(iv) REGRAS DE TRANSIÇÃO E A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL
A atual proposta de reforma da previdência (PEC 287-A) visa igualar os sistemas previdenciários, instituindo, em efetivo, uma previdência universal básica para todos, ainda que tenha conservado o Art. 40 da Constituição.
Trata-se da derradeira ruptura. Ignorar essa constatação é negar a própria proposição. E, a quebra da segurança individual presente nas regras de transição trazidas pela PEC 287-A se apresenta, agora, como a efetiva materialização do desmonte da seguridade social do servidor público, a se agregar como fonte para avaliação da proibição de retrocesso social.
Nesse passo, faz-se mister dizer que o entendimento acerca da vedação ou proibição de retrocesso social não se confunde com os princípios da segurança jurídica ou com o direito adquirido, pois é uma categoria de princípio colmatada para assegurar a força social que emana do sistema jurídico constitucional, comprometida em resguardar o próprio sistema enquanto núcleo intangível de direitos sociais, passíveis de serem contrapostos individualmente quando violados.
Ingo Wolfgang Sarlet resume muito bem esse entendimento ao cuidar do tema em suas “Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo Latino-Americano”, do qual se reproduz o elucidativo excerto:
“Como ponto de partida, é possível recolher a lição de Luís Roberto Barroso, que, aderindo à evolução doutrinária precedente, pelo menos no que diz com a literatura luso-brasileira, bem averba que, “por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido”25. Embora tal fundamentação seja insuficiente para dar conta da complexidade da proibição de retrocesso, ela demonstra que a noção de proibição de retrocesso segue, como já frisado acima, sendo vinculada à noção de um direito subjetivo negativo, no sentido de que é possível impugnar judicialmente toda e qualquer medida que se encontre em conflito com o teor da Constituição (inclusive com os objetivos estabelecidos nas normas de cunho programático), bem como rechaçar medidas legislativas que venham, pura e simplesmente, subtrair supervenientemente a uma norma constitucional o grau de concretização anterior que lhe foi outorgado pelo legislador26. Em suma, colacionando, para este efeito, a lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, as normas constitucionais que reconhecem direitos sociais de caráter positivo implicam uma proibição de retrocesso, já que “uma vez dada satisfação ao direito, este se transforma, nessa medida, em direito negativo, ou direito de defesa, isto é, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele”27.
De acordo com tal linha de entendimento, não é possível, portanto, admitir-se uma ausência de vinculação do legislador (assim como dos órgãos estatais em geral) às normas de direitos sociais, assim como, ainda que em medida diferenciada, às normas constitucionais impositivas de fins e tarefas em matéria de justiça social, pois, se assim fosse, estar-se-ia chancelando uma fraude à Constituição, pois o legislador – que ao legislar em matéria de proteção social apenas está a cumprir um mandamento do Constituinte – poderia pura e simplesmente desfazer o que fez no estrito cumprimento da Constituição.”[21] (o grifo não consta do original)
Iniciou-o o presente ensaio com o significado do direito adquirido, mormente sob a ótica da jurisprudência pátria. Observou-se a limitação que encerra o instituto sob o olhar da jurisprudência enquanto instrumento garantidor dos direitos previdenciários. Ponto.
Verifica-se, agora, a proibição do retrocesso social como uma categoria mais larga de princípios, responsável por vincular subjetivamente os direitos sociais no momento de sua instituição, irradiando sua ação como paradigma de combate à subtração desses direitos sob o enredo de proteção ao sistema jurídico-social-constitucional.
Sob tal alicerce, não é difícil perceber que a PEC 287-A inaugura, efetivamente, a quebra do sistema de seguridade social construído para o servidor público e, como tal, vulnera materialmente o princípio da proibição de retrocesso social. Retrocesso, aliás, não somente dos direitos sociais albergados pelo RPPS, mas do RGPS, pois nivela por baixo os regimes de previdência com o nítido viés de garantir melhorias de arrecadação na ordem tributária.
Mas invocar o princípio da vedação de retrocesso social requer responsabilidade. Não se pode simplesmente invocá-lo à mercê de alegações vazias. É preciso tornar visível os aspectos em que se vislumbra essa vulneração.
Pois bem, a existência do RPPS enquanto regime de seguridade social do servidor público está sendo totalmente desafetada na sua especialidade pela PEC 298-A. E veja que, desde a Reforma de 2003, já não se tinha um regime propriamente especial, pois os requisitos para concessão dos benefícios já estavam atrelados ao limite de idade, de tempo de contribuição, de tempo de efetivo exercício no serviço público, assim como de tempo no cargo e na carreira, diversamente até mesmo do RGPS, onde não se fez constar a limitação de idade de forma expressa.
A proposta de reforma atual, sob a alegação derradeira de assegurar a manutenção dos próprios benefícios previdenciários, impõe o total desfazimento do RPPS. E veja que as regras propostas não afetarão apenas os futuros servidores. Afetarão, também, os servidores que ingressaram no regime de cargo por ocasião de normas que lhes garantia aposentadoria com proventos integrais, seja com equivalência da remuneração, seja pela composição da média. São eles: os servidores com idade inferior a 50 anos, se homem, e inferior a 45, se mulher, não obstante o tempo de contribuição que detenham. São os excluídos das regras de transição.
Sob tal alcance, verifica-se que houve um corte nas normas básicas desses servidores, corte esse que efetivamente materializa um retrocesso. Aliás, o retrocesso dá-se por conta do próprio sistema proposto pela PEC 287-A, onde se evidencia a preponderância do viés tributário sobre a essência do núcleo social intangível dos direitos previdenciários, muito além do mínimo existencial.
Embora não se esteja discutindo, agora, a constitucionalidade da revogação das normas de transição, pois assim já se fez em outras assentadas e, como dito, essa página foi, infelizmente, riscada pela nossa Excelsa Corte Suprema, forçoso é admitir que essas regras, quando renovadas sob contexto reformador, devem adentrar o patrimônio de todos em igualdade de condições, não se mostrando razoável a imposição de qualquer limitação a seu plexo de incidência.
Na verdade, o núcleo social intangível de toda regra de transição é a sua própria destinação[22], até mesmo porque essas regras já dispõem de requisitos próprios para concessão de benefícios, onde os acréscimos de tempo se fazem presentes via pedágio. Assim, se os que estavam em vias de concretização são cortados do rol de sua aplicação, há que se admitir a presença de violação ao princípio que veda o retrocesso social, pois o esboço normativo autorizado pelo sistema constitucional, acolhido pelo Excelso Pretório, consigna essa regra para todos os que estavam confiantes na expectativa desse reconhecimento, a exemplo do que foi proclamado nas ondas de reforma que antecederam.
Nesse passo, tem-se que a violação ao princípio de retrocesso social encontra-se latente nas regras de transição previstas na PEC 287-A, eis que não albergam a destinação transitória requisitada pelo núcleo básico do sistema social vigente.
(v) CONCLUSÃO
A PEC 287-A foi muito bem pensada. Muito bem arquitetada, pois coloca o limite de idade como o bode expiatório do sistema que pretende inaugurar quando a bola da vez é, na verdade, o tempo de contribuição da intitulada fórmula 65/25[23] que, se aprovada, responderá pelo desmonte da seguridade social no Brasil.
É essa fórmula que vai ser assegurada ao servidor que estiver, na oportunidade da promulgação da proposta de Emenda, com a idade inferior a 50 anos, se homem e, 45 anos, se mulher. Ou seja, segurança nenhuma foi garantida a esses servidores.
No entanto, o corte da idade – sem qualquer fundamento jurídico – transforma as regras de transição em regras de contenção, pois muitos que estavam na expectativa de alcançar o direito sob o manto das regras pretéritas sofrem a injustiça do impedimento. E isto é retrocesso social.
Embora a PEC 287-A tenha se preocupado em resguardar o direito adquirido, até mesmo para possibilitar a sua eventual aprovação diante da pacífica jurisprudência sobre o tema, não teve a mínima cautela em limitar os direitos dos servidores que ingressaram no regime de cargos antes da sua provável promulgação.
Pode-se dizer que a segurança individual do sistema trazido pela PEC 287-A carece de fundamento social-constitucional, eis que deixa transparecer a preponderância do viés tributário sobre o viés assecuritário.
Na verdade, a PEC 287-A faz fenecer os fundamentos da seguridade social. A ruptura é incomensurável. E para os servidores públicos essa ruptura é visível, pois sempre foram segurados especiais, tanto que a previsão de seus benefícios consta de dispositivo constitucional isolado (Art. 40), longe da previsão das regras da Seguridade Social.
A questão é de imensa importância na atualidade. Muitas vidas serão afetadas. É preciso conhecer e debater todas as ações.
Essa a nossa contribuição!
Notas
[2] Não se pode dizer que a Emenda nº 3/93 provocou uma reforma na previdência, muito embora tenha sido responsável pela introdução do sistema contributivo para o RPSS, pondo fim à aposentadoria premial.
[3] Análise realizada no livro “Regime Próprio de Previdência Social”, de minha autoria, São Paulo, Editora NDJ, 2007.
[4] O grifo não consta do original.
[5] Firmou-se entendimento no âmbito da Administração Pública Federal, sedimentada por decisão do Tribunal de Contas da União (Decisão nº 748/2000-TCU-Plenário), no sentido de que os servidores que implementaram tempo para concessão de licença prêmio por assiduidade antes da Emenda Constitucional nº 20/98, embora não tenham satisfeito as condições para aposentadoria com base nas regras pretéritas, adquiriram direito à contagem desses períodos, em dobro, para a aposentadoria, inclusive a prevista no art. 8º da EC nº 20/98, eis que a legislação vigente à época lhes garantiu esse direito para usufruto no futuro. DOU de 28.9.2000, p. 63/67. Igual entendimento consta do RE nº 370.347/RS, Rel. Min. Cezar Peluzo, DJ de 14/2/2005, p. 41.
[6] Magistério de Caio Mário da Silva Pereira, colhido de sua obra Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro Forense, 1961, v.1, p.125, citado no parecer elaborado pela Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência Social. Fonte: Anexo III – Síntese do Parecer sobre Direito Adquirido, In: Reforma da Previdência em questão. Lauro Morhy (Org.). Brasília: Universidade de Brasília, Laboratório de Estudos do Futuro/ Gabinete do Reitor: Editora Universidade de Brasília, 2003, p. 433/443.
[7] Excerto do voto do Ministro Moreira Alves. Acórdão de 4.11.1981, disponível no site www.stf.gov.br – acompanhamento processual, inteiro teor.
[8] Caso da cassação de aposentadoria, da acumulação de cargos públicos e proventos, dentre outros.
[9] Considera-se que as ondas de reforma implementadas entre 2003 e 2005 tiveram o condão de quebrar com os paradigmas do RPPS e, como tal, afastar os servidores aposentados das limitações impostas pelo regime jurídico administrativo (RJU) a que estavam vinculados por efeito do provimento em cargo público. Entretanto, a jurisprudência, por diversas vezes, ignorou essa ruptura, insistindo em manter o aposentado do RPPS amarrado às limitações próprias do cargo público, a exemplo da aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria, sanção que não mais se deveria acolher por força do novo sistema. (v. ALVARES, Maria Lúcia Miranda. Regime Próprio de Previdência Social. São Paulo. Editora NDJ, 2007)
[10] O Art. 23 da PEC 287-A traz previsão de revogação dos artigos 2º, 6º e 6º-A da EC nº 41/2003 e do Art. 3º da EC nº 47/2005.
[11] Quando se diz que não existe direito adquirido às regras de transição não se está a falar daqueles que implementaram as condições para seu usufruto, mas dos que estavam em vias de implementá-las.
[12] ADIn nº 3104/DF, cuja ementa foi transcrita no tópico anterior.
[13] A PEC 287-A traz a proposta de revogação dessas normas, de sorte que os servidores que estavam em vias de complementar os requisitos dispostos nas regras transitórias das Emendas 41/2003 (Arts. 2º, 6º e 6º-A) e 47/2005 (Art. 3º) simplesmente perdem o direito de ter seus benefícios concedidos sob tais normas. Ficam, portanto, desamparados da garantia que lhes foi concedida.
[14]Entende-se que as regras de transição adentram o patrimônio dos servidores enquanto direito subjetivo aos benefícios sob condição de implementação futura. Na nossa interpretação, os requisitos para a incidência das regras de transição não se confundem com os requisitos exigidos para a concessão dos benefícios nela previstos, haja vista que a sua instituição se dá sob garantia de amenizar o impacto da perda de direitos dos que estavam sob expectativa de satisfazê-los. Nesse sentido, o requisito para ter jus às regras de transição limitar-se-ia ao ingresso no serviço público nas datas aprazadas pelas regras, de modo que satisfeito este, estaria garantido o direito ao usufruto dos benefícios para o futuro. A conotação, portanto, seria de regras-garantia, que deveriam ter sido acobertadas não somente pelo manto do direito adquirido, como da proibição de retrocesso social. Mas, infelizmente, assim não foram colhidas pela Suprema Corte por ocasião das ondas de reforma de 2003 e 2005 e, certamente, não serão agora.
[15] Questão tratada no Acórdão TCU – Plenário 2.921/2010 Plenário
[16] Outro artigo cuidará desse tópico, em específico.
[17] Os proventos serão calculados da mesma forma no caso de aposentadoria por incapacidade permanente (inciso I do § 1º do Art. 40). Para a aposentadoria compulsória, os proventos observarão o disposto no inciso II do § 3º do Art. 40, com redação da PEC).
[18] Para composição da média será levado em conta, de acordo com a PEC 287-A, a totalidade das remunerações relativa ao período contributivo de julho/94 ou desde o início da contribuição, se posterior (Art. 21 da PEC 287-A), diversamente da previsão atual, que leva em conta a médica aritmética simples das maiores remunerações que serviram de base para as contribuições correspondente à 80% de todo o período contributivo a partir da competência julho/94 ou desde a competência do início da contribuição, se posterior (Art. 1º, da Lei nº 10.887/2004), o que em regra, confere uma limitação maior à apuração, puxando para baixo o valor da média, mormente porque os salários mais baixos são levados para o cômputo.
[19] Para receber proventos integrais (pela média), o servidor terá que possuir 49 anos de tempo de contribuição. O parâmetro (65/49) levou em conta a idade de trabalho formal – 16 anos - e a idade de 65 anos, então fixada como limite da longevidade para fim previdenciário pelos doutos da proposta de reforma (65 – 16 = 49).
[20] Para esses servidores foi garantida a aposentadoria com proventos equivalentes à remuneração da atividade (equivalência), bem como o reajuste em correspondência com o servidor da ativa (paridade), de modo que lhe foi facultado ingressar no RCP. Nesse caso, ao optar por um dos planos de benefício do RCP terá seus proventos limitados ao valor máximo dos benefícios previstos para o RGPS.
[21] Rev. TST, Brasília, vol. 75, no 3, jul/set 2009, pp. 116/149.
[22] Não se diga que a divisão das regras de transição por data de ingresso, prevista nas Emendas 41/2003 e 47/2005, equivale ao corte proclamado pela PEC 287-A, porque não é. Por lógico, os servidores que ingressaram antes de 16/12/98 possuem direitos diversos dos que ingressaram até 31/12/2003 e dos que ingressaram depois dessas datas. É o direito vinculado ao tempo de ingresso, situação totalmente diversa do corte por limite de idade agora proposto.
[23] A pretensão é levar todos para a previdência complementar, sem dúvida.