex sed Lex,  o fato é que passou-se a aguardar o julgamento em primeira instância preso e os que foram soltos com a confirmação da sentença em segunda instância eram levados para o presídio. Processo Penal com audiência UNA.

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Muitos passaram a ser presos preventivamente (ora, prevenir é melhor que remediar) esses, mesmo antes da denúncia já eram presos e mantidos no cárcere até a sentença e até a apelação e já era. Mas eu já não militava mais no Direito Penal mesmo, devido ao meu insucesso profissional, e estava muito difícil advogar, pois não se conseguia nada. Advogado criminal era uma formalidade constitucional como a de que todos têm direito a defesa, afinal de contas o advogado é essencial a justiça. Mas tudo bem, minha vida continuou pacata como antes da beca, meus velhos livros de Nelson Hungria, Magalhães de Noronha, Anibal Bruno e tantos outros já não serviam mais para nada e juntavam poeira e traças.

Um dia percebeu-se que o Brasil detinha a quarta população carcerária do mundo; praticamente 700.000 pessoas estavam presas e, destas, 40% sem sentença. Não havia mais lugar para todo mundo, mas ninguém, muito menos eu, reclamava, afinal cadeia não foi feita para mim nem para você leitor e nossa vida continuou e de nada adiantavam os relatórios da Anistia Internacional por violação aos Direitos Humanos.

Lembro-me que do dia para a noite chovia mais mandado de prisão do que água no verão paulistano. As notícias que antes demoravam anos caíram para meses, depois para semanas, dias, horas e hoje é praticamente on line. Interceptava-se e, antes de o juiz saber o conteúdo das interceptações, o conteúdo já era de conhecimento geral. Deve ser por causa do 4G. É, pode ser! A velocidade da internet era absurda. Mas até aí tudo bem, pois tudo isso era tão distante de mim e eu já estava tão sozinho mesmo. Até mesmo os conteúdos de conversas banais eram primeiramente levadas ao escrutínio público, afinal como dizia o (hoje considerado moderado) Min. Joaquim Barbosa “é preciso ouvir o clamor das ruas” “é preciso ouvir a voz do povo” e desta forma a mídia divulgava seletivamente, o povo ouvia e julgava e o juiz confirmava e o Supremo Tribunal Federal se calava, alguns até apoiavam, mas com o mesmo ar acadêmico de outrora.    

No noticiário se falava de todos os tipos de prisões, provisória, preventiva, as domiciliares foram todas convertidas em prisão, as caras tornozeleiras finalmente foram abolidas; eram coisa de museu, a ordem era prisão. Uma maravilha, país seguro. Não havia um corrupto ou corruptor fora da prisão. Até ex-presidentes, ministros e governadores, empresários, sindicalistas, líderes religiosos, banqueiros, ministros do STF que fizeram lobby para serem indicados, enfim, os traficantes e assaltantes que se danem, os arrastões e pequenos meliantes ficarão para um segundo plano,  o importantes agora são os mais perigosos à nação, são os construtores, políticos, operadores e delatores e, se tudo der certo, como diziam Pink e Cérebro “fazer o que fazemos todos os dias: conquistar o mundo” . Uma caça às bruxas nos moldes medievais e não havia um político que dormisse em paz, nesse tempo não se podia se mostrar simpatizante de partidos com vocação de esquerda, comunistas nem pensar a até usar camisa vermelha na Avenida Paulista era risco de vida. Bem que diziam que o último comunista brasileiro foi Oscar Niemayer.

A população estava toda engajada ou calada, pois todas as manifestações eram em grandes avenidas com a Paulista ou na Vieira Solto, afinal protestar na periferia era muito perigoso, Capão Redondo, Vidigal, Dona Marta... nem pensar, pois isso não dava ibope. Usava-se quase como uniforme camisa da CBF com um dia disse o profeta Carlos Alberto Parreira “ A CBF é o Brasil que deu certo” era lindo aqueles tempos de passeata. Eu não ia, pois me sentia um peixe fora d’água. Os pais faziam questão de levar  as crianças nos carrinhos de bebê, mas sempre com o cuidado  de ter a babá “afro-brasileira” toda de branco ao lado e os cachorrinhos lindos, felpudos, um programa de família. Tinha até escorregador e patinho amarelo e outros bonecos infláveis, ninguém falava mais em Dengue, microcefalia na camada pobre da população que vivia próximas aos lixos e ruas sem saneamento básico e sem atendimento médico, isso nunca foi motivo de uma passeata. Que saudade daqueles tempos; isso era tão normal para mim.

Nos dias que se sucederam, os oficiais de justiça não cumpriam mais nenhum mandado, e os intimados acusados não precisavam mais gastar dinheiro com gasolina, estacionamento, metrô etc. todos sem exceção eram conduzidos em reluzentes, mas discretos carros pretos, todos silenciosos e confortavelmente conduzidos aos locais de depoimento, uma maravilha. Isso que é um país civilizado.

Todos os bancos passaram a informar automaticamente à Receita Federal as movimentações superiores à fortuna de R$ 2.000,00 (dois mil reais); em 2016, isso era muita grana.

A gasolina girava em torno de R$ 3,90, mesmo com os preços do barril do petróleo despencando no mundo inteiro, e tínhamos muitas reservas, mas ninguém se lembrava mesmo dessas coisas, nem eu, pois já não tinha mais carro mesmo.

Doutro bordo nas cidades a velocidade máxima foi limitada a 50 Km/h, faixa exclusiva para motos, uma para bicicletas, outra para ônibus; se sobrasse, era para os carros de passeio.

A Avenida Paulista passou a ser fechada aos domingos e às vezes as pessoas acampavam em frente a FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), pois naqueles tempos não se fazia mais passeatas ao lado dos trabalhadores e sim em frente ao Gigante Pato Amarelo da FIESP. 

A mudança era brutal, como dizia um antigo e esquecido sindicalista nunca antes na história deste país houve uma transformação tão grande e tão importante.

Diziam que acabariam definitivamente com todos os corantes, fertilizantes, acidulantes, aromatizantes, proibiriam também o colesterol, churrasco, cafeína, e analgésicos, ensinariam que a dor faz bem ao caráter, fechariam as hamburguerias, as soverterias, as loterias, as danceterias, acabariam com as correrias, com a gritaria, todos deveriam ser civilizados mesmo no caos, trariam de volta a paralisia, e diziam como a letra: “você precisa aprender inglês, precisa saber o que eu sei e o que eu não sei não”  e eu como sempre aceitaria, pois seria bom para mim diziam os analistas, os comentarias e os especialistas do plin plin. Tudo bem.

De uns dias para cá tenho sentido uma grande tristeza, e notei pelo canto dos olhos que os demais também são tristes, mesmo quando tentam sorrir, é uma melancolia, não há mais programas humorísticos de verdade, pois não se pode mais fazer piadas de nada nem de si mesmo; é “politicamente incorreto” hoje, é “crime hediondo mesmo”.

Hoje em dia tento sorrir, as lembranças acima são parte do meu passado, afinal hoje os deprimidos como eu são cuidados com tanto carinho, 3 refeições por dia, chá da tarde e da noite, banho de sol no pátio monitoramento 24 horas por dia por profissionais habilitados. Isso é claro para zelar da nossa segurança. Afinal uma pessoa depressiva pode atentar contra a vida alheia ou mesmo contra a própria vida. Dizem é por causa de um novo antigo/novo conceito: direito penal do inimigo. Não sei por que há tanto tempo não vejo meus antigos amigos, nunca mais os vi, acho que estão bem, afinal se a Ordem dos Advogados do Brasil, o Sindicato dos Advogados, a Associação dos Advogados de São Paulo, se eles não reclamaram, é que deve ser impressão minha. As coisas estão bem, nem o Chico, nem o Caetano compuseram nada. Não há festivais. Todos estão por aqui ou já partiram há tanto tempo.

Hoje finalmente tenho um motivo de alegria, graças ao nosso Nobre e Culto Líder Governamental o Grande Sérgio Moro, pois eu retirei meu documento de identidade universal, que contem a minha imagem tridimensional, a sequência do meu DNA, minha íris e minhas impressões digitais dos 10 dedos e tudo isso para a minha segurança está armazenada num chip que implantaram em mim, funciona como um sem-parar. O governo e os órgãos de segurança nacional saberão onde estou. É o resultado de uma campanha publicitária idealizada pelo primeiro marqueteiro político da história, Joseph Goebbels, renomado autor de frases célebres frases  como: “O ano de 1789 está, a partir daqui, erradicado da história (fazendo uma referência à Revolução Francesa, baseada na liberdade, igualdade e fraternidade)” e “Uma mentira dita cem vezes se torna verdade” e a do atual PF (Partido Federal): “Quer pagar para ver, pois agora é pra valer, o MP e a Federal cada vez mais perto de você”, pois sabem exatamente onde me encontrar. Uma maravilha, pura tecnologia em favor do cidadão brasileiro.

Mas ainda continuou triste, afinal o mundo está mais triste e perigoso, pois dizem que tem uns subversivos por aí (quem já leu o conto de Machado de Assis A Igreja do Diabo sabe o que eu estou falando. Quem não leu, por favor leiam) querendo fazer um negócio chamado “revolução”, que é uma das milhares de palavras que foram abolidas dos dicionários, pois o Partido Federal chegou a conclusão de que a maioria das palavras não eram usadas mesmo e qualquer um pode perfeitamente se comunicar usando no máximo uma centena delas e as demais e inúteis foram abolidas e proibidas, das mesma forma que o ensino de uma matéria antiga que dizem que nasceu na Grécia, algo como Filosofia, completamente inútil aos nosso dias. Afinal quem não perguntou para que serve essa porcaria de filosofia, não serve para nada mesmo, dane-se a filosofia e os tais filósofos afinal todos eles já morreram mesmo e o que ela me deu até hoje? Uma cabeça pensante? Dane-se o pensar! Quem já conheceu um filósofo vivo? Filosofia é um presente de grego. No Brasil e do Brasil mesmo só existe: IPVA, Consórcio para compra de veículos automotores, urna eletrônica e a Jabuticaba, o resto é da China ou do Paraguai.

Hoje eu moro sozinho, sem animais, pois tive que entregar o meu cachorrinho que era o meu único amigo, ele estava muito magro e com a carteira de vacinação atrasada e a sociedade de proteção dos animais o tirou de mim, disseram que estava sendo maltratado e uma campanha no facebook quase  matou o que resta de mim por causa disso. Estou com 48 quilos, mas tenho 1,77 de altura, mas estou dentro dos padrões estabelecidos, a obesidade é o novo mal do século, parei de advogar, pois não há mais criminosos soltos e não há mais Direito Penal e Processo Penal, pois como disse não há mais criminosos e todos os cidadãos são mantidos sob controle do Estado Policial Governamental e Constitucional de Direito que lidera e governa o país e como todo mundo reclamava com a quantidade de Partidos Políticos hoje temos somente dois: o do governo e o da quase oposição (que também é controlado pelo governo) afinal deve prevalecer a sentimento de que vivemos numa democracia.

Sinto-me como Winston Smith (personagem do Livro 1984 de George Orwell que tinha a função de reescrever e alterar dados de acordo com o interesse do Partido. Nada muito diferente de um jornalista ou um historiador tendencioso. Winston questiona a opressão que o Partido exercia nos cidadãos. Se alguém pensasse diferente, cometia crimideia (crime de ideia em novilíngua) e fatalmente seria capturado pela Polícia do Pensamento e era vaporizado. Desaparecia. 

Vivo assim vaporizado em vida, vazio e de remotas lembranças que não foram destruídas nos tratamentos que recebi gratuitamente do governo e nessa sociedade modelo todos cumprem tão rigorosamente as leis, todos pagam seus impostos, ninguém compra mais produtos da China ou produtos piratas a Advocacia Criminal virou mais uma profissão do passado e como tantas outras extintas: ferreiro, alfaiate, condutor de bondes, telefonista, caçador de ratos, advogado criminal...

Hoje em dia as profissões da moda são: Juiz Federal, Promotor Federal e Policial Federal, não necessariamente nessa ordem.

Como disse, vivo sem conflitos, sem vizinhos, pois ninguém do condomínio se conhece mesmo, sem família, sem amigos, ninguém confia em mais ninguém, os que eu confiava ou que confiavam em mim morreram, sumiram ou estão presos, não me enquadro nas minorias e nem na maioria.

Hoje, depois de muitos anos, consegui pensar por 10 minutos e, após escrever essas poucas linhas, achei os restos de folhas amassadas e rasgadas do que um dia deve ter sido um livro, que pertenceu ao meu pai e li um trecho de um tal Martin Niemoller que dizia assim: Primeiro, os nazistas vieram buscar os comunistas, mas, como eu não era comunista, eu me calei. Depois, vieram buscar os judeus, mas, como eu não era judeu, eu não protestei. Então, vieram buscar os sindicalistas, mas, como eu não era sindicalista, eu me calei. Então, eles vieram buscar os católicos e, como eu era protestante, eu me calei. Então, quando vieram me buscar... Já não restava ninguém para protestar. Para se franco, não entendi nada. Tem horas que não penso direito nem em Direito. Isso nunca vai acontecer comigo ou com os meus... esqueci... não tenho mais os meus...

Justamente hoje que ao acordar eu me olhei no pedaço do espelho que sobrou, me olhei nele e assim do nada me vieram as palavras de Mersault de o estrangeiro de Alberto Camus e, ao me ver no caco do espelho, ao tentar sorrir: “Pareceu-me que a minha cara ficara séria, mesmo quando tentava sorrir. Agitei-a diante de mim. Sorri, mas a imagem conservou o mesmo ar severo e triste.” De repente eles, dos carros pretos, pararam em frente da minha casa e estou vendo um monte de luzes coloridas, várias delas estão em meu corpo, por onde quer que eu olhe em mim vejo essas luzes, estou hipnotizado por elas... são lindas, escuto muitos estampidos, está tudo rodando, minha infância, minhas mais longínquas lembranças vieram me visitar, coisas que eu nem lembrava mais: a Tribuna, a Justiça, o Direito a Constituição Federal, meus livros..., estou no chão caído, algo quente, viscoso e vermelho está por toda parte: é sangue! Meu sangue! Estranho, não sinto dor alguma, somente um grande alívio... é o fim, em meu rosto não há mais tristeza e finalmente depois de muitos anos eu rio de verdade, finalmente estou livre para ir onde a minha tolhida, sofrida e escondida fé em Deus, no Direito e na Justiça pode me levar, enfim um último sussurro é o que me resta e sai pela minha garganta: enfim estou livre, livre de vocês.

Sobre o autor
Nilton Vieira Cardoso

Advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário FIEO e em Ciências Criminais pela LFG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Nilton Vieira. Início do Estado policial, o meio do caos e o fim da advocacia criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4667, 11 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47442. Acesso em: 22 nov. 2024.

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