Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Direito penal mínimo, legislação álibi e o jeito brasileiro de resolver conflitos

Agenda 09/03/2017 às 09:13

Mais importante do que a legislação criminal é a realização de investimentos sociais, em segurança pública, em resolução definitiva de conflitos sociais, para só então buscar mais penas, mais condenações ou mais punições, o crime não pode ser sinônimo de atuação do Estado, deve ser sim parâmetro de sua ineficácia.

Quando se fala em Direito Penal, vários pressupostos devem ser considerados: O Direito penal busca uma punição de alguém por algo classificado como crime. Mas afinal... o que é um crime?

Há muitas facetas e considerações a serem tomadas que caracterizam um crime. A mais comum e informal delas é "fazer algo que a Lei considera como crime" ou ainda: "fazer o que a sociedade convencionou ser errado". A isso, de forma técnica chamamos de Tipicidade, ou seja, realizar conduta prevista em lei que pressupõe a aplicação de uma pena - e daí temos o direito penal. Além disso existem outros fatores como a Ilicitude (ou antijuridicidade) e a punibilidade do agente que são tratadas mais a fundo durante os estudos de direito penal. Mas a tipicidade já tem motivos suficientes para intrigar e trazer cometários muito interessantes sobre como funciona a criação de leis e aquilo que se considera como uma convenção social na elaboração de leis criminais.

O direito criminal deve ser utilizado como última forma de contenção de ações nocivas, ou seja, deve ser utilizado com demasiada cautela e muito equilíbrio a fim de evitar a criminalização constante e inútil. Deve ser a última forma de ação do estado para evitar condutas desagregadoras e perigosas ao convívio social. Antes dele, o direito civil, administrativo, trabalhista, as ações do estado, e a assistência social devem buscar resolver o conflito social gerado por determinadas condutas para só então buscar a sua criminalização através da tipicidade.  A este conceito chamamos de direito penal mínimo.

Mas durante seus estudos de doutorado em pernambuco, o Professor Marcelo Neves, no ano de 1992,  nos brindou com um conceito cheio de fervor brasileiro: A constitucionalização Simbólica, ou constitucionalização-álibi. O Professor Neves propôs um modelo de três motivos para que houvesse esse processo emergencial de constitucionalização: Confirmação de valores sociais, demonstração da capacidade de ação do Estado e adiamento da solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios. (preste atenção nesses conceitos que aparecerão em negrito no texto porque eles serão peças-chave para a compreensão do nosso jeito brasileiro de resolver problemas).

Tal qual o processo de constitucionalização, a criação de leis segue a mesma forma, e é nesse ponto que o direito e a política entram em conflito: sabemos que as leis são criadas pelo poder legislativo, e que quando se trata de direito penal e processual penal somente o poder legislativo da união pode criar novas leis com esses assuntos, ou seja, câmara dos deputados e o senado federal é que devem representar o povo na criação de crimes. Da mesma forma, quando determinados crimes chocam a população e têm exposição midiática muito ampla, podemos notar que há uma maior pressão popular e dos meios de comunicação para que uma providência seja tomada.

A fim de demonstrar uma capacidade de reação do Estado, busca-se então implementar uma alteração no direito criminal ou do processo criminal ou ainda da execução penal, como uma resposta à sociedade de que algo está sendo feito sobre aquele fato que ocorreu.

Passa a ser discutida então uma possibilidade de o estado publicar alguma alteração legal para demonstrar uma providência tomada e utilizá-la como álibi, apresentando à sociedade uma ação que não surgirá grandes efeitos sociais mas ao menos dá a sensação de que houve algum resultado. 

Tal interpretação não significa que o fato que gerou a reação legislativa seja irrisório ou pequeno, pelo contrário, costuma ser grandioso, mas demonstra que a ação legislativa sobre o direito criminal passa ao cidadão a falsa impressão de que ações enérgicas foram tomadas, quando o resultado foi parco, e muitas vezes deveria ter sido adotada outra estratégia social diferente da alteração na legislação criminal que seria muito mais eficiente, mas que muitas vezes é mais trabalhosa e dispendiosa e acaba não sendo tomada porque a legislação-álibi parece suficiente para adiar os conflitos sociais.

Quer um exemplo? A criação do feminicídio. Embora de nobre intenção, buscou-se trazer mais um motivo para tratar o feminicídio como qualificador do homicídio e incluir no rol de crimes hediondos, entretanto quase todos os fatos descritos na lei do feminicídio já tinham como pressuposto a condenação por motivo torpe ou fútil, mudando apenas o nome do crime, pois as penas aplicadas serão exatamente iguais (homicídio qualificado e consequentemente hediondo) tendo servido a Lei 13.104 para trazer alguns pequenos aumentos de pena em condições específicas (muitas já previstas na parte geral do código penal) e confirmar alguns valores sociais, mas com pouco ou nenhum efeito jurídico.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Muito melhor seria aplicar mais força às medidas protetivas já na fase policial, melhorar a atuação e treinamento das equipes das delegacias da mulher e investir de forma mais enérgica na segurança pública, sem que fosse necessária qualquer alteração na lei. A própria classificação do homicídio qualificado como crime hediondo e sua inclusão no rol da Lei 8.072 foi resultado da reação parlamentar ao projeto de iniciativa popular após a morte da atriz Daniella Perez.

Desta forma, deve o cidadão permanecer atento às ações legislativas, especificamente quando buscam modificar e ampliar conceitos criminais apenas como resposta a fatos específicos, pois a criminalização, ou a ampliação dos seus efeitos deve ser a última ação do Estado, e não a primeira, muito menos a única reação a ser tomada.

Mais importante do que a legislação criminal é a realização de investimentos sociais, em segurança pública, em resolução definitiva de conflitos sociais, para só então buscar mais penas, mais condenações ou mais punições, o crime não pode ser sinônimo de atuação do Estado, deve ser sim parâmetro de sua ineficácia. Quanto mais crimes, mais penas, mais celas e mais presos um estado tem, mais dificuldade em solucionar conflitos sociais ele demonstra. O direito criminal de um país é espelho de sua eficiência política e social.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Vinícius. Direito penal mínimo, legislação álibi e o jeito brasileiro de resolver conflitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4999, 9 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50546. Acesso em: 25 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!