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Qual o tratamento penal para o stealthing no Brasil?

A tipificação penal do "stealthing" no Brasil deve ser considera crime de estupro ou ato libidinoso mediante fraude? Se houver transmissão ou tentativa de transmissão de DST, deve-se aplicar também qualificadoras?

Chama-se stealthing (dissimulação, em português) a conduta de alguém retirar preservativo durante a relação sexual sem o consentimento da(o) parceira(o). Entre os estudiosos estrangeiros, temos opiniões no sentido de que o fato poderia ser etiquetado como estupro, havendo uma condenação nesse sentido na Suíça. O fundamento para essa decisão foi a condicionalidade do consentimento, ou seja, a vítima que estava praticando a relação sexual só havia consentido com a condição de que o preservativo fosse utilizado. A retirada do preservativo durante o ato sexual sem que a outra pessoa percebesse caracterizou um vício de consentimento que tornou criminoso um ato sexual até então indiferente em termos criminais.

No Brasil, qual seria a resposta penal adequada?

As circunstâncias do fato devem indicar a tipificação correta:

1) O ato sexual é consentido, mas um dos parceiros o condiciona ao uso de preservativo. O agente, durante o ato, retira a proteção prometida. Percebendo a negativa séria e insistente da(o) parceira(o), ele continua na prática do ato de libidinagem, usando violência ou grave ameaça.

Tipifica-se, no caso, o crime do art. 213 do CP, hediondo, sofrendo todos os consectários da Lei 8.072/90.

2) O ato sexual é consentido, desde que mediante o uso de preservativo. O agente, durante o ato, sorrateiramente retira a proteção e continua até a sua finalização, assim agindo sem que a(o) parceira(o) perceba.

Nessa situação, não se cogita do crime do art. 213 do CP, pois ausentes os meios típicos de execução: violência física ou moral. Pode caracterizar-se o art. 215 do CP, no qual se pune o estelionato sexual, comportamento caracterizado quando o agente, sem emprego de qualquer espécie de violência, pratica com a vítima ato de libidinagem (conjunção carnal ou ato diverso de natureza libidinosa), usando de fraude. O crime não é hediondo, razão por que não sofre as consequências anunciadas na Lei 8.072/90.

Se o agente que pratica esse ato de dissimulação está acometido de doença sexualmente transmissível, e de fato a transmite à vítima, a tipificação penal também pode se modificar de acordo com as circunstâncias.

Tanto no caso do estupro quanto no da violação sexual mediante fraude, a transmissão que não envolva o vírus HIV atrai a causa de aumento de pena do art. 234-A, inciso IV, do Código Penal, segundo o qual a pena é majorada de um sexto até metade se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deve saber que está contaminado. Note-se que antes da Lei  nº 12.015/09 o agente respondia pelo crime sexual em concurso formal impróprio com o crime do art. 130 do CP. Agora o crime de perigo de contágio de moléstia venérea fica absorvido, servindo somente como majorante, evitando-se assim bis in idem.

Ressalvamos a hipótese envolvendo o vírus HIV porque na situação em que, durante o crime sexual, o agente o transmite não se aplica a majorante, pois o STJ tem o entendimento de que a transmissão desse vírus constitui lesão corporal de natureza gravíssima (HC 160.982/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 28/05/2012). [1]

Diante disso:

1) no crime de estupro, que é qualificado no caso de lesão corporal grave (o que abrange a gravíssima), há duas situações possíveis: a) se o agente transmite o vírus culposamente, há o crime sexual qualificado pela lesão grave; b) se transmite o vírus dolosamente, há o crime sexual simples em concurso formal impróprio com o crime de lesão corporal de natureza gravíssima, pois a qualificadora da lesão grave no estupro é preterdolosa.

2) na violação sexual mediante fraude, temos o seguinte: a) se o agente transmite o vírus culposamente, há concurso formal próprio entre o crime sexual e o crime de lesão corporal culposa, aplicando-se o sistema da exasperação ou o cúmulo material benéfico, conforme o caso; b) se transmite o vírus dolosamente, há concurso formal impróprio entre o crime sexual e a lesão corporal de natureza gravíssima.

Se, no entanto, o agente contaminado com a doença sexualmente transmissível retira o preservativo, a vítima percebe, mas, sem saber da condição de saúde do parceiro, não se opõe à continuação do ato sexual, há tão somente o crime do art. 130 do CP, que, aliás, também não se aplica para o portador do vírus HIV, pois a AIDS não é doença venérea, já que pode ser transmitida por diversas outras formas. Sendo assim, na situação em que a vítima consente na continuação do ato sem saber que parceiro é portador do vírus HIV, a conduta pode ser tipificada como lesão corporal de natureza gravíssima – consumada ou tentada, conforme tenha ou não havido a transmissão. Admite-se inclusive o dolo eventual na situação em que o agente, sabendo-se portador de HIV, mantém a relação sexual desprotegida sem querer diretamente transmitir a doença, mas assumindo o risco do resultado. Não se afasta – ao menos teoricamente – a possibilidade de transmissão involuntária da doença, o que provoca a subsunção da conduta ao crime de lesão corporal culposa.

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Destacamos, para finalizar, que não obstante tenhamos elencado diversas hipóteses de transmissão culposa de doenças sexualmente transmissíveis em decorrência do ato de stealthing, o fizemos em virtude da possibilidade teórica de que isso ocorra. Na prática, todavia, é difícil vislumbrar a situação em que o portador de uma doença sexualmente transmissível, sem sequer alertar o parceiro, retira o preservativo durante o ato sexual acreditando que pode evitar o contágio. O contágio involuntário é perfeitamente possível no estupro em que não ocorre o stealthing  porque a majorante incide só pela transmissão da doença. Se o estuprador, sabendo ou devendo saber estar contaminado com HIV, utiliza um preservativo que se rompe durante o ato forçado, provocando o contágio, a pena é majorada como seria se não houvesse sido utilizado o preservativo – o que pode variar, evidentemente, é o quantum do aumento. No caso do stealthing, todavia, o ato de retirar o preservativo – e portanto de submeter a vítima à possibilidade concreta do contágio – parte do próprio agente, que, convenhamos, põe-se numa situação da qual dificilmente se pode extrair a inobservância do dever de cuidado no lugar da assunção do risco de provocar o resultado.

Vale ainda observar que se a vítima for vulnerável, nos termos do artigo 217 – A e § 1º., CP, o crime será o de “Estupro de Vulnerável” no caso de emprego de violência ou grave ameaça, com as mesmas consequências previstas para o estupro comum (artigo 213, CP), havendo contágio de doença sexualmente transmissível dolosa ou culposamente. Porém, no “Estupro de Vulnerável”, mesmo que não haja violência ou grave ameaça, o simples ato sexual já configura o crime em sua modalidade não qualificada. Então, se o agente está mantendo conjunção carnal, por exemplo, com uma vítima vulnerável, com ou sem o preservativo, continuando com ele ou o retirando, com ou sem o conhecimento da vítima ou seu consentimento, responde pelo crime do artigo 217 –A, “caput”, CP. Nessa situação consentida, havendo contaminação por doença sexualmente transmissível também haverá o aumento de pena previsto no artigo 234 – A, IV, CP. Havendo transmissão do HIV, ocorrerá a qualificação do crime de estupro de vulnerável pela lesão de natureza grave (artigo 217 – A, § 3º., CP). Note-se que, em sendo a vítima vulnerável, não haverá, no caso de ato sexual consentido, a migração típica para o crime de menor gravidade, que é a violação sexual mediante fraude, prevista no artigo 215, CP. O Estupro de vulnerável também é crime hediondo, se submetendo aos rigores da Lei 8072/90.  


Nota

[1] Saliente-se, contudo, o entendimento divergente na doutrina por parte de Mirabete e Fabbrini, indicando a incidência nestes casos do crime de homicídio, tendo em vista o caráter letal da doença. Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 30ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 29. Observe-se que tal entendimento vai perdendo força, tendo em vista o progresso do tratamento médico da AIDS, com aumento considerável de sobrevida, aproximando-se de uma moléstia incurável, crônica, mas tratável e controlável. 

Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Rogério Sanches Cunha

Promotor de Justiça em São Paulo. Professor da Escola Superior do Ministerio Público de São Paulo, do Mato Grosso e de Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; CUNHA, Rogério Sanches. Qual o tratamento penal para o stealthing no Brasil?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5057, 6 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57522. Acesso em: 22 dez. 2024.

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