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Tráfico Internacional de Drogas Ingeridas: direito à vida versus direito à não autoincriminação

Agenda 10/04/2017 às 14:16

No aparente conflito de normas constitucionais entre o direito à não autoincriminação e o direito à vida (dignidade da pessoa humana), deve prevalecer este sobre o primeiro, resguardando-se o bem mais importante.

Nos principais aeroportos internacionais brasileiros, a Polícia Federal, com relativa frequência e utilizando técnicas investigativas próprias e adequadas, realiza a abordagem de cidadãos brasileiros ou estrangeiros com fortes suspeitas de que embarcariam em voo internacional portando cocaína em seu aparelho digestivo.

Em casos deste tipo, diante da suspeita de prática do crime de tráfico internacional de entorpecentes, e do iminente risco de morte da pessoa que atua como correio humano no transporte de drogas por ingestão, caso alguma das cápsulas por ele, porventura, ingeridas venha a ser rompida durante o voo, outra alternativa não resta à Polícia Judiciária da União a não ser a condução imediata do suspeito até um hospital, para a realização dos exames clínicos e do atendimento necessários não só à comprovação do delito, mas, principalmente, ao seu pronto atendimento, resguardando a sua vida.

Assim posta a situação hipotética, uma vez que o Delegado de Polícia Federal, que, como servidor público que é, goza da presunção de legitimidade dos seus atos, encaminha ao hospital, por intermédio dos Agentes de Polícia Federal, o suspeito de ter ingerido quantidade de cápsulas contendo cocaína, é dever dos profissionais de saúde dar todo o apoio necessário à constatação da veracidade daquela situação suspeita.

Não obstante, já ocorreram casos em que o profissional médico, apesar de cientificado da gravidade da situação decorrente da suspeita da ingestão de drogas pelo paciente, negou-se a realizar os exames para a confirmação da suspeita, bem como os procedimentos decorrentes dessa constatação, tão somente porque o conduzido, embora orientado quanto ao risco de ruptura de cápsulas contendo drogas, teria negado ingestão de medicamentos e/ou quaisquer outras substâncias, e recusado atendimento e avaliação clínica e radiológica.

Condutas médicas desse tipo, a pretexto de dar primazia à vontade do paciente de não se autoincriminar, acabam por promover uma redução da condição humana do conduzido, que é tratado pelo médico como mero investigado ou suspeito e não como paciente, deixando o médico, em casos como tais, de praticar ato de ofício que lhe é atribuído legal e constitucionalmente, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal de natureza moral (in casu, a não autoincriminação do paciente).

É de se observar que a realização de exame clínico, incluindo-se a feitura, nestes casos, de tomografia computadorizada, “raio X” ou outro exame adequado, ainda que diante da recusa do paciente, não violam a vida privada ou a intimidade do cidadão, tampouco qualquer outro direito constitucional a ele assegurado.

Com efeito, havendo a suspeita por parte da Polícia Federal de que o paciente apresentado ao hospital ingeriu invólucros contendo droga, o que se visa em primeiro plano é a preservação da vida humana, cuja proteção constitucional é superior à proteção de qualquer outro direito.

Se a Constituição da República assegura no inciso LXIII e no §2º do art. 5º o princípio insculpido na Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) de que ninguém pode ser compelido a produzir provas contra si mesmo (não autoincriminação), a Carta Magna, ao adotar como fundamento da República Federativa do Brasil, no art. 1º, III, a dignidade da pessoa humana, também reconhece a vida como o direito mais importante do cidadão.

Neste aparente conflito de normas constitucionais, entre o direito à não autoincriminação e o direito à vida (dignidade da pessoa humana), deve prevalecer este sobre o primeiro, resguardando-se o bem mais importante.

E, no caso dos médicos, impõe-se-lhes, antes de tudo, o dever de zelar pela vida dos seus pacientes.

Este, aliás, foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC nº 149.146-SP, ocorrido em 04 de abril de 2011, cuja ementa transcrevo, por oportuna:

EMENTA: HABEAS CORPUS. TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS. PACIENTES SUBMETIDOS A EXAME DE RAIOS-X. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA PROVA POR OFENSA AO PRINCÍPIO DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. INOCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO PREVISTA NO ART. 33, §4º, DA LEI Nº 11.343/06. IMPOSSIBILIDADE. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. ELEVADA QUANTIDADE DE COCAÍNA.

  1. A Constituição Federal, na esteira da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto de São José da Costa Rica, consagrou, em seu art. 5º, inciso LXIII, o princípio de que ninguém pode ser compelido a produzir prova contra si.
  2. (...)
  3. Ademais, é sabido que a ingestão de cápsulas de cocaína causa risco de morte, motivo pelo qual a constatação do transporte da droga no organismo humano, com o posterior procedimento apto a expeli-la, traduz em verdadeira intervenção estatal em favor da integridade física e, mais ainda, da vida, bens jurídicos estes largamente tutelados pelo ordenamento. (...)” (STJ, HC nº 149.146-SP, Relator Ministro OG Fernandes)
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A negativa de realização de exame clínico no conduzido encaminhado a exame por parte do médico, ainda que por alegada recusa de atendimento por parte do paciente, caracteriza a prática dos crimes de prevaricação[1] [2] e perigo para a vida ou saúde de outrem[3] [4], caso o médico seja servidor público nos moldes do que dispõe o art. 327 do Código Penal, ou a prática dos crimes de desobediência[5] e omissão de socorro[6], caso o médico seja empregado de hospital particular.

Como a quase totalidade dos encaminhamentos feitos pela Polícia Federal tem como destino hospitais de pronto-socorro, públicos, integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS), que têm como missão prestar assistência hospitalar gratuita em casos de urgência, seu corpo médico plantonista enquadra-se no conceito de funcionário público constante do art. 327 do Código Penal.

Em caso de eventual negativa de atendimento, o médico praticaria, em tese, em concurso formal, não só o crime de prevaricação, como também o crime de perigo para a vida ou a saúde de outrem, na medida em que, cientificado via comunicação formal pela Polícia Federal das suspeitas de que o paciente conduzido é suspeito de portar em seu aparelho digestivo cápsulas com cocaína, contentar-se-ia em orientá-lo quanto ao risco de ruptura das cápsulas e aceitar a recusa de atendimento, assumindo, assim, o risco da liberação do paciente.

Caso seja comprovada a prática do crime de prevaricação pelo profissional médico, haverá ofensa a interesse da União, tal como disposto no art. 144, §1º, II, da Constituição da República, sendo o outro crime conexo, dado o concurso formal, justificando-se a prisão em flagrante e a lavratura de Termo Circunstanciado ou, conforme as circunstâncias do caso, a instauração de inquérito policial.


Notas

[1] “Art. 319. Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.”

[2] Consoante FRANCO et al, na obra Código Penal e sua interpretação Jurisprudencial, 4ª edição, revista e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, p. 1654/1655, no crime de prevaricação, “agente é o funcionário público. (...) Prevaricação é a infidelidade ao dever de ofício, à função exercida. É o não-cumprimento das obrigações que lhe são inerentes, movido o agente por interesse ou sentimentos próprios.(...) Deixa de praticar o ato o funcionário que o omite. (...) O interesse pessoal pode ser de natureza material (patrimonial) ou moral.”

[3] Art. 132. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

[4] Consoante BITENCOURT, na obra Código Penal Comentado, 2002, Editora saraiva, p. 747/481, no crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, “a vida e a saúde da pessoa humana, ou, em termos mais abrangentes, a incolumidade pessoal constitui o objeto da tutela penal, isto é, a vida e a integridade fisiopsíquica são os bens jurídicos protegidos. (...) Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo e sujeito passivo deste crime, desde que seja determinada. (...) O perigo deve ser direto (em relação a pessoa determinada) e iminente (prestes a acontecer), isto é, concreto, efetivo, presente, imediato, demonstrado e não presumido. É desnecessário o dano, sendo suficiente a exposição a perigo. (...) É irrelevante, para a configuração do crime de perigo para a vida ou a saúde de outrem, o eventual consentimento da vítima, em razão da indisponibilidade dos bens jurídicos protegidos; igualmente, irrelevante é o motivo impulsionador da ação. (...) O agente deve querer, conscientemente, o estado de perigo ou, no mínimo, admiti-lo, assumindo o risco de produzi-lo.”

[5] Art. 330. Desobedecer a ordem legal de funcionário público.

Pena - detenção, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, e multa.

[6] Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desemparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.”

Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

Sobre o autor
Elster Lamoia de Moraes

Delegado de Polícia Federal em Belo Horizonte (MG). Especialista em Direito Público. Especialista em Inteligência de Estado e Inteligência de Segurança Pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Elster Lamoia. Tráfico Internacional de Drogas Ingeridas: direito à vida versus direito à não autoincriminação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5031, 10 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55514. Acesso em: 24 nov. 2024.

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