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A dupla cobertura do FCVS em contratos de financiamento de imóveis à luz da jurisprudência do STJ

Agenda 15/04/2017 às 14:00

Com este breve estudo, pretendemos analisar como a jurisprudência do STJ, por meio de recurso repetitivo, sedimentou a questão da dupla cobertura do fundo de compensação de variações salariais - FCVS, a partir da legislação existente.

Em 1964, o governo brasileiro criou o Sistema Financeiro Habitacional (SFH), por meio da Lei Federal 4.380/64, que visava facilitar a aquisição de imóvel próprio pelos brasileiros, tida como um grande marco para a população. A lei prevê uma série de regras para que o financiamento bancário contemple a aquisição, dentre elas que seja para uso próprio de moradia, não podendo ser alugada ou revendida, e que eventual inadimplência acarreta rescisão contratual[1]. A ideia da lei era disponibilizar crédito para aquisição de imóvel pois, na época, o financiamento bancário era muito mais escasso do que nos dias atuais.

Originalmente, a instituição responsável pela administração do SFH foi o Banco Nacional de Habitação (BNH), que acabou extinto em 1988, sendo então substituído pela Caixa Econômica Federal (CEF), que é quem administra o Sistema até hoje.

Três anos depois de lançado o SFH, foi criado o Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS)[2], que buscava garantir o pagamento de eventuais resíduos nos saldos devedores dos mutuários do Sistema, quando quitavam o contrato. Isso acontecia porque, na época, as prestações reajustadas todos anos e o saldo devedor tinha correção trimestral. Mesmo com o Coeficiente de Equiparação Salarial criado para evitar essa disparidade, anos de inflação galopante e defasagem salarial acabaram por criar um rombo no Fundo.

Com isso, mesmo que o mutuário pagasse todas as parcelas do financiamento em dia, ao fim do contrato ainda restaria um saldo residual a pagar, muitas vezes de valor substancial, decorrente da disparidade de correção dos valores. E este saldo residual deveria ser coberto pelo FCVS. Diante de suas características, o FCVS se constitui em verdadeiro seguro, cuja definição pode ser entendida como um contrato pelo qual “uma das partes (segurador) se obriga para com outra (segurado), mediante o recebimento de um prêmio, a indenizá-la, ou a terceiros, de prejuízos resultantes de riscos futuros, previstos”[3].

Ocorre que os valores depositados pelos mutuários, a título de pagamento do FCVS, não eram suficientes para liquidar os saldos residuais dos contratos de financiamento habitacionais, em virtude das disparidades econômicas da época, o que passou a sobrecarregar o Tesouro Nacional, que era quem acabava por cobrir o rombo do Fundo. Com isso, o FCVS foi tendo seu campo de atuação limitado, especialmente pelas Leis Federais 8.004/90 e 8.100/90, e foi sendo afastado dos contratos imobiliários, tanto que atualmente o SFH não opera mais com este seguro em seus instrumentos contratuais.

Uma das limitações impostas pela Lei 8.100/90 foi a de que o FCVS só poderia quitar um saldo devedor remanescente, por mutuário, ou seja, quem adquirisse mais de um imóvel deveria optar em qual deles o Fundo operaria. O texto original da lei nada mencionava sobre a questão de imóveis adquiridos antes da data da norma (1990), assim a CEF passou a aplicar o dispositivo retroativamente. Por exemplo, se uma pessoa tivesse dois contratos de financiamento vigentes, assinados em 1985 e 1987, um deles não seria contemplado pelo FCVS e o mutuário teria uma surpresa quando fosse requerer o levantamento da hipoteca, mesmo tendo quitado todas suas parcelas pontualmente.

Tal conduta da administradora do Fundo fere o princípio da eficácia da lei no tempo, em que se sobressai a regra tempus regit actum, ou seja, que as obrigações sejam regidas pela lei vigente ao tempo em que se constituíram. Tal princípio vem consagrado em nossa Constituição Federal de 1988, que prevê, em seu artigo 5o, inciso XXXVI: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”[4].

Devemos também nos socorrer nos ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira: “os direitos de obrigação regem-se pela lei no tempo em que se constituíram, no que diz respeito à formação do vínculo, seja contratual, seja extracontratual. Assim, a lei que regula a formação dos contratos não pode alcançar os que se celebraram na forma de lei anterior”[5].

No mesmo sentido segue o entendimento de Carlos Maximiliano: “as obrigações em geral, e com abundância maior de razão, os contratos, regem-se em todos os sentidos pela lei sob cujo império foram constituídos... Os efeitos jurídicos dos contratos regem-se pela lei do tempo em que se celebraram”[6].

Diante disso, cabe transcrever as normas existentes, para compreensão definitiva dos direitos dos mutuários. Todos aqueles contratos firmados antes da data de 05 de dezembro de 1990 são regidos pela Lei Federal 4.380/64, que, em seu artigo 9o, determina:

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Lei 4.380/64, Art. 9o. Todas as aplicações do sistema, terão por objeto, fundamentalmente a aquisição de casa para residência do adquirente, sua família e seus dependentes, vedadas quaisquer aplicações em terrenos não construídos, salvo como parte de operação financeira destinada à construção da mesma.

§ 1o. As pessoas que já forem proprietários, promitentes compradoras ou cessionárias de imóvel residencial na mesma localidade não poderão adquirir imóveis objeto de aplicação pelo sistema financeiro da habitação[7].

Na data de 05 de dezembro de 1990, surge a Lei Federal 8.100, que previa, originalmente, em seu artigo 3o:

Lei 8.100/90, Art. 3°. O Fundo de Compensação das Variações Salariais (FCVS) quitará somente um saldo devedor remanescente por mutuário ao final do contrato, inclusive os já firmados no âmbito do SFH.

Assim, em que pese a Lei 8.100/90 tenha sido omissa a respeito de quais contratos estariam abrangidos por sua vedação à dupla incidência do FCVS, o princípio da eficácia da lei no tempo determina que os contratos assinados antes da data de entrada em vigor da referida norma não são por ela atingidos, devendo vigorar apenas o determinado na Lei 4.380/64, que não prevê qualquer proibição.

E, tanto é verdade que a Lei 8.100/90 encontrava-se incompleta que, em 2001, a Lei Federal 10.150 veio para complementar o supracitado artigo 3o, que passou a ter a seguinte redação:

Art. 3o O Fundo de Compensação de Variações Salariais - FCVS quitará somente um saldo devedor remanescente por mutuário ao final do contrato, exceto aqueles relativos aos contratos firmados até 5 de dezembro de 1990, ao amparo da legislação do SFH, independentemente da data de ocorrência do evento caracterizador da obrigação do FCVS.

Com esta redação, restou sanada a omissão original, reconhecendo-se, assim, expressamente, que aqueles mutuários com mais de um contrato de financiamento habitacional, firmados antes de 05 de dezembro de 1990, têm direito à dupla cobertura do FCVS sobre os eventuais saldos residuais dos mesmos.

A despeito da matéria parecer vencida, a Caixa Econômica Federal, gestora do FCVS seguiu praticando como regra o disposto no texto original do artigo 3o, da Lei 8.100/90, entendendo pela não cobertura do FCVS em casos de mais de um contrato firmado pelo mesmo mutuário, mesmo sendo ambos anteriores à 05.12.1990. Com isso, diversas foram as ações judiciais intentadas com intuito de corrigir tal discrepância.

Tantas foram as demandas no Judiciário que o Superior Tribunal de Justiça recebeu o Recurso Especial 1.133.769/RN[8], admitindo-o como recurso representativo da controvérsia e tendo como relator o Ministro Luiz Fux.

O Recurso Repetitivo versava sobre uma negativa de cobertura do FCVS a um mutuário que possuía dois contratos de financiamento, firmados em 1979 e em 1987, ambos contendo cláusula de cobertura pelo Fundo, no mesmo Município. O Recurso foi julgado em 18.12.2009 e, além das fundamentações lançadas acima, o ministro julgador ainda reconheceu que o FCVS onerou ambos contratos com a cobrança de suas prestações e que desobrigar a cobertura do Fundo a eventuais saldos devedores, consubstanciaria enriquecimento em favor das instituições bancárias, além de violar o Princípio da Irretroatividade das Leis.

Para o Ministro Fux, em virtude da indiscutível aplicação da legislação originária (Lei 4.380/64), que não possui limitação de aplicabilidade do FCVS, a solução da controvérsia dos autos independia da existência ou não do duplo financiamento, pois era consequência lógica da letra da lei ora vigente.

O magistrado, outrossim, negou provimento ao Recurso Especial, reconhecendo o direito do mutuário e condenando a CEF a cobrir ambos saldos devedores do mutuário, pois ela é a gestora do FCVS e quem possui a personalidade jurídica necessária para tanto, nos termos da Súmula 327, do STJ[9].


CONCLUSÃO

Um assunto que diga respeito ao Sistema Financeiro da Habitação sempre é complexo pois envolve, além de direitos e deveres de ambas as partes – mutuário e agente financeiro –, questões de propriedade, moradia e dignidade da pessoa humana.

Na breve explanação acima, buscamos analisar como o Fundo de Compensação de Variações Salariais – FCVS atua nas relações contratuais imobiliárias, desde sua criação, ainda na década de 60, até os dias atuais.

Com este estudo, foi possível perceber que o FCVS é um instituto controverso, que teve suas bases alteradas por algumas vezes ao longo do tempo. E tais alterações acabaram por limitar sua atuação e uma grande limitação foi a negativa, pela Lei 8.100/90, da dupla cobertura do Fundo aos mutuários que possuíam mais de um imóvel financiado no mesmo Município.

A controvérsia criada por esta vedação nos permitiu analisar a legislação vigente, com base no princípio da irretroatividade da lei, culminando com o estudo da decisão judicial paradigmática de Recurso Repetitivo no STJ. Em seu voto, o relator, Ministro Luiz Fux, reconheceu o direito dos mutuários com financiamentos anteriores à Lei 8.100/90, para que ambos financiamentos sejam cobertos pelo FCVS, pois referida norma não pode retroagir, atingindo os direitos oriundos dos contratos já firmados.

Com isso, buscou-se apresentar elementos que tornem possível dirimir a controvérsia relativa a dupla cobertura do FCVS, restando demonstrado inequivocamente o direito dos mutuários.


Notas

[1] BRASIL. Lei Federal 4.380, de 21 de agosto de 1964.

[2] Criado pela Resolução 25/1967 do Conselho de Administração do BNH e ratificado pela Lei 9.443/97.

[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, volume III. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.301.

[4] BRASIL. Constituição Federal de 1988.

[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense. Vol. I, Ed. 24., 2011, p.134-135.

[6] MAXIMILIANO, Carlos. Direito. São Paulo: Ed. Freitas Bastos, 1946, p. 182-183.

[7] Lei Federal 4.380, de 21 de agosto de 1964.

[8] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 1.133.769/RN, julgado em 18.12.2009.

[9] Súmula 327, STJ. Nas ações referentes ao Sistema Financeiro da Habitação, a Caixa Econômica Federal tem legitimidade como sucessora do Banco Nacional da Habitação.

Sobre o autor
Bernardo M. S. Noronha

Advogado, inscrito na OAB/RS 67.912. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, especialista em Direito Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. www.silveiraenoronha.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NORONHA, Bernardo M. S.. A dupla cobertura do FCVS em contratos de financiamento de imóveis à luz da jurisprudência do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5036, 15 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56945. Acesso em: 28 dez. 2024.

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