Quando se fala em Direito Penal, vários pressupostos devem ser considerados: O Direito penal busca uma punição de alguém por algo classificado como crime. Mas afinal... o que é um crime?
Há muitas facetas e considerações a serem tomadas que caracterizam um crime. A mais comum e informal delas é "fazer algo que a Lei considera como crime" ou ainda: "fazer o que a sociedade convencionou ser errado". A isso, de forma técnica chamamos de Tipicidade, ou seja, realizar conduta prevista em lei que pressupõe a aplicação de uma pena - e daí temos o direito penal. Além disso existem outros fatores como a Ilicitude (ou antijuridicidade) e a punibilidade do agente que são tratadas mais a fundo durante os estudos de direito penal. Mas a tipicidade já tem motivos suficientes para intrigar e trazer cometários muito interessantes sobre como funciona a criação de leis e aquilo que se considera como uma convenção social na elaboração de leis criminais.
O direito criminal deve ser utilizado como última forma de contenção de ações nocivas, ou seja, deve ser utilizado com demasiada cautela e muito equilíbrio a fim de evitar a criminalização constante e inútil. Deve ser a última forma de ação do estado para evitar condutas desagregadoras e perigosas ao convívio social. Antes dele, o direito civil, administrativo, trabalhista, as ações do estado, e a assistência social devem buscar resolver o conflito social gerado por determinadas condutas para só então buscar a sua criminalização através da tipicidade. A este conceito chamamos de direito penal mínimo.
Mas durante seus estudos de doutorado em pernambuco, o Professor Marcelo Neves, no ano de 1992, nos brindou com um conceito cheio de fervor brasileiro: A constitucionalização Simbólica, ou constitucionalização-álibi. O Professor Neves propôs um modelo de três motivos para que houvesse esse processo emergencial de constitucionalização: Confirmação de valores sociais, demonstração da capacidade de ação do Estado e adiamento da solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios. (preste atenção nesses conceitos que aparecerão em negrito no texto porque eles serão peças-chave para a compreensão do nosso jeito brasileiro de resolver problemas).
Tal qual o processo de constitucionalização, a criação de leis segue a mesma forma, e é nesse ponto que o direito e a política entram em conflito: sabemos que as leis são criadas pelo poder legislativo, e que quando se trata de direito penal e processual penal somente o poder legislativo da união pode criar novas leis com esses assuntos, ou seja, câmara dos deputados e o senado federal é que devem representar o povo na criação de crimes. Da mesma forma, quando determinados crimes chocam a população e têm exposição midiática muito ampla, podemos notar que há uma maior pressão popular e dos meios de comunicação para que uma providência seja tomada.
A fim de demonstrar uma capacidade de reação do Estado, busca-se então implementar uma alteração no direito criminal ou do processo criminal ou ainda da execução penal, como uma resposta à sociedade de que algo está sendo feito sobre aquele fato que ocorreu.
Passa a ser discutida então uma possibilidade de o estado publicar alguma alteração legal para demonstrar uma providência tomada e utilizá-la como álibi, apresentando à sociedade uma ação que não surgirá grandes efeitos sociais mas ao menos dá a sensação de que houve algum resultado.
Tal interpretação não significa que o fato que gerou a reação legislativa seja irrisório ou pequeno, pelo contrário, costuma ser grandioso, mas demonstra que a ação legislativa sobre o direito criminal passa ao cidadão a falsa impressão de que ações enérgicas foram tomadas, quando o resultado foi parco, e muitas vezes deveria ter sido adotada outra estratégia social diferente da alteração na legislação criminal que seria muito mais eficiente, mas que muitas vezes é mais trabalhosa e dispendiosa e acaba não sendo tomada porque a legislação-álibi parece suficiente para adiar os conflitos sociais.
Quer um exemplo? A criação do feminicídio. Embora de nobre intenção, buscou-se trazer mais um motivo para tratar o feminicídio como qualificador do homicídio e incluir no rol de crimes hediondos, entretanto quase todos os fatos descritos na lei do feminicídio já tinham como pressuposto a condenação por motivo torpe ou fútil, mudando apenas o nome do crime, pois as penas aplicadas serão exatamente iguais (homicídio qualificado e consequentemente hediondo) tendo servido a Lei 13.104 para trazer alguns pequenos aumentos de pena em condições específicas (muitas já previstas na parte geral do código penal) e confirmar alguns valores sociais, mas com pouco ou nenhum efeito jurídico.
Muito melhor seria aplicar mais força às medidas protetivas já na fase policial, melhorar a atuação e treinamento das equipes das delegacias da mulher e investir de forma mais enérgica na segurança pública, sem que fosse necessária qualquer alteração na lei. A própria classificação do homicídio qualificado como crime hediondo e sua inclusão no rol da Lei 8.072 foi resultado da reação parlamentar ao projeto de iniciativa popular após a morte da atriz Daniella Perez.
Desta forma, deve o cidadão permanecer atento às ações legislativas, especificamente quando buscam modificar e ampliar conceitos criminais apenas como resposta a fatos específicos, pois a criminalização, ou a ampliação dos seus efeitos deve ser a última ação do Estado, e não a primeira, muito menos a única reação a ser tomada.
Mais importante do que a legislação criminal é a realização de investimentos sociais, em segurança pública, em resolução definitiva de conflitos sociais, para só então buscar mais penas, mais condenações ou mais punições, o crime não pode ser sinônimo de atuação do Estado, deve ser sim parâmetro de sua ineficácia. Quanto mais crimes, mais penas, mais celas e mais presos um estado tem, mais dificuldade em solucionar conflitos sociais ele demonstra. O direito criminal de um país é espelho de sua eficiência política e social.