O mundo é dominado por zumbis, um vírus devasta toda a população mundial ou a explosão de uma bomba atômica,teoricamente, impossibilita a existência de vida na Terra durante quase um século. Mesmo quem nunca assistiu, já ouviu falar de tais histórias, presente no enredo de seriados famosos: The Walking Dead, Last man on Earth e The 100, respectivamente. Diante desse cenário, surge um questionamento: Existe Direito em um universo pós-apocalíptico?
Leigamente falando, a resposta mais sensata para tal pergunta seria um uníssono “não”. Afinal, não existe Constituição, Códigos, nem poder legislativo para criar as leis ou judiciário para aplicá-las, nem a inexistência do Estado e sua tripartição de poder. Não existe Direito Positivo. E a desordem é notoriamente observada em tais cenários pós-apocalípticos. Em The 100, os personagens principais se abrigaram em uma nave espacial para sobreviver à explosão nuclear. Ao voltarem para Terra, eles passaram a ser chamados de sky people ou pessoas do céu pelos grounders ou“terras firmes” e os habitantes da nação do gelo, ambos povos que já estavam na terra antes da chegada da nave com menores delinquentes que foram incumbidos de verificar se a Terra estava apta para ser novamente habitada.
O encontro com outros habitantes da Terra após a explosão nuclear foi uma grande surpresa para os que vinheram do céu. Eles não estavam preparados para encontrar outros seres humanos, muito menos, a hostilidade deles. Nesse contexto, então, surgem constantes conflitos que resultam em mortes, traição e até mesmo genocídio (quando Clarke, para salvar sua mãe, amigos e conhecidos, exterminou o povo de Mount Weather, que estava tirando o sangue e matando sky people e grounders para garantir a sua sobrevivência em face da radiação solar).
Em contraste ao ambiente rural, sem casas e com florestas, de The 100, há em The Walking Dead e predominante em Last Man on Earth, cidades com carros, lojas e casas. Em ambos os seriados os personagem se apropriam de carros, casas, mantimentos, objetos e tudo o mais que eles forem encontrando e considerarem útil.
Fora o já exposto sobre The Walking Dead, é necessário salientar que os furtos e assassinatos que eles realizam, não só zumbis como de vivos, praticados pela comunidade que Rick (o personagem principal que acorda do coma em um mundo repleto de zumbis), são com o objetivo de proteger a comunidade de qualquer ameaça.
Assim como Tandy que foi expulso em Last Man on Earth, em The Walking Dead também houve problemas em relação aos vivos. Já na primeira temporada, Merle foi deixado algemado na cobertura de um prédio por ter uma atitude racista e pejorativa em relação ao T-Dog. E ainda, cantava inapropriadamente Andrea que se incomodava com suas falas. Merle incitava um incomodo geral no grupo.
Diante do exposto e admitindo que em tal universo estivesse sujeito às leis brasileiras, é notória a prática de ações criminosas pelos seus personagens. Assasinatos, apropriação de casas, furtos, genocídio... Configuram condutas consideras típicas, antijurídicas pelo Direito Penal brasileiro, ou em outras palavras, crimes.
Faz-se necessário observar o que o Código Penal brasileiro diz a respeito de tais crimes. Por exemplo, sobre Furto e Homicídio (os crimes mais comumentes cometidos no universo analisado):
Sobre Furto:
Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel;
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Quanto ao homicídio, tem-se:
Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
Sobre o tipo penal, temos:
Erro sobre elemento do tipo
Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Descriminantes putativas
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.
Assim, faz-se necessário analisar os motivos que levaram a tais crimes no cenário analisado. Tomando como base os seriados de temática pós-apocalíptica The 100, The Walking Dead, observa-se que os personagens principais que mataram outros seres humanos vivos, na maioria dos casos, foi para defender a si mesmo, seus familiares e amigos de iminentes ameaças. Ou seja, segundo o art. 20 § 1º: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima..”, já que foi com o objetivo de proteger a sociedade na qual estavam inseridos. Desse modo, segundo o texto da lei, o juiz não aplicaria pena aos crimes expostos.
E se fosse aplicável a pena nesse caso, onde estaria o tribunal e o juiz para comunicar sua decisão?
Supondo que os sobreviventes do evento apocalíptico fossem da área jurídica e tivessem toda a legislação brasileira guardada em suas mentes. Ainda assim, seria pouco provável que estabelecesse os mesmos órgãos e fossem utilizados os mesmo processos jurídicos antes “do mundo acabar”. Afinal as sociedades pós-apocalíticas se tornaram nômades, onde sua estadia estava ligada a segurança e essa segurança mudava de acordo com fatores externos, ex: ataques de zumbis ou tribos inimigas. Com a mudança de ambiente era constante e a perda de pessoas também, era necessário se adaptar buscando outras formas de adquirir alimentos, reforçar a segurança e encontrar local propício para dormir. Tais preocupações eram importantíssimas para a sobrevivência do grupo, quase não sobrando tempo livre. E com o tempo que resta, as pessoas procuram mais tentar encontrar um momento de paz tentando esquecer a situação do mundo. Criar leis e aplicá-las exige tempo e compromisso, como também, correr riscos, caso seja necessário, por exemplo, prender alguém, pois, em ambientes que não possuem cadeias já feitas como a Arkadia de The 100, é necessário procurar um local propício para tal.
Segundo Carlos Santiago: “O Direito cumpre a função de evitar ou resolver alguns conflitos entre os indivíduos e de fornecer certos meios que possibilitem a cooperação social.”
Desse modo, mesmo que não acha um direito positivo estabelecido, é possível verificar um direito nessas sociedades primitivas. Quando Tandy foi expulso da comunidade e Merle foi algemado na cobertura de um prédio, os líderes responsáveis por essa decisão (Phill e Rick, respectivamente) parecem fazer uma analogia a pena. Segundo Cláudio Brandão, “o crime é uma negação do Direito e a pena é uma negação do crime. É necessário que o crime sofra uma pena para que o Direito não perca a sua vigência material.”
Phill (Last man on earth), Rick (The Walking Dead), Clarke (The 100), executam, em seu território, a função de juiz. Eles não criam regras escritas, apenas prezam pelo melhor convívio possível entre as pessoas e para isso usam o seu senso de julgamento diante da situação que está diretamente relacionado aos seus valores éticos. Às vezes ele é falho, sim. E isso pode custar a vida de muitas pessoas. Outras vezes, ele acerta e salva a vida da comunidade inteira.
Em The Walking Dead, já chegou a existir divergências das decisões de Rick. Como por exemplo: T-Dog não achava certo matar ou isolar os prisioneiros que encontraram na prisão, como Rick decidiu inicialmente. Certo ou errado, os comentários de Dale e T-Dog balançaram Rick, que sobre Dale, resolveu manter o adolescente por perto por mais um tempo, situação interrompida ao Shane matar o adolescente, acreditando ser o certo a fazer para defender o grupo de uma possível ameaça. Quanto à posição de T-Dog, Daryl defendeu com firmeza que o melhor a fazer era isolar os prisioneiros e Rick acatou sua decisão.
A tomada de decisões difíceis visando a proteção da vida de um indivíduo e/ou grupo, com base em apenas uma possível ameaça, ou seja, um juízo de valor sobre uma situação que parece gerar consequências negativas se determinadas atitudes forem tomadas de maneira errada, parece fazer analogia ao livro “Justiça – o Que É Fazer a Coisa Certa” de Michael Sandel, que em uma de suas páginas expõe a história de quatro soldados da força especial da Marinha dos Estados Unidos que estavam em uma missão secreta para buscar um líder do Talibã ligado a Osama bin Laden, no Afeganistão.
Sandel conta:
“Pouco depois de a equipe ter se posicionado numa colina com vista para o vilarejo, apareceram à sua frente dois camponeses afegãos com cerca de cem ruidosas cabras. Eles chegaram acompanhados de um menino de aproximadamente 14 anos. Os afegãos estavam desarmados. [...]Um dos companheiros de Luttrell sugeriu que matassem os pastores: “Estamos em serviço atrás das linhas inimigas, enviados para cá por nossos superiores. Temos o direito de fazer qualquer coisa para salvar nossa vida. A decisão militar é óbvia. Deixá-los livres seria um erro.” Luttrell estava dividido. “No fundo da minha alma, eu sabia que ele estava certo”, escreveu mais tarde. “Não poderíamos deixá-los partir. Mas o problema é que tenho outra alma. Minha alma cristã. E ela estava prevalecendo. Alguma coisa não parava de sussurrar do fundo da minha consciência que seria errado executar a sangue-frio aqueles homens desarmados.” [...] Cerca de uma hora e meia depois de ter soltado os pastores, os quatro soldados se viram cercados por cerca de cem combatentes talibãs armados com fuzis AK-47 e granadas de mão. No cruel combate que se seguiu, os três companheiros de Luttrell foram mortos. Os talibãs também abateram um helicóptero dos Estados Unidos que tentava resgatar a patrulha, matando os 16 soldados que estavam a bordo. Luttrell, gravemente ferido, conseguiu sobreviver rolando montanha abaixo e se arrastando por 11 quilômetros até um vilarejo cujos moradores o mantiveram protegido dos talibãs até que ele fosse resgatado.”
Uma situação difícil: matar ou não matar camponeses desarmados e com um adolescente, para salvar a missão? E uma consequência mais dura ainda: A vida de dois camponeses e um menino foram salvas e do outro lado, houve dezenove mortos e um ferido. Matematicamente falando, foi um troca injusta.
Do mesmo jeito no universo pós-apocalíptico. Sem leis, os líderes tomam decisões baseadas em sua moral individual, no que, segundo a sua perspectiva, é o melhor a se fazer. E essas decisões podem ser eternamente agradecidas ou odiadas.