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Ministério Público míope: visão destorcida

A independência, tanto de uma pessoa, como de um órgão ou instituição não é algo dado, pronto e acabado pela própria natureza. Trata-se de uma construção social e jurídica e, especialmente, de uma conquista.

O Procurador da República, Anderson Wagner Gois dos Santos, em artigo publicado via internet critica a independência da Polícia Judiciária e, mais precisamente, do presidente das investigações na figura do Delegado de Polícia, apontando isso como um “risco para a sociedade” (sic). [1]

Torna-se muito difícil compreender como é que uma Polícia Judiciária independente de coerções externas, pressões e incursões possa ser algo prejudicial e uma Polícia Judiciária subserviente possa ser boa. Uma Polícia subserviente é muito boa para regimes totalitários, onde o que se pretende é apenas um braço forte e acéfalo a serviço, qual jagunços, do poder.

O articulista vaticina qual profeta iluminado que a Polícia não será jamais independente do Poder Executivo. Afirma isso como se a independência funcional somente “funcione” para certos órgãos e pessoas, como se esses órgãos nunca tenham sido na história nacional e internacional também atrelados ao executivo e aos poderes mais inimagináveis. Afinal, um pouquinho, bem pouquinho de história já iria indicar claramente como estava agindo independentemente o Ministério Público, o Judiciário, as Forças Armadas e todas as instituições no período ditatorial brasileiro, argentino, chileno etc. Como é independente o Judiciário e o Ministério Público na China, em Cuba, na antiga União Soviética.

A independência, tanto de uma pessoa, como de um órgão ou instituição não é algo dado, pronto e acabado pela própria natureza. Trata-se de uma construção social e jurídica e, especialmente, de uma conquista. Conquista esta sempre e sempre obstaculizada por quem pretende deter o poder de forma absoluta.

Lamenta-se que mais e mais a formação jurídica esteja aleijando os operadores do Direito de forma a torna-los cegos e despreparados para tudo que ultrapasse minimamente a tecnicidade de leis, decretos, regras, procedimentos etc.

Daí surgem discursos lamentáveis como o do ilustre procurador que, procurando sustentar sua profecia, faz a seguinte afirmação esdrúxula:

Alega que “nem mesmo em ditaduras” (sic) (sublinhe-se “nem mesmo em ditaduras”) a Polícia foi independente do executivo. Ora, o que pretende afirmar com isso o articulista? Que nas ditaduras haveria um espaço maior de liberdade para pessoas e instituições? Que em ditaduras haveria mais independência de pessoas e instituições? Mas, isso é inverter tudo, é o mundo de ponta-cabeça! Nas ditaduras, nos regimes totalitários nada nem ninguém escapa ao domínio absoluto do poder incontrolado do executivo. Este não presta contas nem à Polícia, nem ao Judiciário, nem ao Legislativo, nem ao Ministério Público! De onde o articulista tirou a ideia de que numa ditadura a possibilidade de independência da Polícia ou de qualquer órgão ou mesmo pessoa seja mais provável? O que pode querer transmitir com a expressão “nem mesmo em ditaduras”?

A única explicação é a demonstração de um nítido, evidente despreparo sob o ângulo da ciência política e até mesmo da história nacional e internacional mais comezinha. Sugere-se ao articulista a leitura de autores como Hanna Arendt, Todorov, Bobbio entre muitos outros. Senão ao menos um livro de história do ensino médio já seria mais que suficiente para ter a noção de que nas ditaduras a Polícia, o Judiciário, o Ministério Público e todos são simplesmente submetidos ao poder como força e à força como poder.

O articulista ainda usa da técnica de lutar contra espantalhos. Cria um inimigo inexistente e o vence, apresentando-o como troféu. Velha e conhecida técnica da má retórica. Alega que se pretende acabar com o Poder Requisitório do Ministério Público. Mas, se essa pretensão existisse seria inviável porque esse poder deriva da Constituição Federal e as autoridades, sejam elas de que natureza forem (Policiais, Judiciais, Ministeriais etc.), mesmo em seus atos discricionários, estão vinculadas às normas legais. A própria discricionariedade quando dada a uma autoridade, o é por meio da lei. Ademais, a independência policial não se conforma nem mesmo como discricionariedade. As palavras não são sinônimas. Toda ação das Autoridades Policiais é e sempre será vinculada à lei sob pena de responsabilidade civil, penal e administrativa. Aliás, diga-se de passagem, a instituição mais fiscalizada externamente é a Polícia Judiciária. Ela o é pela população com a qual tem contato direto (não em dias marcados de “atendimento ao público”); pelo Ministério Público em seu controle externo; pelo Judiciário em suas correições periódicas, pelas demais Polícias em seu contato também direto. Isso sem falar do controle correicional interno.

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Outra alegação ofensiva e profética do articulista é que a independência funcional da Polícia Judiciária seria usada como “moeda de troca” com o executivo. Mas, de onde poderia o articulista retirar essa pérola premonitória? A única hipótese que se enxerga é a de que a retira do momento em que sua instituição conquistou a independência funcional (diga-se de passagem necessária, imprescindível mesmo). Será que a independência funcional do Ministério Público e de outras instituições assim conformadas tem sido usada como “moeda de troca”? É isso que se vislumbra implícito na profecia do articulista. Porque senão em que base empírica poderia se sustentar? Sinceramente não creio e não quero acreditar que as instituições que foram dotadas pela Constituição de 1988 de independência funcional para servir ao interesse público estejam durante todo esse tempo, usando essa independência como “moeda de troca”. Não quero crer e não creio nisso. Creio na atuação do articulista como um daqueles que, na passagem evangélica, são qualificados como os “que não sabem o que fazem”. Só pode não saber o que está fazendo ao afirmar o que afirmou, ao profetizar a perversão que lhe parece inevitável. Isso porque tanto a Polícia Judiciária como o Ministério Público e o Judiciário são compostos de homens e mulheres comuns, os quais não adquirem uma auréola santificada ao ingressarem em qualquer desses órgãos e também não são dotados de chifres e garfos nem de um tom de pele vermelho no mesmo momento. Então, se a independência funcional pode ser uma tentação como “moeda de troca”, pode sê-lo para a Polícia Judiciária, para o Ministério Público e para o Judiciário. Ou será  que crê o articulista que os dois últimos órgãos são compostos por deuses bons, enquanto que a Polícia Judiciária é formada por demônios?

A estatística dos trabalhos policiais é apresentada sem sequer indicação de fonte e não condiz com os números dos Estados, pois varia de local para local de acordo com o maior ou menor investimento em pessoal e material. Além disso, não apresenta os números do Ministério Público. Não apresenta as estatísticas do número de Inquéritos Civis Públicos arquivados e das Ações Civis Públicas julgadas improcedentes. Também não menciona a incomensurável cifra negra de casos que sequer são tratados pelo Ministério Público em suas amplas atribuições (note-se que o Ministério Público também carece de pessoal e material, mas uma abordagem honesta deveria expor ao público toda a situação e não fazer uma apresentação parcial e maniqueísta do tema da eficiência). Seria realmente chocante se essa apresentação fosse exposta, porque se existe a apontada ineficiência policial por uma série de fatores, também existe o outro lado da moeda. Mas, esse lado é oculto pelo articulista em outra manobra retórica conhecida como “argumento de escolha”, em que o debatedor apenas aborda pontos que lhe são favoráveis. Basta ao leitor médio pensar nas condições horrorosas da saúde pública, dos estabelecimentos prisionais, da educação pública, da própria segurança pública, dos problemas ambientais, das lesões aos consumidores etc., para verificar num relance como há um vácuo de atuação do Ministério Público indevidamente ocultado ou “esquecido” pelo articulista. Porque essas são, em tese ao menos, áreas em que o Ministério Público deveria atuar sem a menor dúvida ou questionamento, diversamente da sua pretendida atuação na fase de Investigação Criminal.

O articulista também não esclarece que as investigações criminais promovidas pelo Ministério Público não seguem o mesmo critério da Polícia Judiciária. Esta última é obrigada por lei a investigar todos os casos que são registrados. O Ministério Público atua de forma seletiva, em palavras mais simples, escolhe quando e o que quer investigar de acordo com as suas conveniências. Assim a comparação de resultados é fácil. Há uma distinção qualitativa enorme nas duas situações que é ocultada ou omitida pelo articulista, o qual pretende discutir em números absolutos ou em base quantitativa quando isso não tem o menor cabimento e constitui mesmo um engodo para todos que tenham contato com o seu texto.

Por fim, alega que seria um mal a Polícia Judiciária investigar “de forma soberana e sem responsabilidade para com os resultados do processo criminal” (sic). Aqui, até mesmo a concepção jurídica do articulista é de se pôr em cheque. Parece ele não compreender que o Inquérito Policial deve ser realizado com isenção e imparcialidade, que não é feito para o bel prazer da acusação, mas sim para a apuração escorreita da materialidade e autoria de infrações penais. Leia-se, inclusive para a apuração de que infrações penais não ocorreram ou que certos suspeitos iniciais não foram seus autores. A atividade de Polícia Judiciária não serve para produzir provas e/ou indícios necessariamente voltados para uma futura tese acusatória, ela deve ser mesmo independente, soberana e desprovida de amarras com o acusador, o defensor ou seja lá quem for. A única preocupação de um investigador deve ser com a apuração da verdade processualmente válida. Com nada mais e com ninguém mais. Mas, parece que o articulista não tem essa consciência. E acrescente-se que esse mal de que sofre o articulista é muito comum. A fase de investigação criminal tem sido relegada pela própria doutrina a um limbo de desprezo ao ponto em que a concepção exposta pelo Procurador pode mesmo passar despercebida pela maioria das pessoas, inclusive afetas à seara criminal, contaminadas por lições autoritárias que configuram a fase investigatória como um instrumento de criação de réus e condenados e não como um instrumento de apuração da verdade, inclusive para absolver inocentes.

Percebe-se, assim, a importância de se garantir a independência funcional do delegado de polícia nos autos do procedimento policial, pois, do contrário, não teria sentido a existência da própria Polícia Judiciária como instituição isenta e imparcial, sem qualquer interesse no processo que eventualmente possa se instaurar.

Nesse panorama, não é de se estranhar o alerta feito pelo pai do garantismo penal, [2] seguido por doutrina de peso,[3] no sentido de que a Polícia Judiciária tem que ser “separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender”.

Não por outra razão diversas constituições estatuais (a exemplo do Espírito Santo, São Paulo, Tocantins e Santa Catarina) consagram de maneira expressa a independência funcional do delegado de polícia, prerrogativa que também merece albergue na Constituição da República.

A função investigatória demanda generosas doses de imparcialidade, serenidade e respeito à dignidade da pessoa humana. O delegado de polícia sobressai-se como a primeira autoridade estatal a preservar os direitos fundamentais, não só das vítimas, mas também dos próprios investigados. Nessa perspectiva:

A independência funcional do Delegado de polícia, mais do que uma prerrogativa do cargo, traduz uma segurança do cidadão, no sentido de que não será investigado por influência política, social econômica ou de qualquer outra natureza, sendo tratado sem discriminações benéficas ou detrimentosas.[4]

Amputar a liberdade funcional da autoridade policial equivale a retirar do cidadão a certeza de que será investigado por autoridade independente. Resta saber a quem interessa atacar a prerrogativa da independência funcional do delegado de polícia e enfraquecer a Polícia Judiciária, ferindo de morte o republicanismo ao inverter a lógica democrática e a tratando como órgão de governo, e não de Estado.

Pelo todo exposto, o que se pode fazer é lamentar o pauperismo das argumentações e sua absoluta falta de consistência, bem como seu desrespeito para com toda uma instituição e pessoas que a compõem na exata medida em que uma instituição ou algumas são consideradas dignas de independência enquanto outras não o seriam por questões genéticas. É o racismo convertido para o formato institucional. Lamentar e esclarecer o público é a única coisa que podemos fazer nesse momento.    


Notas

[1] Polícia Independente: sociedade em perigo. Disponível em http://jota.uol.com.br/policia-independente-sociedade-em-perigo , acesso em 30.09.2016.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: RT, 2002, p. 617.

[3] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 333.

[4] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, jul. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciaria-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>. Acesso em: 14 jul. 2015.

Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; SANNINI NETO, Francisco Sannini. Ministério Público míope: visão destorcida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4849, 10 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52693. Acesso em: 8 nov. 2024.

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