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Crimes de estupro.

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Agenda 30/05/2017 às 15:40

3. Culpabilização da Mulher Vítima dos Crimes de Estupro

3.1. Mulheres Vítimas dos Crimes de Estupro

Neste último tópico será tratado do cerne principal desta pesquisa, examinando a culpabilização da mulher vítima dos crimes de estupro.

No início deste trabalho mostrou-se, em síntese, a luta dos direitos das mulheres, em que se constata que houve um avanço considerável em sua situação social, mas a violência contra elas permanece com um elevado grau, principalmente nos crimes que se referem a violência sexual. Nesses casos sabe-se que a solução nos trâmites processuais está a depender das provas que forem produzidas ao longo do processo penal.

O crime de estupro ocorre com qualquer mulher e pode ser cometido por qualquer homem, sem se especificar idade, cor, etnia, raça, condição econômica ou nível cultural. Não existe um perfil específico de estuprador e muito menos de vítimas, podendo os agressores serem quaisquer pessoas, e até mesmo aqueles em que menos se espera, como marido, irmão, tio, colega de trabalho, patrão, amigo, etc., abrangendo todas as classes sociais, e sem nenhuma motivação especial para o feito.

Neste sentido, Lívya Ramos Sales Mendes de Barros & Alline Pedra Jorge-Birol ilustram em seu trabalho:

“Não procede, portanto, a ideia de que o estuprador seja necessariamente um homem ‘anormal’, dotado de taras e perversões incontroláveis, sujeito a cometer, em nome de sua perturbação patológica, toda a sorte de violências sexuais. Há uma certa tendência a se acreditar que quem comete crimes como este são pessoas que sofrem distúrbios mentais, depravação ou estão à margem da sociedade. E é quando estas características não são encontradas no delinquente que se procura na pessoa da vítima uma justificativa para o cometimento do ilícito. Existem vários critérios para se justificar a violência sexual. Avaliações comportamentais e toda a história de vida dos envolvidos no cenário do crime são reviradas, respingando até em familiares e amigos” (2014, online).

Assim, é preciso desmistificar essa ideia de que existe um agressor específico para os crimes sexuais, e que um homem honesto, trabalhador, com residência fixa seja incapaz de cometer tamanha barbárie. A sociedade nem sempre irá acreditar que a vítima não contribuiu em nada para o cometimento do crime. Por ser um crime bastante chocante, as pessoas pensam que é quase impossível que não haja uma explicação plausível para o fato, então busca-se justificá-lo de todas as formas possíveis.

Em 2013, uma jovem de 23 anos foi espancada e estuprada por seis homens em Nova Déli, capital da Índia. O caso gerou bastante repercussão ainda mais pelo fato de um guru indiano, chamado de Asharam, ter se pronunciado à época do fato dizendo que a culpa não foi somente dos agressores e que “esta tragédia não teria acontecido se ela tivesse evocado o nome de Deus e caído sobre os pés de seus agressores. O erro não foi cometido apenas de um lado” (2013, online), fato noticiado pelo jornal online G1.

Esse pensamento não é fruto somente da cultura oriental em que a mulher é considerada submissa ao homem e desvalorizada. Um padre italiano chamado Piero Corsi disse que são as mulheres que provocam os criminosos, causando assim revolta em toda Itália ao colar na porta da igreja manifesto contra as mulheres, o texto continha que “as mulheres, que provocam com suas roupas justas, que se afastam da vida virtuosa e da família, provocam os instintos e devem realizar um exame de consciência, se perguntando: é possível que o busquemos?” (2012, online), fato também noticiado pelo jornal online G1.

Em março deste 2014, houve uma pesquisa denominada “Tolerância social à violência contra as mulheres” realizada pelo Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA) que afirmava que 65% dos brasileiros concordavam que mulheres com o corpo à mostra mereciam ser atacadas, este fato gerou grande repercussão nacional, causando diversas manifestações a respeito. No entanto poucos dias depois o IPEA manifestou ter havido um erro na pesquisa e divulgou errata sobre o assunto, alegando que na verdade eram 26% dos brasileiros que concordavam com esta afirmação, dados obtidos no site oficial do instituto (2014, online).

Assim, o instituto defendeu (dados informados por Rafael Guerreiro Osorio e Natália Fontoura, pesquisadores da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc/Ipea) e autores do estudo no site oficial do Instituto) que todas as conclusões de forma geral que foram feitas no estudo, permaneciam de forma válida, afirmando que:

“Os demais resultados se mantêm, como a concordância de 58,5% dos entrevistados com a ideia de que se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros. As conclusões gerais da pesquisa continuam válidas, ensejando o aprofundamento das reflexões e debates da sociedade sobre seus preconceitos” (2014, online).

Mesmo com a errata do Instituto, percebe-se que ainda é um número bastante expressivo, 26% de brasileiros entrevistados padecerem deste pensamento patriarcal e machista.

Desta maneira o Brasil ainda tem muito que avançar no tocante ao combate à violência contra a mulher. Assim afirma um texto publicado por Nadine Gasman, no ano de 2014, que é representante do Escritório da ONU Mulheres no Brasil, no site da Organização das Nações Unidas (ONU) que aduz que mesmo com a retificação da pesquisa realizada pelo IPEA o Brasil ainda é um país machista e que o olhar de igualdade no que condiz ao respeito, liberdade, diversidade, vieram dos jovens e pessoas com maiores níveis de escolaridade, e assim alega que:

“Neste sentido, ressalto a importância de o Brasil investir fortemente na ampliação e na qualidade da educação de crianças, jovens e adultos, e de incluir as temáticas de gênero em todos os currículos escolares. [...] Mulheres são pessoas livres e iguais em dignidade e em direitos, donas de seus corpos e de suas expressões e merecem respeito em toda e qualquer condição. Ao ser signatário de acordos internacionais como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDA W), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e a Plataforma de Ação de Pequim, o Brasil tem como compromisso trabalhar para que a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres se manifeste em números e na prática” (2014, online).

A ONU, em seu site oficial, afirma que a violência contra a mulher é considerada uma das maiores adversidades dos tempos atuais.

Afirma-se, também ,que os Estados estão obrigados pelo direito internacional dos direitos humanos a se certificarem que o sistema jurídico penal em cada uma de suas etapas esteja livre de preconceitos de gênero ou de qualquer outra espécie (2014, online).

Sendo assim, é necessário averiguar com bastante atenção a insinuação de que as mulheres têm maior capacidade a mentir e que seus depoimentos devem ser observados com maior cautela por este motivo, devendo isto ser eliminado de todas as etapas dos processos judiciais, assim como os julgamentos de que as mulheres provocam a violência sexual por estar fora de casa à noite ou por se vestir de maneira específica e própria (2014, online).

Neste contexto, é cabível citar uma situação expressiva concernente aos crimes de estupro que aconteceu em meados do ano de 2014. O caso ocorreu em um bar em Belo Horizonte- MG em que um grupo de estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cantavam músicas sexistas, fazendo apologia ao estupro.

Desse modo é importante salientar que esses jovens faziam um julgamento depreciativo das mulheres, atestando o patriarcalismo e machismo presente em todas as classes sociais e níveis culturais.

O fato foi presenciado por duas mulheres estudantes da UFMG, que ao se depararem com tal situação preferiram se retirar do local, e logo após uma delas fez um desabafo em uma rede social (divulgado pelo jornal online o tempo), que causou bastante revolta na internet, neste relato ela afirmava:

“Hoje o [nome do estabelecimento onde o fato ocorreu] foi dominado por uma turma de idiotas, componentes da Bateria da Engenharia da UFMG (que vergonha!), que em coro cantavam: “Não é estupro, é sexo surpresa”, dentre outras imbecilidades machistas, misóginas e homofóbicas. Mais triste ainda foi ver mulheres envolvidas na cantoria. E mais triste ainda perceber que ninguém mais se sentiu incomodado. É preciso mesmo repensar o papel da universidade, sobretudo as instituições públicas. Acho um absurdo SEM FIM uma UFMG da vida ser conivente com esse tipo de comportamento, que ocorre não somente dentro da universidade, mas muitas vezes EM NOME da universidade. Mais absurdo ainda quando a universidade indiretamente (mas não sem consciência) contribui para que esses episódios aconteçam quando, por exemplo, emprestam sua estrutura física para o “ensaio”. Triste, lamentável. Confesso que não soube como agir (e talvez nenhuma reação valeria a pena diante de um bando de playboys bêbados). Mas fica no coração a esperança de que a luta jamais termine e que o futuro seja um lugar melhor” (2014, online).

Esse caso teve bastante repercussão não somente nas redes sociais, mas em toda a mídia. E em nota (divulgada pelo mesmo jornal online anteriormente citado) a assessoria de impressa da UFMG se pronunciou a respeito, informando que “desaprova qualquer tipo de comportamento discriminatória, seja ele de caráter machista, sexista, racista, homofóbico, entre outros, que desrespeitam a dignidade da pessoa humana” (2014, online).

3.2. Valor da Palavra da Vítima

Já foi dito em outros momentos deste trabalho que o crime de estupro é um crime de difícil comprovação, por ser ocasionalmente cometido em lugares clandestinos e escondidos, sem testemunha que os comprove, e por muitas vezes ocorrer a denunciação do fato depois de um longo decurso de tempo, o exame de corpo de delito não se faz mais necessário.

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À respeito disto, podemos citar o caso que ocorreu no primeiro semestre de 2016, em que houve um estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro/RJ, que causou enorme comoção no país, e diversas manifestações a respeito do caso, haja vista os criminosos terem divulgado um vídeo do crime cometido, com a jovem nua, desacordada e sendo tocada. A palavra da vítima neste caso foi bastante questionada, em razão de comportamentos exteriores ao fato e pelo fato da demora no exame de corpo de delito, que em virtude disto não foi encontrado evidências da ocorrência do crime.

A notícia foi também divulgada pelo site El País - Brasil, onde em um trecho da publicação aduz o afastamento do delegado do caso, que foi acusado pela advogada da vítima de agir de forma machista e de ter constrangido a vítima durante seu depoimento. “No último domingo, o delegado Alessandro Thiers foi afastado do comando das investigações. Isso ocorreu depois que a então advogada da vítima, Eloísa Samy, pediu seu afastamento. A advogada acusou o delegado de agir de forma machista e de ter constrangido a vítima durante seu depoimento. Samy deixou a defesa do caso no mesmo dia, a pedido da família da garota, depois que a vítima passou à proteção da Secretaria de Direitos Humanos do Rio.  Em entrevista ao Fantástico, a vítima reclamou do tratamento recebido na delegacia quando foi prestar depoimento. ‘O próprio delegado me culpou. Quando eu fui na delegacia, eu não me senti à vontade em nenhum momento. E eu acho que é por isso que muitas mulheres não fazem denúncia’, afirmou”. (2016, online)

Assim sendo, a palavra da vítima, quando convincente e segura, fica sendo o principal meio de convencimento para a configuração do fato delituoso, sendo então desnecessário o exame de corpo de delito. Neste sentido segue o entendimento de alguns tribunais pátrios apud Guilherme de Souza Nucci:

“TJDF: “Irrelevante o resultado negativo do laudo de exame de corpo de delito. A materialidade do crime de atentado violento ao pudor [hoje, estupro] prescinde da realização do exame de corpo de delito, porque nem sempre deixa vestígios detectáveis, sendo que a palavra da vítima, corroborada por prova testemunhal idônea, tem relevante valor probante e autoriza a condenação quando em sintonia com outros elementos de provas” (Ap. 200003.1.011076-7, 1.ª T., rel. Mario Machado, 19.07.2006, v.u.).

TJSP: “O Tribunal de Justiça já decidiu ser inadmissível afirmar que o delito definido pelo art. 214 [atual 213] do Código Penal de 1940 possa ser incluído no elenco daqueles que necessariamente deixam vestígios” (Ap. 477.773-3/2, Mauá, 1.ª C., rel. Mário Devienne Ferraz 21.03.2005, v.u., JUBI 108/05)” (2013, p. 975).

Durante a análise da palavra da vítima de forma isolada deve-se ter uma cautela redobrada, haja vista ter de haver uma certeza para uma futura condenação, assim afirma Guilherme de Souza Nucci:

“Existe a possibilidade de condenação, mas devem ser considerados todos os aspectos que constituem a personalidade do ofendido, seus hábitos, seu relacionamento anterior com o agente, entre outros fatores. Cremos ser fundamental, ainda, confrontar as declarações prestadas pela parte ofendida com as demais provas existentes nos autos. A aceitação isolada da palavra da vítima pode ser tão perigosa, em função da certeza exigida para a condenação, quanto uma confissão do réu. Por isso, a cautela se impõe redobrada” (2013, p. 975).

Assim, Nucci continua a citar algumas decisões dos Tribunais brasileiros que levam em consideração a palavra da vítima (quando esta ensejar confiabilidade) para fins de condenação, absolvição, ou diminuição da pena dos acusados, confrontando as declarações prestadas pelas partes envolvidas, inclusive oitiva de testemunhas quando houver, ou sob outros aspectos o valor significativo da palavra da vítima nos crimes de estupro.

“Confira-se decisão do Superior Tribunal de Justiça, mantendo a absolvição de acusado de estupro imposta por tribunal estadual: “A palavra da ofendida, no caso em exame, não é suficiente para gerar credibilidade. Não há certeza de ser ela moça recatada. Foi ouvida uma testemunha que disse ter estado com a vítima antes, em sua casa, quando ‘a ofendida despiu-se completamente para ele; isso ocorreu após terem retornado de um baile na localidade (...); dormiram na mesma casa’; só não mantiveram relações sexuais porque a testemunha estava embriagada. Enfim, por falta de credibilidade quanto ao comportamento da ofendida, manteve-se a absolvição do pretenso estuprador” (REsp 168.369-RS, 5.ª T., rel. José Arnaldo da Fonseca, 06.04.1999, v.u., RT 767/547). Sob outro prisma: STJ: “Nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, delitos geralmente cometidos na clandestinidade, a palavra da vítima tem significativo valor probante. Incidência da 83/STJ” (EDcl no AgRg no AREsp 151680-TO, 5.ª T., rel. Marco Aurélio Belizze, 23.10.2012, v.u.). “A palavra da vítima, em crimes de conotação sexual, constitui relevante elemento probatório, mormente quando se mostra coerente com o restante da prova produzida e, em razão da pouca idade da ofendida, está respaldada por avaliações e laudos psicológicos, médicos e psiquiátricos. Precedentes do STJ” (HC 63.658-RS 5.ª T. Rel. Napoleão Nunes Maia Filho, 07.08.2007, v.u.)” (2013, p. 975).

E assim, o referido autor continua:

“TJAC: “É cediço que nos crimes contra os costumes a palavra da vítima, desde que firme o coerente, assume preponderante importância, mas em harmonia com o conjunto probatório existente nos autos, o que não ocorre neste caso” (Ap. 2005.000583-0, C. Criminal, rel. Feliciano Vasconcelos, 19.01.2006, v.u.); TJCE: “Desde que sem seguro conforto no contexto probatório, a palavra isolada da ofendida, em si, não pode levar a juízo de condenação. A culpabilidade não se presume ou pode ser extraída de subjetivismos, exigindo para a sua definição prova limpa e segura do cometimento e da autoria delituosos. Na dúvida, absolve-se” (Ap. 2000.0151.5148-5/1, 1.ª C., rel. Luiz Gerardo de Pontes Brígido, 13.12.2005, v.u.); TJDF, Ap. 2002.01.1.048823-8, 1.ª T., rel. Aparecida Fernandes, 08.06.2006, v.u.” (2013, p. 976).

Pôde-se verificar com a citação destes entendimentos jurisprudenciais que, ao apreciar a palavra da vítima, verifica-se a credibilidade e confiabilidade da mesma. Nestes casos a materialidade do crime é uma das principais formas de comprovar o delito, e quando inexiste essa materialidade, o único meio de prova fica sendo a palavra da vítima.

Dessa forma, o juiz, sendo receoso de cometer alguma injustiça contra o réu, submete a vítima a uma avaliação, não somente do fato em questão, mas também da sua vida pregressa, histórico de vida, vida econômica, se existe passagens por clínicas psiquiátricas, enfim, questões que possam dar confiabilidade a palavra dos envolvidos no caso, assim cabe ao magistrado decidir o grau de autenticidade contido nas palavras da vítima e do réu. Silvia Pimentel em sua obra afirma que “o estupro é o único crime em que a vítima tem que provar que não é culpada” (2014, apud Lívya Ramos Sales Mendes de Barros & Alline Pedra Jorge-Birol, ob. cit. online).

São essas as situações que a vítima se submete para conseguir provar a veracidade dos fatos, baseado somente em sua fidedignidade. Assim Lívya Ramos Sales Mendes de Barros & Alline Pedra Jorge-Birol exemplificam que:

“Além do quesito credibilidade/confiança que a mulher deve atender, para que seja comprovado efetivamente que ela foi vítima de estupro, a vítima ainda é submetida a rigorosos “testes de resistência”, tais como longas audiências, confrontações com o agressor, longas esperas nos corredores de delegacia e fórum, etc. Todos estes testes ou situações de resistência, são criados inconscientemente no intuito de verificar se a vítima poderá levar seu caso adiante, e caso positivo, isto talvez signifique que ela fala a verdade, porque resistiu. De fato, o martírio ao qual a vítima é submetida produz desmotivação a dar continuidade ao processo, devido o constrangimento ao qual ela se vê obrigada a se submeter, e vivenciar, reiteradamente” (2014, online).

Nota-se que os confrontos enfrentados pelas mulheres para poder tentar punir os seus agressores vão muito além dos transtornos sofridos em virtude da ocorrência do fato criminoso.

3.2.1. Caso do ex-médico Roger Abdelmassih -  valor da palavra das vítimas em face ao renome do acusado

Diante do contexto não se pode deixar de citar o famoso caso do ex-médico brasileiro Roger Abdelmassih, um dos pioneiros da fertilização in vitro no Brasil, que foi condenado a 278 anos de prisão por 48 crimes sexuais cometidos contra 37 de suas pacientes.

Este fato teve bastante destaque na mídia, em virtude do acusado ser um profissional de grande notoriedade social, especialmente por atender celebridades, sendo considerado bastante célebre em seu ramo.

Nem todas as mulheres que o procuravam para a realização do tratamento eram abastadas, sendo que algumas vendiam até seus bens para conseguir o valor do tratamento, que era dispendioso. Assim afirma uma de suas ex-pacientes em entrevista concedida ao Jornal online Folha de São Paulo (matéria feita por Natália Cancian), em respostas a questionamentos feitos pela esposa do ex-médico Larissa Sacco Abdelmassih:

“Em entrevista à Folha, Larissa questiona por que as pacientes voltaram à clínica após os abusos.

Eu vou responder por todas, embora não tenha esse direito. Muitas venderam tudo o que tinham, porque é um estigma dizer que só as que iam à clínica eram ricas. Não. Uma delas vendeu até o apartamento. As que estavam desacordadas não tinham certeza, e outras que descobriram, pararam. E outras que foi um beijo, cantada, voltaram à clínica, mas não com ele, com outros médicos. Elas não quiseram ser mais atendidas por ele (grifo nosso)” (2014, online).

Assim mostra-se que o valor da palavra dessas vítimas foi colocado a prova em todos os momentos, depois da denunciação do fato.

Na sentença que condenou o ex-médico observa-se que um dos quesitos da tese de defesa assevera que é incomum a demora das vítimas na denunciação dos abusos cometidos por Roger, afirmando que as vítimas destes crimes, quando são relações entre adultos, geralmente denunciam logo após o crime mesmo estando presente a síndrome de stress pós-traumático indicando sintomas contrários ao verificado, como pode-se perceber: 

“A vítima de crime sexual, não raro, é tomada de sintomas de síndrome de stress pós-traumático. Não é comum que a vítima venha tornar pública a agressão somente anos após a ocorrência da agressão sexual. Isso é mais frequente e reconhecido em casos de pedofilia, não em relação entre adultos. Apesar de poder ser presente até síndrome pós-traumática, normalmente, a vítima expressa sua insatisfação logo após a agressão, alentando sintomas contrários ao verificado” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 2010, p. 59-60).

Em contraposição a esta afirmativa, a juíza responsável pela sentença do acusado, Kenarik Boujikian Felippe elucida que:

“O que posso afirmar da experiência de juíza de vara criminal, levando em conta apenas o que é processado, é que o percentual maior das vítimas de crime sexual é mulher e quando se trata de pessoa do sexo masculino, é criança ou adolescente. Nesta última categoria, o mais comum é que o agressor seja pessoa de seu vínculo familiar ou de relacionamento social e os fatos vem à tona, majoritariamente, porque chegam informações através do contato social, especialmente escolar e relações comunitárias, de vizinhança, posto que, de alguma forma perceberam ou souberam do fato. Raras vezes vem espontaneamente, por informação da criança, e no mais das vezes, verifica-se que ela foi submetida repetidas vezes ao crime e ao agressor. No caso das mulheres, adultas, os agressores são, em sua maioria, pessoas desconhecidas e os fatos são noticiados logo após a sua ocorrência. Deste modo, a experiência indica que quando as mulheres adultas, informam a ocorrência do crime sexual, tendem a fazer logo após o crime. Também é lógico e correto afirmar que este fato não permite concluir que os crimes não sejam praticados por pessoas de seu contato pessoal, familiar ou social, particularmente, porque os estudiosos do tema da violência contra a mulher constataram que grande parte das vítimas não informa a ocorrência de tais delitos para a polícia. Não é possível desconsiderar a chamada cifra negra” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2010, p. 60-61).

As vítimas receavam que as autoridades não acreditassem em suas palavras, por ser seu agressor um homem que aparentemente portava de uma reputação ilibada, rico, influente e famoso, e também por acreditarem serem as únicas vítimas do agressor, se tratando de um caso isolado, porém os relatos das outras vítimas foram encorajando umas às outras.

Assim verifica-se nas palavras das vítimas as razões para noticiar o fato contido na sentença:

“Item 1

Ao ver o relato das pessoas, constatou que não tinha acontecido apenas consigo. Demorou a procurar a Justiça, pois achou que não era nada frente à uma pessoa de renome e ficou muito abalada. Procurou o promotor da sua cidade, narrando os fatos sem identificar-se como ofendida e ele disse que “seria uma coisa muito difícil em termos de prova, porque se tratava de uma pessoa famosa, de renome e ia aparecer que eu queria extorquir. Eu fiquei, realmente, muito chateada. Inclusive, ele era meu professor e, por conta disso, na época, resolvi não ir atrás”.

Os relatos das outras mulheres a encorajaram, pois pensava que era um caso isolado e assim seu relato teria maior credibilidade. Seu ex-marido viu as reportagens com os depoimentos, e lhe telefonou: “depois de tudo aquilo que sofreu na época, acho que é o momento de você fazer a queixa-crime”. [...]

Item 5

Sentia-se pequena e não sabia das outras mulheres (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2010, p. 62-63)”.

Outro relato que chama bastante atenção é o de uma vítima que é operadora do direito, ocupando o cargo de Promotora de Justiça:

“Item 22

‘Porque eu sou promotora de justiça, eu tenho um nome a zelar, eu aqui não sou ninguém, como na época não seria ninguém, e seria o meu nome, eu, contra um médico ...ovacionado por todos, e iria repercutir muito mal para mim, para a minha profissão, para a minha instituição, então fiquei calada durante esses treze anos’. Encorajada porque não esta sozinha” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2010, p. 67).

E neste mesmo sentido segue todos os outros relatos das inúmeras vítimas do ex-médico Roger Abdelmassih, todas com histórias parecidas, e com o medo compartilhado entre elas. As histórias dessas mulheres demoraram vir à tona, mas estas agora lutam para que a justiça seja feita.

Em uma reportagem divulgada no programa dominical Fantástico, exibido na rede Globo, e disponível no site G1.com, revela conversas telefônicas do ex-médico e neles ele se referia com desprezo às vítimas:

“Na conversa entre Ruy Marco Antonio e Roger Abdelmassih, o ex-médico comenta as acusações de estupro. Os dois ofendem as vítimas de abuso.

Roger Abdelmassih: Essa história toda que aconteceu aí foi um absurdo.

Ruy Marco Antonio: Isso é plantado por aquelas filhas da puta daquele grupo.

Roger Abdelmassih: Elas são doentes mentais. É louca mesmo.

[...]

Em uma das ligações, Roger Abdelmassih admite que teve relações sexuais com paciente. Fala que era procurado por elas. ‘Passava mulher para trás constantemente. Provavelmente achava que estava tudo disponível. A mulher jogava o milho e eu ia comer, e aí eu levei o ferro. Você sabe que mulher é um bicho desgraçado mesmo’” (2014, online).

Posto isto verifica-se que as dificuldades enfrentadas pelas vítimas do ex-médico foram inúmeras, além do sofrimento do ato criminoso também sofreram a chamada vitimização secundária (vide item 2.4.) por parte da sociedade e das pessoas ligadas ao acusado que colocavam a credibilidade de suas palavras em dúvida.

Em dezembro de 2010, Abdelmassih foi beneficiado pelo Ministro Gilmar Mendes com o Habeas Corpus nº. 102.098, e logo depois fugiu do país. Em virtude disto a ex-paciente e vítima do ex-médico Vanuza Leite Lopes, líder da Associação de Vítimas de Roger Abdelmassih, elaborou uma Moção de Repúdio contra o Ministro Gilmar Mendes, escrito em 17 de setembro de 2014, que ela fez com o intuito de que seja feito desagravo público por parte do então ministro que prolatou a decisão do Habeas Corpus citado.

Nesta Moção de Repúdio Vanuzia elucida os fatos ocorridos contra ela e os infaustos sofridos:

“É visível por intermédio dos fatos e fotos o que este infortúnio causou a uma pessoa feliz, bem casada, realizada profissionalmente, poetisa, romântica, autora de livros poéticos, lúdicos infantis, estilista e empresária. [...]

No entanto, de personalidade diversa é seu algoz, Roger Abdelmassih que tinha por hábito estuprar mulheres covardemente, as anestesiava naquela "clínica". Esse era um dos modus operandi desse violentador que assim pegava desarmada suas vítimas, uma vez que todas estavam em tratamento para construir uma família, e no momento mágico, onde ele dizia que após sedação seriam divinamente abençoadas com um ser em seus ventres, abusava-as.

A requerente adormecida após fazer oração e tomar a medicação, viu-se acordada e ainda debilitada sentiu a presença ordinária desse elemento perverso violentando-a, e sentiu que o ânus sangrava. Por consequência do estupro e atentado violento ao pudor e da lesão corporal gravíssima, ficou estéril e detalhes técnicos médicos da bactéria adquirida após o coito anal e vaginal, encontra-se no documento anexado do processo CRM e B.O. datados 1993 e 1994” (LEITE, 2014, online).

As vítimas do caso em questão foram julgadas no Habeas Corpus por serem incautas e seus depoimentos não tiveram o correto valor, o que ocasionou a concessão do Habeas Corpus. Assim, continua Vanuzia em sua moção de repúdio:

“O estuprador Roger Abdelmassih é poderoso financeiramente e tem relações com pessoas importantes de várias camadas do poder público e com artistas e empresários tem vínculos, pois alguns conseguiram sucesso de maternidade em sua clínica, fato que ele "usa como objeto de proteção” Haja vista nas interceptações telefônicas feitas recentemente a comprovação de alguns nomes de pessoas influentes até mesmo na política. Porém, ele pode ter muito dinheiro, mas na diferença da igualdade da palavra "valores" acreditando nos valores judiciários que pesam mais, pois estes tratam de valores éticos e da razão” (LEITE, 2014, online).

Neste caso, observa-se que fatos exteriores ao caso concreto podem influenciar em julgamentos à respeito dos crimes de estupro, tendo que a palavra da vítima ser averiguada e depois de atestada sua confiabilidade e confrontada com as versões dos envolvidos deve ser utilizada como meio de prova suficiente para punir o acusado.         

3.3. Síndrome da Mulher de Potifar

De fato, a mulher na maioria dos casos de crimes de estupro figura no pólo passivo da demanda, sem nenhum motivo aparente, simplesmente pelo fato de ser mulher. Porém o juiz ao analisar o caso concreto terá que ter a sensibilidade necessária para apurar a veracidade dos fatos, pois em muitas situações a suposta vítima é que deveria estar figurando no pólo ativo do crime, sendo considerada uma falsa vítima quando o delito é simulado.

Há estes casos dá-se o nome de síndrome da mulher de Potifar, denominação esta importada dos ensinamentos bíblicos do livro Gênesis, principalmente do capítulo 39.

“A história narra a vida de José um homem bom e temente a Deus, que por inveja e ciúmes por parte de seus irmãos, foi vendido aos ismaelitas que o venderam a um egípcio chamado Potifar. José por todas as suas qualidades logo ganhou a confiança de Potifar, tornando-se administrador de sua casa, no entanto José causava forte atração na mulher de Potifar que desejava ter com ele relações sexuais, mas foi rejeitada. A mulher então acusou José de tentar manter relações sexuais com ela a força, o que fez com que o seu dono em momento da raiva o mandasse para a cadeia onde ficavam os presos do rei” (2002, p. 54-55).

Este fato, apesar de ser bíblico, pode ocorrer em alguns casos.

Em virtude dessa síndrome a veracidade da palavra da vítima deve ser atestada no que tange a situação descrita, para ser apurado a confiabilidade das palavras dos envolvidos no suposto crime.

Sendo assim o julgador terá que ter uma sensibilidade para poder apurar os fatos relatados pela suposta vítima e agressor, tendo que achar brechas e discordâncias em suas palavras para se chegar a real verdade dos fatos.

A título de exemplificação convém citar os casos narrados por George P. Fletcher apud Rogério Greco que aconteceu no Estados Unidos da América:

“Em reforço ao que foi dito, vale relembrar dois casos importantes, nos quais foram protagonistas William Kennedy Smith e Mike Tyson, narrados por George P. Fletcher, cuja transcrição integral se faz necessária para sua melhor compreensão: “Ao final do mês de março de 1991, William Kennedy Smith, de 31 anos de idade, um estudante de medicina, começou a dançar com Patrícia Browman, de idade similar, em um bar de Palm Beach. Logo ela se foi com ele à propriedade dos Kennedy e, segundo William, durante o caminho, foi retirando sua meia-calça, deixou sua roupa no interior do carro, e se foi com ele para dar um passeio pela praia. Ademais, segundo sua versão, ela participou ativamente do coito, duas vezes, no gramado da propriedade. Mas ela o acusou de estupro, alegando que o que realmente sucedeu foi que ele a abordou e a forçou sexualmente” (2014, p. 55).

Assim o autor continua narrando outro caso:

“Mike Tyson conheceu Desiree Washington uns poucos meses depois, em 18 de julho, durante um concurso de beleza Miss América negra, em Indianápolis. Tyson flertou com várias concursantes e obteve o número do telefone do quarto de hotel de Washington. À uma e meia da madrugada seguinte, Tyson chamou a Washington de sua limusine. Mesmo já estando preparada para dormir, aceitou encontra-se com ele, passando quinze minutos arrumando-se, e logo se reuniu com ele no assento traseiro da limusine. Chegaram ao hotel de Tyson e caminharam juntos até o seu quarto. Entraram no quarto, ela o acompanhou até o dormitório e se sentou na borda da cama. Não está muito claro se se beijaram na limusine, mas em geral, até esse ponto da história, Washington e Tyson coincidem no que sucedeu.

Desde o momento em que ela se sentou na cama, as histórias se distanciam, a dela sugerindo um coito forçado e a dele, a de sexo consentido. Sem embargo, os dois coincidiram em ao menos quatro aspectos do encontro sexual. Tyson realizou sexo oral antes de penetrá-la. Em um dado momento, lhe perguntou se queria estar por cima, e ela montou sobre ele. Ele não usou preservativo, o que a assustou pela possibilidade de gravidez; ele ejaculou externamente. [...]

Em nenhum desses casos havia muita evidência corroborando a história do homem ou o relato da mulher.

O resultado foi distinto em cada caso. Um corpo de jurado composto de seis membros, de idade média, da conservadora Flórida, absolveu a William Kennedy Smith, o jovem estudante de medicina, depois de 77 minutos de deliberação. Um corpo de jurados racialmente diverso de Indiana também alcançou o consenso com rapidez. Em 10 horas concluíram que Tyson era culpado das imputações de que era acusado, de todas elas” (2014, p. 55).

Como pode ser observado acerca dos exemplos citados acima, os casos foram analisados a partir do cometimento do suposto crime, e verificado as discordâncias nas palavras dos envolvidos e todas as circunstâncias envolvendo o fato delituoso, inclusive a palavra da vítima teve seu valor apurado, atestando, no entanto, sua confiabilidade, de forma que se chegou a uma solução justa confiados nos elementos probantes dos casos.

3.3.1. Análise do comportamento da vítima como circunstância judicial do art. 59 do Código Penal para fins de dosimetria da pena do acusado

Por fim, é cabível ressaltar o comportamento da vítima previsto no art. 59 do Código Penal que dispõe acerca das chamadas circunstâncias judiciais, que trazem ao julgador elementos necessários para a fixação da “pena base” dentro dos limites da sanção fixados de forma abstrata na lei penal, o que também ocasiona o culpabilização/julgamento da vítima nos crimes sexuais. E está assim transcrito no atual Código Penal:

“Fixação da pena

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: 

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível” (2016, online).

O comportamento da vítima neste caso está estritamente ligado ao ramo da vitimologia, como fator referente a contribuição da vítima para a ocorrência do delito.

Para Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini alguns comportamentos das vítimas induzem ao agente para o cometimento do crime, porém “tais comportamentos da vítima, embora não justifiquem o crime, diminuem a censurabilidade da conduta do autor do ilícito, implicando abrandamento da pena” (2013, p. 288). E continuar ao dizer que “em casos especiais a lei prevê, aliás, como circunstância atenuante genérica ou causa de privilégio a ‘injusta provocação da vítima’ (arts. 65, III, c, última parte; 121, § 1º, 2ª parte; 129, § 4º, última parte etc.)” (2013, p. 288).

Esta análise do comportamento da vítima é cabível como elemento de prova no momento da consumação do crime, tendo que ser verificado os tipos de vítimas e quais as formas de contribuição para o delito.

A análise do comportamento da mulher vítima dos crimes de estupro deve ser observado com maior cautela, haja vista que o comportamento da mulher na sociedade não deve ser levado em consideração para fins de julgamento de crimes dessa natureza, é o que foi dito ao longo desta pesquisa.

Sobre a autora
Camilla Stefani Saboia dos Santos

Advogada militante nas áreas cíveis, trabalhista, tributário e empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Camilla Stefani Saboia. Crimes de estupro.: Culpabilização da mulher vítima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5081, 30 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57810. Acesso em: 5 nov. 2024.

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