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A vigência das regras de licitação da nova Lei das estatais

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Agenda 02/01/2017 às 09:50

A polêmica relacionada ao início da vigência das regras de licitação da nova Lei das estatais ocasionou correntes de interpretação, posição da Advocacia-Geral da União e regulamentação federal, publicada em dezembro de 2016.

Sumário: Introdução. 2. O problema da vigência das regras licitatórias. 3. As três correntes de interpretação. 4. O entendimento da AGU. 5. O novo regulamento federal. 6. Conclusão


1.Introdução.

Em 2016 foi publicada a Lei federal nº 13.303, com diversas regras para as licitações das estatais brasileiras, sejam exploradoras de atividade econômica ou prestadoras de serviços públicos.

Embora apresente falhas, no geral, a nova Lei é melhor que o regime licitatório tradicional. Adotando uma lógica semelhante ao Regime Diferenciado de Contratações (RDC), ela permite um regime licitatório flexível, que pode ser adaptado à pretensão contratual, além de “opcionais” como o orçamento sigiloso, a remuneração variável, as contratações simultâneas, o critério de maior retorno econômico, a contratação integrada e até a contratação semi-integrada (uma de suas principais novidades), que podem ser utilizados para alcançar o melhor formato de seleção. Entre tantas outras, há também novidades no que tange à relação contratual, que passou a ser mais horizontal, quando em comparação com o regime da Lei nº 8.666/93, repleto de prerrogativas extraordinárias em favor do Poder Público contratante.


2. O problema da vigência das regras licitatórias.

Uma das grandes polêmicas da nova Lei envolve a definição do momento de aplicação das suas regras licitatórias. Esta polêmica ocorre por conta da regra de vigência prescrita pelo artigo 91, em conjunto com seu §3º. Segundo o caput do artigo 91, a “Empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta Lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei”. Já o §3º, deste mesmo artigo, firma que “Permanecem regidos pela legislação anterior procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até o final do prazo previsto no caput”.

Há ainda que se registrar que persiste, no artigo 97 da mesma Lei, regra segundo a qual suas normas entrariam em vigor na data de sua publicação.

Como já dissemos outrora, chega a impressionar que algo tão simples, como a determinação do momento de início de vigência das novas regras licitatórias, tenha se tornado relativamente duvidoso, pela má redação da Lei.


3. As três correntes de interpretação.

Diante da ausência de clareza na Lei, convém ao intérprete extrair o sentido da norma, recorrendo à hermenêutica. Nesta missão, podemos identificar, pelo menos, três diferentes correntes interpretativas, com posições próprias sobre o início da vigência das regras licitatórias disciplinadas pela Lei das estatais.

A primeira corrente, fazendo uso de uma intepretação lógica, defende que as novas regras licitatórias devem ser aplicadas imediatamente, para todas as estatais, mantendo-se a legislação anterior apenas para as licitações lançadas e contratos celebrados até 30/06/2016. Como defensor desta corrente, podemos citar o ilustre Professor Renato Geraldo Mendes, o qual, em excelente artigo, defendeu que[2]:

A grande dúvida que nasce com a Lei nº 13.303/16 é a seguinte: o novo regime jurídico já está em vigor ou sua vigência somente terá início daqui a 24 meses? Parece incrível que uma lei já nasça com uma dúvida dessa natureza, principalmente quando houve grande empenho do Governo para sua rápida aprovação. Todo esse empenho não condiz com a possibilidade de o novo regime somente produzir efeitos daqui a 2 anos.

(...)

Ademais, é incoerente submeter um projeto de lei ao regime de urgência se ele não atender a, pelo menos, uma de duas condições: a) entrar em vigor na data de sua publicação ou b) entrar em vigor em curto prazo, isto é, em um prazo mínimo capaz apenas de possibilitar que seus destinatários conheçam o conteúdo das novas disposições.

E conclui o autor:

O art. 91 e o art. 97 cumprem funções distintas, ou seja, regulam esses diferentes mundos. Basicamente, a finalidade do § 3º do art. 91 é dizer que a legislação anterior continuará a ter vigência em relação a licitações já iniciadas e contratos já celebrados por, no máximo, mais 24 meses. No entanto, novas licitações e novos contratos devem ser regulados pela nova Lei, ou seja, pela Lei nº 13.303/16, não se aplicando mais leis anteriores.

(...)

Enfim, não resta mais nenhuma dúvida, para mim, de que a Lei nº 13.303/16 está em vigor e deve ser aplicada pelas empresas públicas e sociedades de economia mista e suas subsidiárias, pois ela não foi editada com prazo de vacância, mas sim com regra de direito intertemporal a ser observada apenas para licitações iniciadas e contratos celebrados até 30.06.16. As licitações cujo edital foi publicado a partir, inclusive, de 1º.07.16 e os contratos firmados a partir, inclusive, da mesma data devem observar a Lei nº 13.303/16, especialmente os arts. 28 a 84, os quais regulam o processo de contratação pública.

Noutro diapasão, uma segunda corrente, aparentemente realizando uma interpretação literal do referido §3º, defende que, ao menos para as estatais já existentes, as licitações iniciadas ou contratos celebrados, dentro do período de 24 meses a contar da publicação da Lei nº 13.303/2016, seguem a legislação tradicional. Assim, as novas regras licitatórias da Lei nº 13.303/2016 só poderiam ser utilizadas após este prazo de 24 meses. Como defensor desta corrente interpretativa, podemos destacar o renomado Professor Joel de Menezes Niebuhr[3]:

De acordo com o dispositivo supracitado, as estatais que já existem dispõem de 24 meses para promoverem adaptações para o cumprimento da Lei n. 13.303/2016. Antes disso, conclui-se, não precisam cumpri-la. A mesma regra vale para as licitações e contratos, de acordo com o § 3.º do mesmo artigo. Ou seja, licitações iniciadas ou contratos celebrados dentro do período de 24 meses a contar da publicação da Lei n. 13.303/2016 seguem a legislação tradicional, não devem seguir, ainda que as estatais queiram, o novo regime de licitações e contratos.

A Lei n. 13.303/2016, na prática, somente tem vigência imediata para novas estatais, criadas a partir da publicação da Lei, em 01 de julho de 2016. Como não se antevê no horizonte a criação de qualquer estatal relevante, o novo regime de licitações e contratos permanece adormecido até que se crie alguma ou por dois anos, o que é tempo demais. Um prazo de seis meses, que chegou a ser sugerido no Congresso, seria mais do que suficiente para que as estatais fossem adaptadas e começassem a cumprir o novo regime.

O problema é que o Governo e o Congresso alardearam a Lei n. 13.303/2016 como algo prioritário e urgente, algo que deveria moralizar as estatais, cujas reputações são afetadas pelos escândalos de corrupção. O Presidente interino comemorou a aprovação, fez esforço nessa direção, queimando cacife político. Não tem pé nem cabeça tanto alvoroço para legislação que, na prática, somente vai começar a surtir efeito em dois anos. O discurso político em torno do novo estatuto das estatais, postergado para dois anos, não passa de embuste.

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De nossa parte, defendemos entendimento diferente, identificado em uma terceira corrente. Esta, adotando uma intepretação sistemática, advoga que o prazo estatuído pelo §3º do artigo 91 deve ser compreendido juntamente com o caput e também com o artigo 97 da mesma Lei.

Nesse diapasão, as regras licitatórias da Lei também entraram em vigor na data de sua publicação, contudo, a mesma Lei abriu, especificamente, um prazo de até 24 meses para que as estatais promovessem as adaptações necessárias para adequação às novas regras legais, em relação às licitações e contratos, antes da aplicação do novo regime.

Assim, enquanto essas adaptações não forem promovidas, dentro deste prazo máximo estipulado, permanecerá sendo aplicada a legislação anterior.

Convém observar, contudo, que o “final do prazo previsto no caput”, indicado pelo §3º do artigo 91, não está relacionado ao lapso temporal de 24 meses, mas ao “prazo de adaptação”, o qual pode ocorrer em período menor (2, 6, 8, 10 ou 12 meses, por exemplo). Nessa feita, caso a estatal promova as adaptações necessárias à adequação ao disposto na Lei, antes de findo o prazo máximo estabelecido pelo legislador, poderá utilizar o novo regime licitatório.

Temos convicção que esta terceira corrente representa a melhor intepretação acerca dos dispositivos legais que estabelecem o momento de vigência das regras de licitação e contrato, da nova Lei das estatais, motivo pelo qual já vínhamos defendendo-a[4].

Repisamos, o prazo de 24 meses é estabelecido como limite máximo para a aplicação do novo regime licitatório, para as estatais, podendo ser aplicado em período inferior, caso a respectiva estatal promova as adaptações necessárias à adequação ao disposto na Lei, como a capacitação de seus agentes públicos, a decisão pelo órgão competente e a aprovação de seu regulamento interno de licitações, em reação às regras não autoaplicáveis[5].


4. O entendimento da AGU.

Esta terceira corrente interpretativa parece ter sido abraçada pela Consultoria Jurídica do Ministério do Planejamento, órgão da Advocacia-Geral da União[6], a qual defendeu ser autoaplicável o regime de licitação e contratação previsto na Lei nº 13.303/2016, podendo este ser aplicado antes do fim prazo de 24 meses. Vale a leitura da ementa da referida manifestação:

EMENTA: Consulta. Aplicabilidade das regras de licitação e contratos previstas na Lei nº 13.303/2016. O regime de licitação e contratação é autoaplicável. Embora a Lei 13.303/2016 determine a publicação de regulamento interno de licitações e contratos, não há óbice a que o regime de licitação e contrato previsto pela própria Lei já seja adotado. É permitida a utilização da legislação anterior aos procedimentos licitatórios e contratos celebrados até 24 meses após a Lei ou até a edição do regimento interno de licitações e contratos, caso o mesmo tenha sido publicado antes de referido prazo.

Adotando o entendimento semelhante à terceira corrente, anteriormente citada, a Advogada da União, Drª Carolina Scherer Bicca, firmou as seguintes conclusões[7]:

1) o regime de licitação e contratação previsto na Lei nº 13.303/2016 é autoaplicável;

 2) embora a Lei 13.303/2016 determine que seja publicado regulamento interno de licitações e contratos, nada impede que o regime de licitação e contratos estabelecido pela própria Lei já seja adotado; e

 3) é permitida, por 24 meses, a utilização da legislação anterior para os procedimentos licitatórios e contratos celebrados até aquela data ou até a edição do regimento interno de licitações e contratos, caso o mesmo tenha sido publicado antes de referido prazo.

Comungando com este raciocínio, inclusive, importantes estatais, como a Infraero, já vinham adotando o regime licitatório da nova Lei, antes mesmo da publicação de seus regulamentos internos, até pela correta compreensão de que ele permite ganhos de eficiência nas licitações e contratações públicas.


5. O novo regulamento federal.

Mais recentemente, o Decreto Federal nº 8.945, publicado no dia 28/12/2016, consolidou entendimento semelhante ao defendido desde outrora pela terceira corrente interpretativa, acima citada.

Segundo a redação estabelecida no regulamento federal, o regime de licitação e contratação da Lei nº 13.303/2016 é autoaplicável, ressalvadas regras pontuais, como aquelas pertinentes a:

Segundo o mesmo Decreto federal nº 8.945/2016, a estatal deve editar seu regulamento interno de licitações e contratos até o dia 30 de junho de 2018, dispondo sobre os pontos tidos como não autoaplicáveis, o qual será aprovado pelo Conselho de Administração da empresa, se houver, ou pela assembleia geral.

Por fim, no §2º de seu artigo 71, o referido Decreto federal firma que é permitida a utilização da legislação anterior (Lei nº 8.666/93 e Lei nº 10.520/2002, por exemplo), para os procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até a edição do referido regulamento interno ou até o dia 30 de junho de 2018, o que ocorrer primeiro.

Vale a leitura de trecho do referido regulamento federal:

Art. 71.  O regime de licitação e contratação da Lei nº 13.303, de 2016, é autoaplicável, exceto quanto a:

I - procedimentos auxiliares das licitações, de que tratam os art. 63 a art. 67 da Lei nº 13.303, de 2016;

II - procedimento de manifestação de interesse privado para o recebimento de propostas e projetos de empreendimentos, de que trata o § 4º do art. 31 da Lei nº 13.303, de 2016;

III - etapa de lances exclusivamente eletrônica, de que trata o § 4º da art. 32 da Lei nº 13.303, de 2016;

IV - preparação das licitações com matriz de riscos, de que trata o inciso X do caput do art. 42 da Lei nº 13.303, de 2016;

V - observância da política de transações com partes relacionadas, a ser elaborada, de que trata o inciso V do caput do art. 32 da Lei nº 13.303, de 2016; e

VI - disponibilização na internet do conteúdo informacional requerido nos art. 32, § 3º, art. 39, art. 40 e art. 48 da Lei nº 13.303, de 2016.

§ 1o  A empresa estatal deverá editar regulamento interno de licitações e contratos até o dia 30 de junho de 2018, que deverá dispor sobre o estabelecido nos incisos do caput, os níveis de alçada decisória e a tomada de decisão, preferencialmente de forma colegiada, e ser aprovado pelo Conselho de Administração da empresa, se houver, ou pela assembleia geral.

§ 2o  É permitida a utilização da legislação anterior para os procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até a edição do regulamento interno referido no § 1o ou até o dia 30 de junho de 2018, o que ocorrer primeiro. (Grifo nosso)

Com se percebe, a regra disposta pelo Decreto federal nº 8.945/2016 adota linha semelhante à terceira corrente interpretativa, acima tratada, permitindo que a aplicação das novas regras licitatórias da Lei nº 13.303/2016 se dê antes do prazo de 24 meses, desde que a estatal promova as adaptações necessárias, antes de findo o prazo máximo estabelecido pelo legislador, como se dá com a edição de seu regulamento interno, já compatível com a Lei nº 13.303/2016.

Sobre o autor
Ronny Charles Lopes de Torres

Advogado da União. Palestrante. Professor. Mestre em Direito Econômico. Pós-graduado em Direito tributário. Pós-graduado em Ciências Jurídicas. Membro do Grupo de Editais de Licitações da AGU. Membro da Câmara Nacional de Uniformização da Consultoria Geral da União. Atuou como Consultor Jurídico Adjunto da Consultoria Jurídica da União perante o Ministério do Trabalho e Emprego. Atuou, ainda, na Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência Social, na Consultoria Jurídica do Ministério dos Transportes e na Consultoria Jurídica da União, em Pernambuco. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (8ª Edição. Ed. JusPodivm); Licitações públicas: Lei nº 8.666/93 (7ª Edição. Coleção Leis para concursos públicos: Ed. Jus Podivm); Direito Administrativo (Co-autor. 7ª Edição. Ed. Jus Podivm); RDC: Regime Diferenciado de Contratações (Co-autor. Ed. Jus Podivm); Terceiro Setor: entre a liberdade e o controle (Ed. Jus Podivm) e Improbidade administrativa (Co-autor. 3ª edição. Ed. Jus Podivm). Autor da coluna mensal “Direito & Política” da Revista Negócios Públicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Ronny Charles Lopes. A vigência das regras de licitação da nova Lei das estatais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4933, 2 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54805. Acesso em: 5 nov. 2024.

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