AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: ORIGENS, DILEMAS, DESAFIOS E DIFICULDADES PRÁTICAS DE SUA IMPLANTAÇÃO
A realização das audiências de custódia tem se mostrado um tema muito discutido em sede de polícia judiciária, em especial, no que concerne às formas de sua operacionalização, especialmente em razão da exigência de apresentação do preso perante os magistrados federais. Obviamente, tal audiência implica o deslocamento dos presos, o que gera inúmeras dificuldades de logística para os órgãos policiais, principalmente levando-se em conta as dimensões continentais do território nacional. Somente a título exemplificativo, em algumas situações, a distância entre o plantão regionalizado das autoridades judiciárias e a unidade policial responsável pela prisão em flagrante pode acarretar num deslocamento do preso de até mil quilômetros em apenas 24 (vinte e quatro) horas, o que gera gastos excessivos de recursos públicos e riscos à integridade do preso e da equipe de policiais envolvida nessa inovadora atividade. [1]
Cumpre destacar, inicialmente, que a audiência de custódia, terminologia criada doutrinariamente, foi regulamentada por meio da Resolução nº 213 de 15 de dezembro de 2015, da lavra do Conselho Nacional de Justiça, a qual dispõe acerca da necessidade de apresentação de toda pessoa presa perante a autoridade judicial no prazo de 24 horas. Eis o que dispõe a Resolução nº 213/2015 do CNJ, in verbis: [2]
“Art. 1º Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.
§ 1º A comunicação da prisão em flagrante à autoridade judicial, que se dará por meio do encaminhamento do auto de prisão em flagrante, de acordo com as rotinas previstas em cada Estado da Federação, não supre a apresentação pessoal determinada no caput.
§ 2º Entende-se por autoridade judicial competente aquela assim disposta pelas leis de organização judiciária locais, ou, salvo omissão, definida por ato normativo do Tribunal de Justiça ou Tribunal Federal local que instituir as audiências de apresentação, incluído o juiz plantonista.
§ 3º No caso de prisão em flagrante delito da competência originária de Tribunal, a apresentação do preso poderá ser feita ao juiz que o Presidente do Tribunal ou Relator designar para esse fim.
§ 4º Estando a pessoa presa acometida de grave enfermidade, ou havendo circunstância comprovadamente excepcional que a impossibilite de ser apresentada ao juiz no prazo do caput, deverá ser assegurada a realização da audiência no local em que ela se encontre e, nos casos em que o deslocamento se mostre inviável, deverá ser providenciada a condução para a audiência de custódia imediatamente após restabelecida sua condição de saúde ou de apresentação.
§ 5º O CNJ, ouvidos os órgãos jurisdicionais locais, editará ato complementar a esta Resolução, regulamentando, em caráter excepcional, os prazos para apresentação à autoridade judicial da pessoa presa em Municípios ou sedes regionais a serem especificados, em que o juiz competente ou plantonista esteja impossibilitado de cumprir o prazo estabelecido no caput .
Art. 2º O deslocamento da pessoa presa em flagrante delito ao local da audiência e desse, eventualmente, para alguma unidade prisional específica, no caso de aplicação da prisão preventiva, será de responsabilidade da Secretaria de Administração Penitenciária ou da Secretaria de Segurança Pública, conforme os regramentos locais.
Parágrafo único. Os tribunais poderão celebrar convênios de modo a viabilizar a realização da audiência de custódia fora da unidade judiciária correspondente.
Art. 3º Se, por qualquer motivo, não houver juiz na comarca até o final do prazo do art. 1º, a pessoa presa será levada imediatamente ao substituto legal, observado, no que couber, o § 5º do art. 1º.
Art. 4º A audiência de custódia será realizada na presença do Ministério Público e da Defensoria Pública, caso a pessoa detida não possua defensor constituído no momento da lavratura do flagrante.
Parágrafo único. É vedada a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação durante a audiência de custódia.
Art. 5º Se a pessoa presa em flagrante delito constituir advogado até o término da lavratura do auto de prisão em flagrante, o Delegado de polícia deverá notificá-lo, pelos meios mais comuns, tais como correio eletrônico, telefone ou mensagem de texto, para que compareça à audiência de custódia, consignando nos autos.
Parágrafo único. Não havendo defensor constituído, a pessoa presa será atendida pela Defensoria Pública.
Art. 6º Antes da apresentação da pessoa presa ao juiz, será assegurado seu atendimento prévio e reservado por advogado por ela constituído ou defensor público, sem a presença de agentes policiais, sendo esclarecidos por funcionário credenciado os motivos, fundamentos e ritos que versam a audiência de custódia.
Parágrafo único. Será reservado local apropriado visando a garantia da confidencialidade do atendimento prévio com advogado ou defensor público.
Art. 7º A apresentação da pessoa presa em flagrante delito à autoridade judicial competente será obrigatoriamente precedida de cadastro no Sistema de Audiência de Custódia (SISTAC).
§ 1º O SISTAC, sistema eletrônico de amplitude nacional, disponibilizado pelo CNJ, gratuitamente, para todas as unidades judiciais responsáveis pela realização da audiência de custódia, é destinado a facilitar a coleta dos dados produzidos na audiência e que decorram da apresentação de pessoa presa em flagrante delito a um juiz e tem por objetivos:
I - registrar formalmente o fluxo das audiências de custódia nos tribunais;
II - sistematizar os dados coletados durante a audiência de custódia, de forma a viabilizar o controle das informações produzidas, relativas às prisões em flagrante, às decisões judiciais e ao ingresso no sistema prisional;
III - produzir estatísticas sobre o número de pessoas presas em flagrante delito, de pessoas a quem foi concedida liberdade provisória, de medidas cautelares aplicadas com a indicação da respectiva modalidade, de denúncias relativas a tortura e maus tratos, entre outras;
IV - elaborar ata padronizada da audiência de custódia;
V - facilitar a consulta a assentamentos anteriores, com o objetivo de permitir a atualização do perfil das pessoas presas em flagrante delito a qualquer momento e a vinculação do cadastro de seus dados pessoais a novos atos processuais;
VI - permitir o registro de denúncias de torturas e maus tratos, para posterior encaminhamento para investigação;
VII - manter o registro dos encaminhamentos sociais, de caráter voluntário, recomendados pelo juiz ou indicados pela equipe técnica, bem como os de exame de corpo de delito, solicitados pelo juiz;
VIII - analisar os efeitos, impactos e resultados da implementação da audiência de custódia.
§ 2º A apresentação da pessoa presa em flagrante delito em juízo acontecerá após o protocolo e distribuição do auto de prisão em flagrante e respectiva nota de culpa perante a unidade judiciária correspondente, dela constando o motivo da prisão, o nome do condutor e das testemunhas do flagrante, perante a unidade responsável para operacionalizar o ato, de acordo com regramentos locais.
§ 3º O auto de prisão em flagrante subsidiará as informações a serem registradas no SISTAC, conjuntamente com aquelas obtidas a partir do relato do próprio autuado.
§ 4º Os dados extraídos dos relatórios mencionados no inciso III do § 1º serão disponibilizados no sítio eletrônico do CNJ, razão pela qual as autoridades judiciárias responsáveis devem assegurar a correta e contínua alimentação do SISTAC.
Art. 8º Na audiência de custódia, a autoridade judicial entrevistará a pessoa presa em flagrante, devendo:
I - esclarecer o que é a audiência de custódia, ressaltando as questões a serem analisadas pela autoridade judicial;
II - assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito;
III - dar ciência sobre seu direito de permanecer em silêncio;
IV - questionar se lhe foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de consultar-se com advogado ou defensor público, o de ser atendido por médico e o de comunicar-se com seus familiares;
V - indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão;
VI - perguntar sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência de tortura e maus tratos e adotando as providências cabíveis;
VII - verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua realização nos casos em que:
a) não tiver sido realizado;
b) os registros se mostrarem insuficientes;
c) a alegação de tortura e maus tratos referir-se a momento posterior ao exame realizado;
d) o exame tiver sido realizado na presença de agente policial, observando-se a Recomendação CNJ 49/2014 quanto à formulação de quesitos ao perito;
VIII - abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante;
IX - adotar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades;
X - averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida cautelar.
§ 1º Após a oitiva da pessoa presa em flagrante delito, o juiz deferirá ao Ministério Público e à defesa técnica, nesta ordem, reperguntas compatíveis com a natureza do ato, devendo indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação, permitindo-lhes, em seguida, requerer:
I - o relaxamento da prisão em flagrante;
II - a concessão da liberdade provisória sem ou com aplicação de medida cautelar diversa da prisão;
III - a decretação de prisão preventiva;
IV - a adoção de outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa.
§ 2º A oitiva da pessoa presa será registrada, preferencialmente, em mídia, dispensando-se a formalização de termo de manifestação da pessoa presa ou do conteúdo das postulações das partes, e ficará arquivada na unidade responsável pela audiência de custódia.
§ 3º A ata da audiência conterá, apenas e resumidamente, a deliberação fundamentada do magistrado quanto à legalidade e manutenção da prisão, cabimento de liberdade provisória sem ou com a imposição de medidas cautelares diversas da prisão, considerando-se o pedido de cada parte, como também as providências tomadas, em caso da constatação de indícios de tortura e maus tratos.
§ 4º Concluída a audiência de custódia, cópia da sua ata será entregue à pessoa presa em flagrante delito, ao Defensor e ao Ministério Público, tomando-se a ciência de todos, e apenas o auto de prisão em flagrante, com antecedentes e cópia da ata, seguirá para livre distribuição.
§ 5º Proferida a decisão que resultar no relaxamento da prisão em flagrante, na concessão da liberdade provisória sem ou com a imposição de medida cautelar alternativa à prisão, ou quando determinado o imediato arquivamento do inquérito, a pessoa presa em flagrante delito será prontamente colocada em liberdade, mediante a expedição de alvará de soltura, e será informada sobre seus direitos e obrigações, salvo se por outro motivo tenha que continuar presa.
Art. 9º A aplicação de medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP deverá compreender a avaliação da real adequação e necessidade das medidas, com estipulação de prazos para seu cumprimento e para a reavaliação de sua manutenção, observandose o Protocolo I desta Resolução.
§ 1º O acompanhamento das medidas cautelares diversas da prisão determinadas judicialmente ficará a cargo dos serviços de acompanhamento de alternativas penais, denominados Centrais Integradas de Alternativas Penais, estruturados preferencialmente no âmbito do Poder Executivo estadual, contando com equipes multidisciplinares, responsáveis, ainda, pela realização dos encaminhamentos necessários à Rede de Atenção à Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) e à rede de assistência social do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), bem como a outras políticas e programas ofertados pelo Poder Público, sendo os resultados do atendimento e do acompanhamento comunicados regularmente ao juízo ao qual for distribuído o auto de prisão em flagrante após a realização da audiência de custódia.
§ 2º Identificadas demandas abrangidas por políticas de proteção ou de inclusão social implementadas pelo Poder Público, caberá ao juiz encaminhar a pessoa presa em flagrante delito ao serviço de acompanhamento de alternativas penais, ao qual cabe a articulação com a rede de proteção social e a identificação das políticas e dos programas adequados a cada caso ou, nas Comarcas em que inexistirem serviços de acompanhamento de alternativas penais, indicar o encaminhamento direto às políticas de proteção ou inclusão social existentes, sensibilizando a pessoa presa em flagrante delito para o comparecimento de forma não obrigatória.
§ 3° O juiz deve buscar garantir às pessoas presas em flagrante delito o direito à atenção médica e psicossocial eventualmente necessária, resguardada a natureza voluntária desses serviços, a partir do encaminhamento ao serviço de acompanhamento de alternativas penais, não sendo cabível a aplicação de medidas cautelares para tratamento ou internação compulsória de pessoas autuadas em flagrante que apresentem quadro de transtorno mental ou de dependência química, em desconformidade com o previsto no art. 4º da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, e no art. 319, inciso VII, do CPP.
Art. 10. A aplicação da medida cautelar diversa da prisão prevista no art. 319, inciso IX, do Código de Processo Penal, será excepcional e determinada apenas quando demonstrada a impossibilidade de concessão da liberdade provisória sem cautelar ou de aplicação de outra medida cautelar menos gravosa, sujeitando-se à reavaliação periódica quanto à necessidade e adequação de sua manutenção, sendo destinada exclusivamente a pessoas presas em flagrante delito por crimes dolosos puníveis com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos ou condenadas por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Código Penal, bem como pessoas em cumprimento de medidas protetivas de urgência acusadas por crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, quando não couber outra medida menos gravosa.
Parágrafo único. Por abranger dados que pressupõem sigilo, a utilização de informações coletadas durante a monitoração eletrônica de pessoas dependerá de autorização judicial, em atenção ao art. 5°, XII, da Constituição Federal.
Art. 11. Havendo declaração da pessoa presa em flagrante delito de que foi vítima de tortura e maus tratos ou entendimento da autoridade judicial de que há indícios da prática de tortura, será determinado o registro das informações, adotadas as providências cabíveis para a investigação da denúncia e preservação da segurança física e psicológica da vítima, que será encaminhada para atendimento médico e psicossocial especializado.
§ 1º Com o objetivo de assegurar o efetivo combate à tortura e maus tratos, a autoridade jurídica e funcionários deverão observar o Protocolo II desta Resolução com vistas a garantir condições adequadas para a oitiva e coleta idônea de depoimento das pessoas presas em flagrante delito na audiência de custódia, a adoção de procedimentos durante o depoimento que permitam a apuração de indícios de práticas de tortura e de providências cabíveis em caso de identificação de práticas de tortura.
§ 2º O funcionário responsável pela coleta de dados da pessoa presa em flagrante delito deve cuidar para que sejam coletadas as seguintes informações, respeitando a vontade da vítima:
I - identificação dos agressores, indicando sua instituição e sua unidade de atuação;
II - locais, datas e horários aproximados dos fatos;
III - descrição dos fatos, inclusive dos métodos adotados pelo agressor e a indicação das lesões sofridas;
IV - identificação de testemunhas que possam colaborar para a averiguação dos fatos;
V - verificação de registros das lesões sofridas pela vítima;
VI - existência de registro que indique prática de tortura ou maus tratos no laudo elaborado pelos peritos do Instituto Médico Legal;
VII - registro dos encaminhamentos dados pela autoridade judicial para requisitar investigação dos relatos;
VIII - registro da aplicação de medida protetiva ao autuado pela autoridade judicial, caso a natureza ou gravidade dos fatos relatados coloque em risco a vida ou a segurança da pessoa presa em flagrante delito, de seus familiares ou de testemunhas.
§ 3º Os registros das lesões poderão ser feitos em modo fotográfico ou audiovisual, respeitando a intimidade e consignando o consentimento da vítima.
§ 4º Averiguada pela autoridade judicial a necessidade da imposição de alguma medida de proteção à pessoa presa em flagrante delito, em razão da comunicação ou denúncia da prática de tortura e maus tratos, será assegurada, primordialmente, a integridade pessoal do denunciante, das testemunhas, do funcionário que constatou a ocorrência da prática abusiva e de seus familiares, e, se pertinente, o sigilo das informações.
§ 5º Os encaminhamentos dados pela autoridade judicial e as informações deles resultantes deverão ser comunicadas ao juiz responsável pela instrução do processo.
Art. 12. O termo da audiência de custódia será apensado ao inquérito ou à ação penal.
Art. 13. A apresentação à autoridade judicial no prazo de 24 horas também será assegurada às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, aplicando-se, no que couber, os procedimentos previstos nesta Resolução.
Parágrafo único. Todos os mandados de prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade judicial que determinou a expedição da ordem de custódia ou, nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme lei de organização judiciária local.
Art. 14. Os tribunais expedirão os atos necessários e auxiliarão os juízes no cumprimento desta Resolução, em consideração à realidade local, podendo realizar os convênios e gestões necessárias ao seu pleno cumprimento.
Art. 15. Os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais terão o prazo de 90 dias, contados a partir da entrada em vigor desta Resolução, para implantar a audiência de custódia no âmbito de suas respectivas jurisdições.
Parágrafo único. No mesmo prazo será assegurado, às pessoas presas em flagrante antes da implantação da audiência de custódia que não tenham sido apresentadas em outra audiência no curso do processo de conhecimento, a apresentação à autoridade judicial, nos termos desta Resolução.
Art. 16. O acompanhamento do cumprimento da presente Resolução contará com o apoio técnico do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Execução das Medidas Socioeducativas.
Art. 17. Esta Resolução entra em vigor a partir de 1º de fevereiro de 2016.
É oportuno mencionar que a edição da referida Resolução teve por fundamento o item 3 do art. 9º, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, [3] bem como o item 5 do art. 7º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH),[4] que ficou conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica”, tendo sido promulgada por meio do Decreto 678/92, cujo teor se segue, respectivamente:
“ARTIGO 9 (...) 3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.
(...)”
“Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal (...) 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)”
Em suma, a implantação das audiências de custódia veio consolidar o direito de o preso em flagrante ser conduzido, sem demora, à presença de uma autoridade judiciária, que verificará se foram respeitados os direitos fundamentais do preso em flagrante, bem como se a sua prisão foi legal ou se deve ser relaxada e, ainda, se é o caso de ser decretada a prisão cautelar ou se deverá ser concedida liberdade provisória ou mesmo estipulada medida cautelar diversa da prisão.[5]
Ademais, a Resolução nº 213 de 15 de dezembro de 2015 também encontrou fundamento na decisão proferida nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 do Supremo Tribunal Federal, que frisou a obrigatoriedade da apresentação da pessoa presa à autoridade judicial competente. [6]
No que se refere à ADPF nº 347, cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu, parcialmente, cautelar solicitada na ADPF 347, que pedia providências para a crise prisional do país, a fim de determinar que juízes e tribunais passassem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão. [7]
Na ADPF, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pedia que se reconhecesse a violação de direitos fundamentais da população carcerária e fosse determinada a adoção de diversas providências no tratamento da questão prisional do país. Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes votou pelo deferimento do pedido cautelar quanto à obrigação da realização das audiências de custódia e em relação ao descontingenciamento do fundo penitenciário. O ministro afirmou não haver dúvida de que os juízes devem considerar a situação prisional na decisão judicial. Nesse sentido, propôs a criação de plano de trabalho para oferecer treinamento aos juízes sobre o sistema prisional e medidas alternativas ao encarceramento.[8]
Ademais, cabe mencionar a decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5240/SP, rel. Min. Luiz Fux, julgado em 20/8/2015, que declarou a constitucionalidade da disciplina pelos Tribunais da apresentação da pessoa presa à autoridade judicial. Eis o que estabeleceu o STF no julgamento da referida ADI: [9]
Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO CONJUNTO 03/2015 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. 1. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem, que dispõe, em seu artigo 7º, item 5, que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, posto ostentar o status jurídico supralegal que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm no ordenamento jurídico brasileiro, legitima a denominada “audiência de custódia”, cuja denominação sugere-se “audiência de apresentação”. 2. O direito convencional de apresentação do preso ao Juiz, consectariamente, deflagra o procedimento legal de habeas corpus, no qual o Juiz apreciará a legalidade da prisão, à vista do preso que lhe é apresentado, procedimento esse instituído pelo Código de Processo Penal, nos seus artigos 647 e seguintes. 3. O habeas corpus ad subjiciendum, em sua origem remota, consistia na determinação do juiz de apresentação do preso para aferição da legalidade da sua prisão, o que ainda se faz presente na legislação processual penal (artigo 656 do CPP). 4. O ato normativo sob o crivo da fiscalização abstrata de constitucionalidade contempla, em seus artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º normas estritamente regulamentadoras do procedimento legal de habeas corpus instaurado perante o Juiz de primeira instância, em nada exorbitando ou contrariando a lei processual vigente, restando, assim, inexistência de conflito com a lei, o que torna inadmissível o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade para a sua impugnação, porquanto o status do CPP não gera violação constitucional, posto legislação infraconstitucional. 5. As disposições administrativas do ato impugnado (artigos 2º, 4° 8°, 9º, 10 e 11), sobre a organização do funcionamento das unidades jurisdicionais do Tribunal de Justiça, situam-se dentro dos limites da sua autogestão (artigo 96, inciso I, alínea a, da CRFB). Fundada diretamente na Constituição Federal, admitindo ad argumentandum impugnação pela via da ação direta de inconstitucionalidade, mercê de materialmente inviável a demanda. 6. In casu, a parte do ato impugnado que versa sobre as rotinas cartorárias e providências administrativas ligadas à audiência de custódia em nada ofende a reserva de lei ou norma constitucional. 7. Os artigos 5º, inciso II, e 22, inciso I, da Constituição Federal não foram violados, na medida em que há legislação federal em sentido estrito legitimando a audiência de apresentação. 8. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem e o Código de Processo Penal, posto ostentarem eficácia geral e erga omnes, atingem a esfera de atuação dos Delegados de Polícia, conjurando a alegação de violação da cláusula pétrea de separação de poderes. 9. A Associação Nacional dos Delegados de Polícia – ADEPOL, entidade de classe de âmbito nacional, que congrega a totalidade da categoria dos Delegados de Polícia (civis e federais), tem legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade (artigo 103, inciso IX, da CRFB). Precedentes. 10. A pertinência temática entre os objetivos da associação autora e o objeto da ação direta de inconstitucionalidade é inequívoca, uma vez que a realização das audiências de custódia repercute na atividade dos Delegados de Polícia, encarregados da apresentação do preso em Juízo. 11. Ação direta de inconstitucionalidade PARCIALMENTE CONHECIDA e, nessa parte, JULGADA IMPROCEDENTE, indicando a adoção da referida prática da audiência de apresentação por todos os tribunais do país.(ADI 5240, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016)
Ora, a decisão proferida da referida ADI ainda enfrentou a argumentação referente à suposta violação ao princípio da separação dos poderes, quando se passou a criar obrigações aos Delegados de Polícia pelos Tribunais que regulamentaram o procedimento da audiência de custódia. [10]
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal concluiu que a criação de tais obrigações não se deveu a inovação de um ou outro provimento de Tribunal, mas decorreu da própria convenção, norma supralegal, e do Código de Processo Penal. [11]
Tais decisões judiciais supramencionadas encontraram abrigo em precedente daquela mesma Corte (RE 349.703/RS, DJe de 5/6/2009) ao se concluir que a Convenção Americana de Direitos Humanos consiste em norma jurídica supralegal vigente no Brasil, posicionando-se inicialmente abaixo das normas constitucionais e acima das leis ordinárias e complementares, reposicionando-se diante da introdução do § 3º no Art. 5º da Constituição Federal de 1988, por meio da EC nº 45, de 2004, elevando os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos ao patamar de emendas constitucionais, após aprovação em processo legislativo em cada Casa do Congresso Nacional. Eis o que assevera o RE 349.703/RS: [12]
PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (RE 349703, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675)
Em que pese ainda não existir nenhuma lei regulamentando a audiência de custódia, encontra-se em tramitação, pronto para deliberação em plenário o Projeto de Lei do Senado nº 554, de 2011, que altera do § 1º do Artigo 306 do Código de Processo Penal para dispor que, no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente.[13]
Ora, há de se ponderar e se ter em mente que tanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, quanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos não mencionaram prazo para a apresentação do preso perante a autoridade judicial, utilizando-se apenas da expressão “sem demora”.[14]
E, em aplicação análoga à regra descrita no § 1º, do Art. 306, do CPP, com redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011, de que em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, deverá ser encaminhado o auto de prisão em flagrante ao juiz competente, tanto a Resolução nº 213 de 15 de dezembro de 2015, quanto o Projeto de Lei do Senado nº 554, de 2011, previram esse mesmo prazo para a apresentação do preso. [15]
Nessa toada, a Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015, elencou no § 4º do Art. 1º, as situações excepcionais em que a realização da audiência de custódia poderá deixar de ocorrer no prazo de 24 horas: a) estando a pessoa presa acometida de grave enfermidade; b) havendo circunstância comprovadamente excepcional que a impossibilite de ser apresentada ao juiz competente; e c) nos casos em que o deslocamento se mostre inviável. [16]
Nesses casos, a citada norma já forneceu uma solução determinando que seja assegurada a realização da audiência no local em que o preso se encontre. Naquelas duas primeiras situações, deliberou-se que fosse providenciada a condução do preso para a audiência de custódia imediatamente depois de restabelecida sua condição de saúde ou de apresentação. Por outro lado, ainda permaneceu em aberto a edição de ato complementar que regulamente, em caráter excepcional, os prazos para a realização de audiência de custódia nos Municípios ou sedes regionais a serem especificados, em que o juiz competente ou plantonista esteja impossibilitado de cumprir o prazo de 24 (vinte e quatro) horas. [17]
Bem se percebe que a instituição da audiência de custódia na rotina do processo penal brasileiro, encontra-se em fase de implantação e adaptação, o que causa dificuldades na sua operacionalização, inclusive, no Poder Judiciário, com reflexos evidentes no papel a ser desempenhado pelos órgãos policiais. Além do Judiciário e dos órgãos policiais, o Ministério Público e a Defensoria Pública também deverão se amoldar à implantação do novo instituto, ante a exigência de sua presença durante a realização da audiência de custódia, sendo com relação àquele último, quando a pessoa detida não possua defensor constituído no momento da lavratura do flagrante. [18]
Destaque-se, ainda, que a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação é vedada durante a audiência de custódia. No entanto, tal vedação não atinge a presença de todo e qualquer agente policial, mas apenas àqueles que efetivamente estiveram à frente da prisão ou da investigação. [19]
Entende-se, salvo melhor juízo, que, caso seja necessário, é perfeitamente possível que o magistrado requisite a presença de força policial e a audiência de custódia poderá contar com a presença de agentes policiais, desde que eles não sejam aqueles responsáveis pela prisão ou pela investigação. [20]
Repise-se, ainda, que a audiência de custódia poderá redundar na manutenção da prisão, em liberdade provisória sem ou com a imposição de medidas cautelares diversas da prisão. No que tange às dificuldades logísticas de deslocamento para a realização das audiências de custódia nos casos de presos pela Polícia Federal, sugere-se a adoção das seguintes medidas: [21]
1.Proposta ao Diretor do Foro da Justiça Federal da unidade da federação, que as audiências de custódia sejam realizadas somente nas cidades-sede de Delegacias de Polícia Federal;
2.Realização das audiências de custódia, alternativamente, por videoconferência, utilizando as salas virtuais das subsecções judiciárias federais.
Apresenta-se, também, como sugestão que as autoridades policiais passem a captar imagem dos interrogatórios no intuito de se preservar acerca de possíveis acusações de tortura física ou psicológica. [22]
Mais uma vez, cabe salientar a percepção de que a implantação das audiências de custódia ainda é algo muito recente e demanda ajustes entre as estruturas envolvidas: Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e polícias, sendo, provavelmente, conveniente a celebração de acordos de cooperação. [23]
Por todo o exposto, sem ter a menor pretensão de se esgotar o presente tema, e considerando a necessidade de maiores estudos sobre o assunto trazido a baila, conclui-se que:
1.Ainda não é possível o estabelecimento de protocolos rígidos de procedimentos a serem adotados diante da implantação das audiências de custódia, já que é evidente a diversidade de realidades regionais em cada unidade da federação e a necessidade de compatibilização dos procedimentos policiais com os procedimentos adotados pelo Poder Judiciário.
2.É indispensável que os Delegados de Polícia busquem promover um alinhamento junto ao Poder Judiciário local e ao Ministério Público de forma a viabilizar uma efetiva colaboração para a realização das audiências, observando as dificuldades de logística enfrentadas pelos órgãos policiais.
3.É perfeitamente possível que o magistrado requisite a presença de força policial durante a audiência de custódia, desde que os agentes de polícia não sejam aqueles responsáveis pela prisão em flagrante ou pela investigação.
4.É recomendável que as autoridades policiais passem a captar imagem dos interrogatórios no intuito de se preservar acerca de possíveis acusações de tortura física ou psicológica.