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E o pato, quem paga?

Um estudo sobre a responsabilidade civil estatal por erro do executivo no ambiente regulado das concessões de energia elétrica

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Agenda 23/06/2016 às 16:54

O presente artigo tem por objetivo analisar,sob a perspectiva da responsabilidade civil do Estado, o Caso do "Erro de Cálculo" que estampou as notícias de jornais em 2012 e afeta a todos até os dias de hoje.

Recentemente o tema referente ao cálculo de reajuste tarifado aplicado as concessões de energia elétrica tornaram-se manchete nacional de apelo social que alegam existir um "erro" (até então oculto) nas contas de energia elétrica desde a época das privatizações, mas sem elucidarem o fato e as suas conseqüências por traz da polêmica.

O setor elétrico brasileiro se desenvolveu a partir da iniciativa privada, com a chegada do Grupo Light no país em 1897[1]. Ao reparar a importância de tal setor a Constituição de 1934 passou a definir a competência para legislar sobre energia elétrica da União Federal, que regulou o setor pela promulgação da lei federal denominada de “Código de Águas”.

Com a crise fiscal nos anos 80 o avanço estatal no setor elétrico estagnou, pois o Estado não mais conseguia investir para atender a demanda, sendo obrigado a buscar parceiros privados para evitar um colapso no setor iniciando um novo marco para o setor elétrico.

No modelo anterior, o Estado passava a idéia de que a energia podia ser vendida a preço abaixo do preço de custo, o que ocasionou elevado déficit setorial. Igualmente vários empreendimentos foram construídos sem a necessária busca pela eficiência, o que dificultou uma atualização tecnológica destes empreendimentos[2] no atual modelo regulatório.

A Constituição de 1988 (CRFB), no artigo 173[3], prevê o desenvolvimento da atividade econômica pela iniciativa privada regulada pelo Estado[4], cabendo a este somente prestar diretamente as atividades de utilidade pública essencial e estratégica para a defesa do País. Assim, com o advento da CRFB, o Estado mudava de papel, saindo do papel de provedor para o papel de regulador, que exerce sua fiscalização por meio de entidades especializadas na matéria, chamadas de agências reguladoras. Nesse sentido foi criada a Agencia Nacional de Energia Elétrica- ANEEL, pela Lei 9.427/96, com garantias de autonomia técnica, funcional e administrativa necessárias ao exercício do poder de regulação e fiscalização.

Em meados dos anos 90, o programa de desestatização foi implantado visando transferir para investidores privados as atividades não estratégicas, sendo necessário, para tanto, assegurar a aplicação do postulado da segurança jurídica. Para tanto, o Plano Nacional de Desestatização (PND - Lei 8031/90) juntamente com a Lei das Concessões (Lei 8987/95) criaram a base legal para a privatização do Setor Elétrico que se iniciou com a venda de algumas distribuidoras, que seriam reguladas por meio das cláusulas contratuais[5] previstas nos próprio contrato de concessão, já que ainda não existia um marco regulatório para o setor que nascia.

Ou seja, até o advento das privatizações em 1995, as concessões de energia elétrica no Brasil não eram regidas por Contratos de Concessão de Distribuição, que só vieram a surgir após a Lei 9.074, de 7 de julho de 1995. Nessa época o conceito que regia os contratos de concessão baseava-se no risco daquele que contratava com a Administração Pública, isso é, o famoso "princípio de equilíbrio econômico dos contratos" não era explícito, e por isso não havia qualquer previsão da fórmula de cálculo dos reajustes tarifários anuais[6], que só veio a ser implantada em maio de 1996, sendo esse cálculo processado e imposto pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL (agência reguladora do setor elétrico).

Em 2007 o TCU questionou a aplicação da "fórmula", mas esta foi confirmada pela ANEEL[7]. Três anos depois a "fórmula" foi novamente questionada, dessa vez pela Associação de defesa dos consumidores- ADECON perante a Secretaria De Fiscalização de Desestatização - SEFID do TCU que se manifestou no sentido de que os resultados dos procedimentos e cálculos realizados pela ANEEL nos referidos processos encontravam-se conforme as regras de reajuste estabelecidas nos contratos de concessão, mas ressaltou que o método adotado criado e adotado pela agência reguladora apresentava uma grave falha conceitual que, em um ambiente não estável, levaria ao desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, devendo esse equívoco metodológico ser corrigido pelo ente regulador nos futuros cálculos, de modo a não permitir que ocorram ganhos de escala advindos do crescimento da demanda, por serem indevidamente absorvidos pela "Parcela B".

Note que em momento algum o parecer da SEFID disse que a metodologia empregada não devia permitir o lucro das concessionárias, mas pelo contrário ressaltou que a receita auferida pelo concessionário, com a distribuição e venda de energia, não deve cobrir apenas os custos, mas também deve ser vantajosa sob o ponto de vista negocial, de forma a estimular e justificar os investimentos privados no setor.

A orientação da SEFID foi atendida pela ANEEL, que promoveu uma Audiência Pública a fim de estabelecer novas regras metodológicas a ser aplicada aos contratos de concessão em vigor, mas não mencionou (de forma acertada) qualquer devolução financeira aos consumidores, o que veio a frustrar a associação interessada.

A Tarifa como forma de regulação

O mercado brasileiro de energia elétrica se divide em quatro segmentos: Geração, Comercialização, Transmissão e Distribuição. Os dois últimos são considerados monopólios naturais - por características de indústria de rede, nas quais os custos marginais são decrescentes e, portanto, a introdução de um concorrente traria maiores custos para a sociedade.

Dessa forma, os segmentos de Transmissão e Distribuição são ofertados como serviço público que, em regra, são prestados por concessionárias, com preços ou tarifas reguladas, enquanto nos outros dois segmentos é possível a livre concorrência.

A lei 9.427/96[8] trouxe uma nova política tarifária fundada em um sistema de regulação por incentivos, que tem por finalidade o aumento da eficiência e da qualidade na prestação do serviço em consonância com o princípio da modicidade tarifária[9]. Nesse sentido, a remuneração das concessionárias de energia elétrica é calculada sob a premissa de que a tarifa aplicada ao usuário gera a receita necessária para cobrir os custos e os lucros da empresa. Requerendo, portanto, o forte controle do Agente Regulador, responsável por definir padrões de qualidade e estipular o modelo que regulará as tarifas a serem aplicadas, sempre em consonância com o princípio da modicidade tarifária e os demais princípios administrativos.

Até a década de 90 praticava-se, tanto para a Transmissão e Distribuição quanto para a Geração de energia, o modelo de custo do serviço com remuneração garantida[10], no qual os operadores possuíam uma remuneração garantida sobre os investimentos realizados e o reconhecimento pleno dos seus custos operacionais, pois presumia-se que os operadores naturalmente buscariam operar com a máxima eficiência, o que não se verificou na prática sendo necessário mudar o paradigma até então adotado.

No novo modelo, a ideia de eficiência foi destacada, alterando o conceito remuneratório anterior: agora os Geradores devem disputar preços de forma concorrencial nos leilões de energia; os Transmissores passaram a ter sua receita regulada, independente do fluxo de energia; e as Distribuidoras passaram a ter suas tarifas reguladas, visando um incentivo à redução de custos operacionais, inadimplência e perdas não técnicas[11].

No Brasil, aplicam-se modelos diferentes para os segmentos de Transmissão e de Distribuição. Para a transmissão, optou-se pelo sistema de Receita Regulada (revenuecap) que prevê uma limitação, com revisões periódicas, da receita total das concessionárias para um determinado período. Já para a distribuição, optou-se pelo sistema de Tarifa Regulada (pricecap) no qual o preço é elemento de regulação estipulado pelo poder público por meio de cálculo previsto nos contratos de concessão, objetivando estimular o concessionário regulado a imprimir novas formas de atuar em busca de maior eficiência e maiores lucros (MAIA, 2012).[12]

Deste modo, pode-se dizer que o objetivo do regulador de um serviço público com características de monopólio natural, como é o caso da distribuição de energia elétrica, é emular a competição, dando estímulos para a busca da eficiência e maximizando os benefícios aos consumidores.

Interessante notar que cabe ao Estado definir, mediante lei, quais serão as políticas públicas a serem adotadas, como a diversificação da matriz energética e a universalização do serviço. Enquanto ao ente regulador (ANEEL) cabe estabelecer, por meio de indicadores de duração e freqüência de interrupção, as formas e condições segundo as quais o serviço deve ser prestado (cláusulas de serviço), além das metas de eficiência na distribuição (níveis de perdas técnicas e não técnicas) e as formas de reajustes, na qual se insere a "Fórmula" que levou o setor elétrico as primeiras páginas de jornais.

Para fins de cálculo das tarifas de energia elétrica, a receita que remunera as distribuidoras é dividida em duas parcelas principais. A primeira, denominada de Parcela A, compreende os chamados custos não- gerenciáveis - itens que o concessionário não tem poder de gerenciamento, tais como tributos e compra de energia. Já na Parcela B estão os custos gerenciáveis, isto é os que dependem diretamente da estrutura do agente econômico, como os custos de operação e manutenção, investimentos, quota de depreciação e remuneração do capital. (MAIA, 2011)[13].

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Em relação aos custos não gerenciáveis (Parcela A), o concessionário tem seus riscos atenuados, pois os custos são repassados - por meio da tarifa - aos usuários do serviço, que assumem o risco de demanda, posto que ao concessionário não pode ser atribuído nem ganhos nem perdas decorrentes dos itens de custos sobre os quais não tenha poder de gerenciamento[14].  Por outro lado, no regime de regulação por incentivos, a prestação do serviço público é remunerada em função da tarifa limite definida pelo regulador (pricecap), e nesse caso o concessionário assume o risco do negócio, incluído o da variação de mercado[15], sendo os ganhos de escala e eficiência apropriados pelos concessionários e posteriormente compartilhados com os usuários por meio da aplicação do chamado Fator X.

O princípio do Equilíbrio Econômico Financeiro nos Contratos de Concessão e o “Erro da Fórmula" do Agente Regulador

Com a pós modernidade surgiu um novo conceito de Estado, que se destaca pela adoção de instrumentos de regulação e fiscalização das atividades econômicas, bem como pela prestação de serviços públicos mediante contratos de concessão. Nesse Estado Gerencial, os princípios do direito contratual clássico, como a autonomia privada, pacta sunt servanda e lexinter partes foram atenuados e passaram a ser enxergados pela ótica da função social do contrato e da boa-fé objetiva[16], o que trouxe novos ares aos contratos de concessão, que passaram a ser entendidos como instrumentos à disposição do Estado regulador para a realização de seus objetivos na ordem econômica.

Dessa forma, pode-se dizer que os contratos de concessão de serviço público são contratos de colaboração no qual o particular concorda em subordinar-se ao regime especial de direito público na forma adesiva, para atender os fins públicos mediante a exploração de uma atividade lucrativa e de interesse publico por um prazo determinado, por esse motivo o ente regulador ao firmar o contrato de concessão prevê certas cláusulas destinadas a manter o equilíbrio econômico-financeiro e a promover a modicidade tarifária do serviço.

Porém, enquanto a modicidade tarifária, apesar de essencial, não deve ser entendida como sinônimo de “tarifa barata”, pois tarifa módica é a menor tarifa possível para garantir a segurança do abastecimento energético e a qualidade dos serviços prestados, a ideia de equilíbrio econômico-financeiro da concessão deve ser entendida como um princípio regulador, uma garantia aos contratantes de que a equação original do contrato será mantida ao longo do exercício da concessão, sendo permitida a alteração do valor tarifário em três hipóteses legais: no reajuste anual da tarifaque visa repor as perdas decorrentes da inflação e visando a manutenção do poder de compra do concessionário considerando a variação do IGP-M e o Fator X definido na revisão; na revisão automática, conforme o artigo 9º §3º da lei 8987/95[17], que traz a hipótese do fato do príncipe, isso é possibilita ao concessionário a revisão automática da tarifa quando houver alteração nos tributos incidentes sobre a atividade, excetuando aqueles relativos a renda; e na revisão periódica da tarifa, para ajustar fatores que tenham ocasionado perdas ou ganhos imprevisíveis para qualquer das partes, alterando o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, objetivando garantir uma oferta de energia maior que a demanda.

Essa última realizada geralmente a cada quatro anos com o objetivo de definir o nível tarifário para o período futuro, por meio do cálculo do reposicionamento tarifário[18] e do chamado Fator X, que é o índice fixado pela ANEEL para compartilhar entre concessionário e usuários os ganhos de produtividade estimados para o período, em prol da eficiência e da modicidade tarifária.

Assim, em um cenário comprovadamente realista de constante crescimento da demanda, ainda que em situações de baixo aquecimento econômico, esse novo modelo sempre se prestará a assegurar uma oferta de energia maior que a demanda, uma vez que desconsidera as variações futuras.

E é nesse ponto que se encontra o erro da "fórmula" criada pela ANEEL e questionada pela ADECON, em2009, quando foi verificado que a metodologia de cálculo prevista nos contratos e a conta de compensação anteriores a 2002 não evitavam tais distorções nos reajustes tarifários periódicos, pois não capturavam as diferenças de custos e nem consideravam as variações de mercado[19]. Ou seja, os critérios constantes da política tarifária estabelecida através da Portaria Interministerial MF/MME n.º 25/2002[20] propostos pela ANEEL estavam em descompasso metodológico, pois geravam um pagamento a maior nos mercados em que se observou um aumento de demanda de energia elétrica, e um prejuízo nos mercados que tiveram uma diminuição da demanda, afetando o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão.

A fim de solucionar tal celeuma, a ANEEL[21]propôs termo aditivo[22] aos contratos de concessão de distribuição de energia elétrica que com nova fórmula de cálculo a ser aplicada com efeitos ex nunc, isso é sem afetar os valores anteriormente recebidos a maior ou a menor[23], pois a distorção tarifária - segundo os documentos elaborados pelo TCU e ANEEL- ocorreu face a ambigüidade gerada pela interpretação dos termos “valor” e “custo” constantes da portaria interministerial[24]. Esses termos foram entendidos somente como à variação de preços, sendo desconsideradas as variações quantitativas, relativas ao tamanho do mercado, o que fez com que a diferença fosse atribuída aos resultados correspondentes aos custos gerenciáveis erroneamente. Assim, eventuais diferenças a maior ou a menor implicavam, respectivamente, ganhos ou perdas igualmente indevidas aos concessionários, em função da variação do mercado consumidor correspondente a cada concessionário.

A AGU no Parecer CONJUR n.º 335/2009 [25] esclareceu que as variações quantitativas não foram originalmente consideradas na portaria por dificuldade logística, por haver - na época - uma impossibilidade operacional de discriminar a arrecadação dos itens de custo não gerenciáveis. Assim, deve-se questionar se houve realmente um “erro” de fórmula, ou se seria possívelaplicar a teoria da imprevisão para explicar o caso da "Fórmula".

Para melhor entendermos o problema, suponha que um determinado processo de reajuste tenha definido uma tarifa de R$100/KWh, considerando uma demanda de 100KWh. A receita esperada, portanto, é de R$ 10.000. Em outras palavras, a tarifa proposta deve garantir o poder de compra da empresa para que seja capaz de cobrir seus custos e fornecer a energia demandada. Caso a demanda aumente em 20%, para 120KWh, o poder de compra da empresa também aumentará em 20%, para R$12.000. Contudo, não é correto afirmar que os custos da empresa aumentam na mesma proporção, visto a existência de custos fixos dentro das parcelas A e B.

Ocorre que os contratos de concessão questionados foram assinados nos anos de 1990, nessa época não era aplicado o conceito de neutralidade, o que permitia que as empresas assumissem o risco associado às variações de preços e à previsão da demanda de energia, lucrando se houvesse superação das expectativas e amargando prejuízo no caso contrário. Somente a partir de 2002, o Governo aprovou diversas correções ex post no cálculo tarifário, para assegurar a neutralidade dos repasses, porém essas correções não alcançaram os efeitos da variação de mercado sobre os encargos setoriais, gerando prejuízo em alguns casos como destacou NELSON FONSECA[26]:

Neste caso particular, o cálculo tarifário seria neutro apenas quando a venda de energia nos 12 meses subseqüentes ao reajuste tarifário fosse igual á mensurada nos 12 meses anteriores. Como só por uma coincidência ocorreria essa igualdade, havia espaço para um aperfeiçoamento metodológico – o que é muito diferente de um erro de cálculo.

Conforme a legislação pátria, a ANEEL possui a atribuição legal, por delegação do poder concedente, de outorgar, firmar contratos de concessão e fiscalizar a respectiva execução bem como a discricionariedade técnica de regular a prestação dos serviços públicos de distribuição de energia elétrica. Assim, se tivesse ocorrido essa falha a agência teria a obrigação de corrigir seus efeitos, mas uma eventual revisão dos contratos não poderia ser feita unilateralmente, devendo haver a concordância das partes.

Porém, essa aplicação metodológica defasada, não poderia representar um “atuar com culpa grave” do Estado, capaz de gerar um o dever de indenizar. Assim, a solução dada pela ANEEL ao propor o aditivo que corrigia a fórmula com efeitos ex nunc está de acordo com as possibilidades técnicas e jurídicas para sanear o problema com eficiência, como evidenciou a SEFID no processo[27], apesar do entendimento contrário adotado pelo TCU.

Agência reguladora e as "decisões" do TCU

O plano de privatização tinha por objeto a melhoria no desempenho das políticas públicas, visando uma atuação voltada aos resultados e não aos procedimentos, propondo a transferência das atividades não essenciais para os agentes privados. Nesse contexto surgiu a ideia das agências reguladoras[28] para dar maior segurança jurídica às empresas que realizam investimentos de longo prazo no país, facilitando a movimentação dos capitais globalizados, e imunizando às variações de curto e médio prazo da arena político-partidária.

As agências reguladoras são caracterizadas por alguns doutrinadores como detentoras de uma independência em relação ao Poder Executivo Central, mas na realidade, as agências possuem apenas uma “autonomia reforçada” se comparadas com as demais entidades da Administração Indireta, pois, embora apresentem uma maior liberdade de agir, essa autonomia se encontra dentro dos limites fixados por uma instância normativa superior. Além disso, a autonomia regulatória é constrangida pela necessidade de interação com os atores sociais que desejam manifestar suas posições a fim de permitir um exercício adequado das suas atividades nos setores em que atuam.

Nesse sentido, a AGU editou o PARECER nº AC-051[29]que redefiniu o conceito clássico de autonomia das agências reguladoras ao defender o cabimento do chamado Recurso Hierárquico Impróprio, baseando-sena inexistência de área administrativa imune à supervisão ministerial. Porém, tal recurso só poderia ser oposto quando a decisão da diretoria da agência desbordar os limites de suas competências legais, ou venha a invadir o âmbito da definição de políticas públicas.

A Decisão da ANEEL de reajustar a metodologia empregada, sem no entanto determinar a devolução dos valores arrecadados pela impropriedade metodológica aplicada nos anos anteriores foi questionada pelo TCU que entendia pela necessidade de devolução dos valores.Porém, não há o que se falar em vinculação hierárquica entre as agências reguladoras e o TCU, ou entre estas e o Ministério vinculado, pois o que existe é apenas uma vinculação política, que não implica em uma subordinação hierárquica.

Vale lembrar que a autonomia é o que caracteriza as agências reguladoras e está expressa no Direito Positivo Brasileiro sob três faces distintas: (i) a autonomia funcional, que concede à agência reguladora a possibilidade de formulação de políticas públicas, assegurando-lhe a posição de última instância administrativa; (ii) a autonomia orgânica, que permite a nomeação dos dirigentes por prazo determinado, inibindo a exoneração sem prévio contraditório e ad nutum; e (iii) a autonomia financeira, a fim de evitar a dependência de repasse de recursos do Poder Executivo Central. A sua receita teria como base o recolhimento de “taxas regulatórias”, já que exercem o dever de fiscalização sobre os agentes econômicos.

Dessa forma, as decisões tanto do TCU, como do Ministério de Minas e Energia não podem ser tidas como vinculativas, apesar dos Ministérios poderem exercer uma supervisão sobre as agências que “não quer dizer que, quanto às matérias de competência das agências, a Administração Direta deva necessariamente intervir” (SUNDFELD, 2006, p. 27). Em outras palavras, a supervisão ministerial faz-se necessária, mas não deve violar a autonomia[30] que foi concedida às agências. Nesse sentido, Marcos Juruena[31] sustenta a tese segundo a qual "escapa às atribuições dos Tribunais de Contas o exame das atividades dessas autarquias especiais quando elas não envolvem dispêndio de recursos públicos."

A Responsabilidade da Administração Pública

Outrossim, a responsabilidade da Administração Pública surge em razão de sua atuação irregular ou quando o serviço funcionou abaixo dos padrões exigidos pela sociedade.Porém, a natureza desse tipo de responsabilização não é uníssona na doutrina.

Na ótica de Celso Antônio Bandeira de Mello,[32] a hipótese de responsabilização do Poder Público por danos decorrentes do atuar administrativo deficiente teria natureza subjetiva, isso é caberia ao particular provar a culpa ou o dolo do atuar da Administração Pública. Excetuando-se apenas no caso de atuação direta Estatal, que caracterizaria uma responsabilidade objetiva, no qual se exige tão-somente a relação de causalidade, só se eximindo da responsabilidade “se faltar o nexo entre o comportamento comissivo do Estado e o dano[33].”

De maneira mais restritiva, José Carlos de Oliveira[34] defende que “a obrigação ressarcitória só ocorrerá quando o Poder Público atuar com culpa grave ou omissão injustificável”.Desse modo, o dano sujeito à responsabilidade pública, deve ter como causa imediata a atuação ou a omissão da Administração Pública para gerar um dano injusto, previsível e evitável, como destaca José Cretella Júnior[35]:

“Não apenas a ação produz danos. Omitindo-se, o agente público também pode causar prejuízos ao administrado e a própria Administração. A omissão configura a culpa in omittendo ou in vegilando. São casos de inércia, casos de não-atos. Se cruza os braços ou não se vigia, quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o bonus pater familiae, nem como bonus administrador. Foi negligente. Às vezes imprudente e até imperito. Negligente, se a solércia o dominou; imprudente, se confiou na sorte; imperito, se não previu a possibilidade da concretização do evento. Em todos os casos, culpa, ligada á idéia de inação, física ou mental”.

Independentemente de qual linha doutrinária se adote, verifica-se que mesmo se a “Fórmula” fosse considerado como um equivoco cometido pela agência reguladora - não corrigido à época da ciência do fato (2007) - não caberia responsabilizar os concessionários, pois não haveria nexo causal entre o atuar destes e os danos patrimoniais eventualmente gerados, já que o cálculo fora imposto pela Agencia Reguladora, devendo esta responder e subsidiariamente o próprio Estado pelos danos causados - tanto os suportados pelas concessionárias como o suportado pela sociedade - desde que comprovado a culpa do Estado[36].

A inviabilidade da devolução requerida pelas associações e deputados.

A discussão do caso do “erro” de cálculo alcançou um grande público, pois alguns membros da CPI da Conta de Luz entenderam que a ANEEL teria cometido um equívoco, o que instigou alguns institutos de defesa do consumidor a cobrarem do TCU a devolução de valores, que, segundo eles, seriam uma “apropriação indébita das empresas”.

 Nesse sentido, Associações de proteção ao consumidor ajuizaram ações civis públicas contra a ANEEL para pedir a compensação aos consumidores dos valores pagos[37].

A ANEEL, por sua vez, defendeu[38] não ter ocorrido qualquer ilegalidade ou erro na aplicação da fórmula paramétrica do reajuste presente nos contratos de concessão, que implicaria na impossibilidade jurídica do ressarcimento pleiteado[39]. Outrossim, o Processo administrativo na ANEEL resultou na celebração de termo aditivo aos contratos de concessão para eliminar os efeitos da distorção tarifária, por meio da adequação da metodologia de cálculo do reajuste tarifário anual, solucionando o referido problema.

Pautando-se nestes argumentos, na independência da ANEEL e na legalidade da solução apresentada por esta, o juiz da 3ª Seção Judiciária do TRF1de MG julgou improcedente as demandas das associações[40], por entender que inexiste qualquer ilegitimidade nos atos praticados pela ANEEL, e, portanto, não se poderia afirmar que ocorreu enriquecimento sem causa por parte das concessionárias, posto que o risco de crescimento do mercado devia ser absorvido por elas como dispunha o contrato de concessão e o modelo de serviço pelo preço.

Os efeitos da decisão da ANEEL e os casos similares abordados em Ações Civis Públicas.

A decisão da ANEEL, no caso ora analisado, foi baseada na segurança jurídica e na impossibilidade fática da devolução requerida pela Associação de Consumidores, sendo a última decisão no âmbito administrativo. Porém, a despeito da norma do inciso XXXV do art. 5º da CRFB[41], essa questão chegou ao judiciário.

Quanto a esse aspecto, alguns autores, como o Min. Barroso[42],postulam que "o controle judicial do ato administrativo, consoante doutrina tradicional, seria limitado aos aspectos de legalidade, não alcançando o mérito da decisão administrativa[43]." Nessa esteira, o controle dos atos administrativos das agências reguladoras devem ser observados pelo judiciário com certa cautela, só excepcionando tal regra quando as decisões emanadas pela agência reguladora forem inconstitucionais, ou quando não forrem razoáveis ou afrontarem a moral administrativa, sob pena de se cair no domínio da incerteza e dos subjetivismos, minando a segurança jurídica necessária a manutenção do próprio setor regulado.

A Vitória do Principio da Segurança Jurídica: um final não tão feliz

Os tribunais ao se depararem com ações[44] individuais e coletivas, diante da ausência de comprovação material de qualquer prejuízo ou de nexo causal, vêm corroborando com o entendimento supracitado, ratificando a decisão da ANEEL em todas as instâncias[45].

Tais julgados[46] demonstram que foi a decisão do ente regulador de prezar pela segurança jurídica foi acertada, pois do contrário, o regulador teria desrespeitado os contratos firmados para atender um anseio midiático, “o que elevaria o risco regulatório e aumentaria o custo de capital. Isso é, em médio prazo, os consumidores sentiriam em seus bolsos o efeito desse retrocesso, pois ao contrário do que pregam alguns, as tarifas ficariam mais altas e não mais baixas"[47].

Outrossim, o principio constitucional da segurança jurídica- um dos pilares do Estado Democrático de Direito - impede a desconstituição injustificada de atos ou situações jurídicas, quando estes não forem ilegais e, mesmo quando estes estejam em desconformidade com a lei, não há razão para invalidá-los caso tenham atingido sua finalidade, sem causar dano algum, seja ao interesse público, seja à direitos de terceiros.

Nesse sentido, a lei de processo administrativo - Lei 9784/99, veda em seu artigo 2º a interpretação retroativa dos contratos firmados com a Administração Pública[48], sem no entantoobstar a invalidação de atos administrativos, pois nesse caso, haveria ofensa não apenas à legalidade, mas, sobretudo ao princípio da isonomia[49].

Por outro lado, a desconstituição dos efeitos de atos administrativos já realizados há mais de cinco anos feriria a razoabilidade, por esse motivo o Decreto-Lei nº. 20910/32 proclama a prescrição para os administrados que questionarem, após este prazo, os atos administrativos.

Do mesmo modo, o princípio da preclusão que funciona em favor do ente público, em submissão a igualdade preconizada pelo caput do art. 5º da CRFB, também se estende ao administrado, privilegiando o fato consumado[50].

Assim, a segurança jurídica funciona como resultado de um conjunto de técnicas normativas encaminhadas a garantir a própria consistência do sistema, que tem no fato consumado um dos elos de sustentação e por esse motivo não permite o desfazimento de atos que já produziram efeitos após vários anos, mesmo que sejam considerados viciados, apagando novos efeitos ou interpretações contrárias as que geraram efeitos por certo lapso de tempo. E é essa estabilidade que projeta a segurança das relações travadas com o poder público e estabiliza a credibilidade do País perante investidores externos, comojá se pronunciou o eminente Min. Cernicchiaro, no REsp.nº. 136.204-RS[51] ao afirmar que "na vida social, importa que não se eternize o estado de incerteza e de luta quanto aos direitos das pessoas; por isso, consolida-se a situação criada pelo ato nascido, embora com pecado original.”

Assim, nenhuma dúvida existe que as relações anteriormente e totalmente consumadas são inatingíveis, quer pela mudança de interpretação, quer pela impossibilidade da nova norma jurídica retroagir para alcançar a situação já sepultada pelo tempo, como vem decidindo a Jurisprudência[52] no intuito de preservar a boa-fé do administrado ao convalidar o ato já praticado, mesmo que“irregulares” pela ótica da Administração, imperando o princípio clássico de que “a parte útil não deve ser afetada pela inútil” (utile per inutile sem vitiatur).[53]

A indeterminação e a perpetuidade da Administração Pública rever seus atos ad eternum, criaria verdadeiro caos para a sociedade, no campo da regulação, que busca a estabilidade, por meio do respeito às leis e aos contratos.

Com o advento da constitucionalização do Direito, a vedação constitucional ao confisco deve ser lida teleologicamente, e não restritivamente aos tributos, devendoportanto ser conjugada ao artigo 37 da CRFB, no qual o Poder Público não pode agir imoderadamente, pois as atividades governamentais acham-se condicionadas pelo principio da razoabilidade, da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima[54].

Notadamente, a relação entre poder concedente e concessionárias se dá por intermédio dos contratos de concessão, devendo esta relação ser baseada na obediência às Leis e aos contratos firmados, para garantir a sustentabilidade do setor de energia elétrica e respeitar os princípios constitucionais.

Dessa feita, a segurança jurídica e a proteção da confiança - consagradas na jurisprudência do STF - impediriam que, após cerca de dose anos, no processo nº. 2009.38.00.027553-0 fosse alterada a disciplina aplicada aos reajustes tarifário de forma unilateral e retroativa,como destacou o próprio Ministério Público do TCU ao reconhecer a necessidade de preservação da disciplina vigente anteriormente à adoção do termo aditivo ao contrato de concessão.

Outrossim, se o acerto retroativo fosse legal e tivesse sido aplicado, nem sempre beneficiaria os consumidores, visto que em alguns casos as empresas tiveram uma variação negativa de mercado, o que acarretaria na condenação dos consumidores - deste mercado - a ressarcir as distribuidoras que tiveram prejuízos por conta dos contratos assinados legalmente e que continham a referida "Fórmula".

Dessa feita, um país como o Brasil não poderia vir a desrespeitar os contratos - que garantem a estabilidade em setores fundamentais para a economia e para a sociedade, como o de energia elétrica - somente para agradar a opinião da mídia.

Há, em verdade, a necessidade de mudança no pensamento jurídico Brasileiro, para que alcancemos um maior respeito aos princípios constitucionais sem que haja uma super-produção legislativa, preservando a idéia de uma administração gerencial mais consensualista e menos impositiva no âmbito da regulação, sem no entanto perder a tecnicidade necessária ao bom funcionamento do setor.

Sobre a autora
Cristiana Campos Mamede Maia

Advogada, Sócia do Garcia Abreu Advogados Associados e Pesquisadora da FGV-Rio; Pós-Graduada em: Direito Público pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro - EMERJ (2016); em Direito do Estado e Regulação pela Fundação Getúlio Vargas-FGV/Rio (2013); Direito Processual Civil pela Universidade Candido Mendes- IAVM (2010); Especialista em Direito Imobiliário pela Universidade Candido Mendes-UCAM (2008); Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes-UCAM (2011).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo baseado no TCC apresentado para conclusão do curso de Pós-graduação em Direito do Estado e Regulação na FGV-Rio, sob orientação do prof. e Procurador do Estado Flávio Amaral e publicado em: MAIA, Cristiana. "A RESPONSABILIDADE CIVIL ESTATAL POR 'ERRO' DO EXECUTIVO NO AMBIENTE REGULADO". Boletim de Direito Administrativo. São Paulo: NDJ, vol. 1, 2015. P. 45-56. ISSN nº 1981-5522.

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