A Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, surgiu para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, como já anuncia seu artigo inaugural, num processo de especificação dos sujeitos de direitos.[1] Essa ação afirmativa[2] decorre do compromisso assumido pelo Brasil em tratados internacionais de direitos humanos,[3] e do dever constitucional de o Estado assegurar “a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (art. 226, caput e §8º da CF).
Malgrado não tenha criado novos tipos penais, a Lei Maria da Penha incrementou o rigor no tratamento do agressor de mulheres, de modo a combater o perverso ciclo da violência,[4] possibilitando a prisão em flagrante em crimes de menor potencial ofensivo e, principalmente, estabelecendo medidas protetivas de urgência.
Na atual sistemática, a concessão de medidas protetivas é exclusividade do magistrado. Quando a ofendida busca amparo na Delegacia, seu pedido de medidas protetivas deve ser encaminhado pelo delegado em 48 horas (art. 12, III), e o juiz deve decidir em 48 horas (art. 18, I). Após o deferimento, o agressor deve ser intimado da decisão, o que pode demorar dias, se tudo der certo e o suspeito não fugir. Ou seja, na melhor das hipóteses, aproximadamente 1 semana separa o comparecimento da ofendida à Delegacia e a concretização da medida protetiva contra seu algoz. Mesmo o encaminhamento de alguns casos ao plantão judicial, que não analisa todas as situações de violência doméstica, não é capaz de atender à exigência de celeridade na decretação das medidas.
Os prejuízos da excessiva burocratização do procedimento podem ser aferidos na prática. As constatações feitas pelo relatório final da CPMI da Violência Doméstica,[5] baseadas em relatório de auditoria do TCU, revelam que a insuportável morosidade na proteção da vítima não é exceção, mas a regra. A depender da região, o prazo para a concessão das medidas é de 1 a 6 meses, “tempo absolutamente incompatível com a natureza mesma desse instrumento”, a impor “medidas cabíveis para a imediata reversão desse quadro”.
Em termos práticos, o que se tem visto é que a mulher que sofre violência doméstica não deixa a Delegacia já protegida por uma medida protetiva, mas com um papel sem qualquer efetividade, uma promessa distante de que o agressor será afastado algum dia.
A prática tem evidenciado que o modelo atual, que subtrai da ofendida o direito a ser protegida já na Delegacia de Polícia, não tem sido capaz de contornar os efeitos deletérios do tempo, obrigando-a a aguardar longo lapso temporal sem a assistência de vida. Para quem está na ultrajante posição de vítima de violência doméstica, poucos dias, horas ou até minutos sem a proteção são uma eternidade, aumentando de modo insuportável essa odiosa vulnerabilidade.
O próprio nome do instituto evidencia essa necessidade: medidas protetivas de urgência. Quando o Estado demora para agir, ofende a própria natureza da medida, deixando a ofendida com o justo receio de que voltará a ser vitimada e o agressor com o caminho livre para dela se aproximar e voltar a delinquir.
Noutro giro, é preciso fazer alguns esclarecimentos acerca da reserva de jurisdição. Trata-se de exigência de que a restrição a determinado direito fundamental deve ser precedida de ordem judicial. Isto é, assiste ao Judiciário não apenas o direito de proferir a última palavra, mas sobretudo a prerrogativa de dizer a primeira.[6]
Em alguns casos, a Constituição não deixou opções: não se pode abrir mão da anterior decisão judicial. Em outras situações, a Lei Maior deixou para o legislador a opção de exigir ou não prévia ordem judicial. Com efeito, o desenho constitucional adotado indica que nem sempre se demanda chancela judicial prévia, o que em nada ofende o princípio da separação dos poderes ou tampouco afeta o posterior controle ulterior do Judiciário (que permanece com a última palavra).
Destarte, quanto à busca e apreensão domiciliar (art. 5º, XI da CF) e à interceptação telefônica (art. 5º, XII da CF), vigora a reserva constitucional de jurisdição.[7] Já quanto a diversas outras medidas, o legislador possui margem para outorgar a outras autoridades o poder de decisão.
No âmbito da persecução penal, atribuiu à autoridade policial a possibilidade de adotar manu propria uma série de medidas, tais como a prisão em flagrante (art. 304 do CPP), a liberdade provisória com fiança (art. 322 do CPP), a apreensão de bens (art. 6º, II do CPP), a requisição de perícias, objetos e documentos (art. 6º, VII do CPP e art. 2º, §2º da Lei 12.830/13), a condução coercitiva (arts. 201, §1º, 218, 260 e 278 do CPP) e a ação controlada no crime organizado (art. 8º, §1º da Lei 12.850/13.
Nessa esteira, quanto às medidas protetivas de urgência, o fato de atualmente a lei demandar prévia ordem judicial (arts. 22 a 24 da Lei 11.340/06) não significa que a sistemática não possa ser alterada, pois não há impeditivo da Constituição nesse sentido. Não causaria qualquer perplexidade a autorização para que o delegado de polícia condicionasse a liberdade do agressor por meio das medidas protetivas, pois no sistema em vigor já pode limitar o direito à locomoção por meio da fiança e também restringir por completo a liberdade ambulatorial decretando a prisão.
Assim, conquanto a Lei 11.340/06 tenha representado um avanço no tratamento estatal da violência doméstica, indubitavelmente necessita de algumas adaptações a fim de adequá-la à realidade e promover maior efetividade à proteção da mulher. Nesse contexto surgiu o PLC 07/2016.
O art. 12-B permite que, verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, a autoridade policial (preferencialmente da delegacia de proteção à mulher) aplique provisoriamente, até deliberação judicial, certas medidas protetivas de urgência, intimando desde logo o agressor. As providências consistem em proibir o agressor de se aproximar da ofendida, de manter contato com ela ou de frequentar determinados lugares; encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa de proteção ou de atendimento; ou ainda determinar a recondução da ofendida e de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor.
O próprio legislador admite que:
Reconhecemos o papel fundamental da autoridade policial. Os Delegados de Polícia Civil são os primeiros garantidores dos direitos do cidadão vítima de delitos penais. Sua atuação é pautada pelo comprometimento com a legalidade dos procedimentos, a acuidade na apuração dos fatos e o embasamento jurídico técnico e imparcial das investigações.[8]
A doutrina segue a mesma linha:
Salto aos olhos, nesse contexto, a figura do delegado de polícia como o primeiro garantidor dos direitos e interesses da mulher vítima de violência doméstica e familiar, afinal, esta autoridade está à disposição da sociedade vinte e quatro horas por dia, durante os sete dias da semana, tendo aptidão técnica e jurídica para analisar com imparcialidade a situação e adotar a medida mais adequada ao caso.[9]
Não se pode olvidar que o delegado de polícia age stricto sensu em nome do Estado[10], integra carreira jurídica[11] e profere decisões escoradas em análise técnico-jurídica.[12] Ora, se a vítima pode sair da Delegacia com a medida protetiva decretada pela autoridade policial, não faz o menor sentido, ferindo o princípio da eficiência, impor à ofendida uma via crúcis para efetivar a proteção.
Complementa a doutrina:
É indispensável assegurar à autoridade policial que, constatada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, aplique provisoriamente, até deliberação judicial, algumas das medidas protetivas de urgência, intimando desde logo o agressor.[13]
Na verdade, a aprovação desse projeto de lei representará um avanço não só para a tutela dos direitos das vítimas de violência doméstica e familiar, mas também para os interesses dos próprios agressores, vez que, conforme exposto, o delegado de polícia terá à sua disposição outras ferramentas diversas da prisão. Assim, ao invés de deixar de conceder liberdade provisória mediante fiança ao preso em flagrante, a autoridade policial poderá lavrar o auto, conceder a fiança e decretar, incontinenti, a medida protetiva que o proíba de se aproximar da vítima.[14]
A inovação em nada afeta a capacidade postulatória da vítima. Mesmo que autoridade de Polícia Judiciária não vislumbre a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima, continua intocável a possibilidade de a ofendida requerer as medidas protetivas, pedido que deverá ser encaminhado normalmente pelo delegado ao juiz em 48 horas.
Não há qualquer prejuízo ao controle judicial da providência ou à inafastabilidade da jurisdição. À semelhança do que ocorre com a prisão em flagrante decretada pelo delegado (arts. 306, §2º e 310 do CPP), o juiz deverá ser comunicado da medida no prazo de 24 horas e poderá manter ou rever a medida aplicada, ouvido o Ministério Público no mesmo prazo (art. 12-B, §1º, do PLC 07/2016). A decisão do delegado de polícia, ainda que produza efeitos imediatos e tenha sérias repercussões nos direitos fundamentais dos investigados, não é definitiva, na medida em que está submetida à análise e confirmação judicial.
O objetivo é tão somente conferir maior efetividade estatal na garantia da incolumidade física e psicológica da vítima. Por isso mesmo continua dependendo de ordem judicial a suspensão da posse de armas, afastamento do lar, suspensão de visitas aos dependentes menores, prestação de alimentos provisórios, separação de corpos, proibição de celebração de contratos, suspensão de procurações e prestação de caução provisória.
Do mesmo modo que o magistrado não é um mero homologador de decisões de prisão em flagrante pelo delegado, não se tornará um mero chancelador de decretações de medidas protetivas pela autoridade policial. Persiste incólume a plena liberdade de convencimento do juiz para concordar ou não com a decisão fundamentada do delegado, podendo reverter a deliberação em exíguo prazo de 24 horas. A possibilidade de controle por parte do Poder Judiciário será ainda mais efetiva após a imposição pela Corte Suprema[15] da realização de audiência de custódia. Ao deliberar sobre a legalidade da prisão em flagrante, o juiz deverá também decidir sobre a manutenção, modificação ou revogação das medidas protetivas de urgência impostas pela autoridade policial.
A defesa continuará podendo acessar aos autos do inquérito policial e peticionar ao delegado (art. 7º, XXI do EOAB),[16] além de permanecer livre o questionamento perante o juízo (art. 5º, XXXV da CF), pela via do habeas corpus ou do mandado de segurança, sem qualquer prejuízo ao contraditório e à ampla defesa. Do mesmo modo, quando o delegado prende em flagrante, impõe a fiança ou apreende bens, o fato de se tratar de decisão administrativa limitadora de direitos não impede o suspeito de questionar tais deliberações perante a própria autoridade policial ou o Judiciário, cujas vias de acesso persistem desobstruídas.
De igual maneira, nenhuma afronta existe à atuação do Ministério Público, que será obrigatoriamente ouvido sobre a decretação das medidas protetivas, continuando inalteradas a legitimidade para requerimento de medidas protetivas e a atribuição de controle externo policial.
A mudança não acarretará necessariamente atraso nas investigações policiais, até porque nas hipóteses em que o agressor for conduzido à Delegacia de Polícia, já sairá intimado da Unidade Policial, não sendo preciso qualquer diligência externa para efetivar a intimação.
Em resumo a proposta de alteração não suprime direitos, apenas os acrescenta à Lei 11.340/06.
É importante lembrar que o princípio da proporcionalidade se manifesta não apenas pela proibição do excesso, mas também pela vedação da proteção insuficiente,[17] e que a tutela de direitos fundamentais deve ser adequada, célere e efetiva.[18] Insistir com a atual demora para proteger a mulher vítima de violência doméstica somente aumenta a probabilidade de o Brasil voltar a ser advertido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão da “ineficácia judicial, a impunidade e a (...) falta de cumprimento do compromisso assumido pelo Brasil de reagir adequadamente ante a violência doméstica”.[19]
Obviamente, a alteração legislativa não significará a panaceia para a questão da violência doméstica no Brasil, porquanto a efetividade de qualquer lei depende da concretização de políticas públicas. Persistirá a dificuldade de intimação do agressor não conduzido em flagrante à Delegacia, e a necessidade de recrudescimento da fiscalização do agressor. Todavia, essa constatação não tem o condão de fossilizar a legislação e servir de muro contra a evolução normativa. É preciso mitigar os obstáculos que a vítima ainda encontra para ser socorrida. Não se enxerga melhor forma de respeitar a histórica luta das mulheres pela afirmação de seus direitos, batalha que não pode ser maculada por interesses corporativistas.
Notas
[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 160.
[2] ATHABAHIAN, Serge. Princípio da igualdade e ações afirmativas. São Paulo: RCS Editora, 2004, p. 18.
[3] Em especial a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (promulgada pelo Decreto 4.377/02) e a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher – Convenção de Belém do Pará (promulgada pelo Decreto 1.973/96).
[4] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo:: Revista dos Tribunais, 2007, p 18.
[5] Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getpdf.asp?t=130748&tp=1>. Acesso em: 14 jun. 2016.
[6] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p.664.
[7] STF, MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/09/99.
[8] Parecer da Comissão de Constituição de Justiça ao PLC 07/2016, Rel. Senador Aloysio Nunes Ferreira, DP 31/05/2016.
[9] SANNINI NETO, Francisco. Lei Maria da Penha e o delegado de polícia. Canal Ciências Criminais, jun. 2016. Disponível em: < http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/lei-maria-da-penha-e-o-delegado-de-policia/>. Acesso em: 15 jun. 2016.
[10] STJ, RMS 43172, Rel. Min. Ari Pargendler, DJe 22/11/2013.
[11] STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007.
[12] STF, HC 115.015, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 27/08/2013; STJ, RHC 47.984, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 04/11/2014.
[13] DIAS, Maria Berenice. Medias protetivas mais protetoras. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br>. Acesso em: 19 jun. 2016.
[14] SANNINI NETO, Francisco. Lei Maria da Penha e o delegado de polícia. Canal Ciências Criminais, jun. 2016. Disponível em: <http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/lei-maria-da-penha-e-o-delegado-de-policia/>. Acesso em: 15 jun. 2016.
[15] STF, ADPF 347 MC, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 09/09/2015.
[16] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; COSTA, Adriano Sousa. Advogado é importante no inquérito policial, mas não obrigatório. Revista Consultor Jurídico, jan. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-14/advogado-importante-inquerito-policial-nao-obrigatorio>. Acesso em: 14 jan. 2016.
[17] SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: Revista dos Tribunais, ano 91, n. 798, abr. 2002; SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiente. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 47. mar.-abr. 2004.
[18] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 219.
[19] CIDH, Relatório 54/2001.
Referências
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