A Lei de Licitações e Contratos Administrativos, nº 8.666/93, consigna as “normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
A Administração Pública, necessitando da contratação de fornecimentos de bens, prestação de serviços ou obras, deve realizar o respectivo procedimento licitatório para selecionar, dentre os interessados, os futuros contratados, após preenchidos os requisitos necessários.
Os requisitos a serem demonstrados pelas licitantes, concernentes à habilitação, estão previstos nos artigos 29 a 31 da Lei Federal n.º 8.666/93. Dentre as disposições nela contidas, o artigo 31 estabelece os requisitos de qualificação econômico-financeira.
Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a:
(...)
II - certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física; [GRIFO NOSSO]
Portanto, quaisquer interessadas em contratar com a Administração Pública, devem apresentar, para comprovar sua qualificação econômico-financeira, dentre outros documentos, a certidão negativa de falência e concordata.
Cumpre-nos salientar que a exigência contida no inciso II, do artigo 31, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos foi erigida à luz do Decreto-Lei n.º 7.661, de 21 de junho de 1945.
Passados mais de sessenta anos da Lei de Falências, instituída pelo Decreto-Lei n.º 7.661/45, foi editada a Lei n.º 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário e sociedade empresária.
Consta, no artigo 47, que:
A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Verifica-se que a recuperação judicial almeja a manutenção da empresa através de um plano de recuperação judicial, contrariamente ao instituto da falência que encerra as atividades do empresário ou sociedade empresária. Portanto, o que se pretende é viabilizar a recuperação da empresa em crise.
A recuperação judicial distancia-se do antigo conceito de “concordata”, previsto no Decreto-Lei n.º 7.661/45, instituto este que fora extinto. Enquanto a concordata limitava-se à remissão de dívidas e dilação de prazos para pagamento dos credores, a recuperação judicial prevê um plano de reestruturação com intensa participação dos credores.
Marçal Justen Filho (2014, p. 638), assim afirmou sobre os dois institutos:
A recuperação judicial (e extrajudicial), mecanismo introduzido em substituição à antiga concordata, desperta a atenção. Deve-se ter em vista que a recuperação judicial não é um novo nome para o mesmo instituto. Suas finalidades e seu regime jurídico são distintos dos da antiga concordata. No entanto, afigura-se o entendimento dos efeitos da concordata sobre a contratação administrativa deverá ser aplicada à recuperação judicial.
Ao que nos parece, num primeiro momento, o doutrinador equiparou os dois institutos, de modo que, na licitação, o documento que demonstraria a regularidade em um instituto, aplicar-se-ia, também, ao segundo.
Marçal Justen (2014, p. 638) prossegue em suas alegações, afirmando:
Em primeiro lugar, mantém-se a presunção de insolvência relativamente ao sujeito que pleiteia a recuperação judicial. Esse é o aspecto fundamental, que conduz à inviabilização da contratação administrativa. Esse é o fundamento pelo qual se reputa que também a recuperação extrajudicial se traduz em impedimento à habilitação para participação em licitação.
Diferentemente do que ocorre na falência, onde o credor é recorrentemente o sujeito ativo da ação, na recuperação judicial, quem possui legitimidade para requerer esta providência é o próprio empresário ou a sociedade empresária, o que afasta a alegação de desconhecimento da ação.
Há que se ressaltar que, nos procedimentos licitatórios e em cumprimento ao artigo 31 da Lei de Licitações, mais precisamente em seu inciso II, a empresa interessada deverá juntar aos seus documentos de habilitação, para comprovação da regularidade, a certidão negativa de falência ou concordata.
Conforme já abordado e, uma vez que inexiste atualmente o instituto da concordata, as certidões passaram a ser solicitadas para demonstrar que a empresa não é parte em ação de falência ou recuperação judicial.
Antes de adentrarmos ao tema desse artigo, necessário se faz destacar que, nas licitações públicas, é vedado à Administração requerer certidões negativas de débitos, passando a solicitar certidões que demonstrem a regularidade da empresa. Isso porque, além da certidão negativa, as interessadas podem, ainda, apresentar certidões positivas com efeito negativos, o que possui o mesmo efeito prático.
O Tribunal de Contas da União pacificou tal entendimento, através da súmula 283 que colacionamos:
Para fim de habilitação, a Administração Pública não deve exigir dos licitantes a apresentação de certidão de quitação de obrigações fiscais, e sim prova de sua regularidade.
Desse modo, o que se permite nas licitações é que os documentos se restrinjam a comprovar a regularidade da empresa, não à quitação de suas obrigações.
Vencidas tais considerações, acerca dos documentos pertinentes à comprovação de regularidade fiscal, temos que o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo modificou seu entendimento acerca da participação de empresas em recuperação judicial.
O TCESP, desde a edição da Lei nº 11.101/05, sempre sinalizou no sentido de que a recuperação judicial teria sucedido o instituto da concordata, posicionamento externado no julgamento dos processos TC-925.989.14-7 e TC-3811.989.13-6, entre outros.
Atualmente, esse entendimento se modificou, alterando o posicionamento até então consolidado. A modificação do posicionamento acerca da matéria, em muito, se deu ao julgamento pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, na Medida Cautelar n.º 23.499/RS, que afastou a exigibilidade de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial em licitação, permitindo a participação no certame de empresa em recuperação.
Entende agora o órgão fiscalizador (TCESP) que, se a empresa possui um plano para recuperação e o submete ao crivo de seus credores, demonstra que possui capacidade em contratar com a Administração Pública e reerguer seus negócios, através de um plano homologado e em vigor. É o que aduz a decisão proferida nos TCs 3987.989.15-9 e 4033.989.15-3, que mencionamos:
[...] Deste modo, a empresa que obteve a concessão da Recuperação Judicial não está, de antemão, inapta para ser contratada, podendo assumir riscos e compromissos nos limites previstos no seu Plano de Recuperação que, diferentemente da concordata, possui maior flexibilidade na sua negociação junto aos credores.
Todavia, a mera existência de plano de recuperação judicial, por si só, não garante a capacidade da empresa em executar as obrigações contratuais, até porque o descumprimento de qualquer obrigação estabelecida no plano acarretará a convolação da recuperação em falência (art. 61, §1º). [...]
[...] Importante frisar que a apresentação da certidão de concessão de recuperação judicial não suprime a obrigação de a empresa comprovar todos os quesitos requeridos no certame, inclusive econômico-financeiros, pois necessário conferir igual tratamento a todas as licitantes, perante o princípio da isonomia. [GRIFO NOSSO]
Podemos observar que o simples fato da empresa estar em recuperação judicial, por si só, não pode obstá-la de participar do certame. Contudo, deverá cumprir com todas as demais exigências editalícias, conforme segue:
[...] Nestes termos, o que pude observar é que a não apresentação da certidão negativa de recuperação judicial não pode resultar na inabilitação imediata da licitante, mas deve ser sucedida de avaliação dos demais requisitos de habilitação econômico-financeira que, no caso de empresas naquela situação, deve abarcar a verificação de que o Plano de Recuperação encontra-se vigente e atende as exigências “indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações” (art. 37, XXI, CF). [...]
[...] Feitas essas ponderações, considero, de plano, ilegal a previsão de vedação de participação no certame de empresas que estejam em situação de recuperação judicial, podendo, todavia, ser requisitada a certidão negativa durante a fase de habilitação. [...]
Após a decisão transcrita acima, o TCESP consolidou o entendimento de que empresas em recuperação judicial poderiam participar das licitações, sendo condenada cláusula editalícia com qualquer tipo de restrição, conforme depreende-se das decisões nos processos de representação contra editais de licitação: TC-5725.898.15, TC-5607.989.15, TC-7205.989.15, TC-7205.989.15, TC-7607.989.15, TC-7077.989.15, TC-7878.989.15, TC-9796.989.15, TC-362.989.16, TC-430.989.16, TC-676.989.16, TC-735.989.16, dentre outras.
Portanto, assegura-se, ao menos nos Municípios sujeitos à fiscalização do TCESP, que, no caso da empresa em recuperação judicial, esta poderá participar dos certames, desde que preenchidos os requisitos constantes na decisão TC-3987.989.15-9 e 4033.989.15-3.
Deste modo, faz-se imperiosa a adequação dos instrumentos convocatórios lançados pelos órgãos jurisdicionados do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, evitando, com isso, a paralização e, consequente, retificação dos editais de licitações, não comprometendo o planejamento das ações governamentais.
Referências:
BRASIL. Lei n.º 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8666cons.htm>. Acesso em 04 jul. 2016.
BRASIL. Lei n.º 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em 04 jul. 2016.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Súmula n.º 283. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/juris/Web/Juris/ConsultarTextual2/Sumulas.faces?textoPesquisa=*%3A*&>. Acesso em 04 jul. 2016.
FILHO, M. J. A questão da recuperação judicial e extrajudicial prevista na Lei 11.101/2005. In: ________. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 638.
GONÇALVES, M. G. V. P. R.; GONÇALVES, V. E. R. Direito Falimentar. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Responsável: Mara Ferrari, Secretária Municipal de Promoção e Desenvolvimento Social. TC 7077.989.15-0 e 7079.989.15-8. Disponível em <http://www4.tce.sp.gov.br/sites/tcesp/files/downloads/14_-_epe-m-08-sm-006-00007077-989-15-0_-_paulinia.pdf>. Acesso em 04 jul. 2016.