10 A VULNERABILIDADE PENAL EM RAZÃO DE ENFERMIDADE OU DEFICIÊNCIA MENTAL
O conceito de vulnerabilidade já foi estudado mais detalhadamente em momento anterior neste trabalho e, como já mencionado, é analisado sobre as mais variadas vertentes e, principalmente, estará sujeito a variações de sentido conforme a temática da abordagem.
Nesse ínterim, insta salientar a sua interpelação relacionada, especificamente, ao estupro de vulnerável.
Prevê o § 1º do art. 217-A do Código Penal que pode ser vítima aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato sexual.
Enfermidade, segundo José Jairo Gomes,
É sinônimo de doença, moléstia, afecção ou outra causa que comprometa o normal funcionamento de um órgão, levando a qualquer estado mórbido [...]. Pode ser provocada por diversos fatores, tais como: carências nutricionais, traumas decorrentes de impactos físico ou emocional, ingestão de tóxicos (drogas e álcool, infecciosos (por ação de vírus, bacilos, bactérias), degenerativos (inerente ao próprio organismo, como a arteriosclerose, tumores e cânceres em geral)[93].
O professor Greco[94] arremata que a enfermidade mental é toda doença ou moléstia capaz de comprometer o funcionamento do aparelho mental, a exemplo de neuroses, psicopatias e demências mentais.
Já a deficiência[95] significa insuficiência, imperfeição, fraqueza, debilidade. E, como consequência, deficiência mental é o atraso no desenvolvimento psíquico, associado a dificuldades no aprendizado e na adaptação social.
Percebe-se que não é a mera condição de enfermo ou deficiente mental que atrai a incidência da norma protetora, devendo a vítima, em razão dessa circunstância, não possuir o discernimento para o ato sexual.
Nesse sentido, Capez assevera que
Deve-se provar, no caso concreto, que, em virtude de tais condições, ela não tem o necessário discernimento para a prática do ato. Cumpre, portanto, que sejam comprovadas mediante laudo pericial, sob pena de não restar atestada a materialidade do crime [...][96].
Não mais subsiste a exigência (contida no extinto art. 224, b) de que o agente conheça tal circunstância (hipótese em que só restaria possível o crime a título de dolo direto, o que afastaria, por si só, a punição a título de dolo eventual). Hoje, essa circunstância deve ser aferida pelo juiz na análise do caso concreto, ocasião em que ele verificará se o agente conhecia realmente a condição de vulnerabilidade da vítima (dolo direto) ou se ele, diante da fundada dúvida, pouco se importou e assumiu o risco de praticar ato sexual contra alguém que não tinha capacidade para consentir validamente acerca do ato sexual (dolo eventual).
O professor Bitencourt, em obra anterior ao Estatuto da Pessoa com Deficiência, faz duras críticas ao tratamento conferido ao legislador para a pessoa com deficiência ou enfermidade mental, para quem
Foram tratados pelo legislador contemporâneo como objetos e não como sujeitos de direitos, ignorando que também têm sentimentos, aspirações, desejos, vontades e direitos, inclusive fundamentais, e que, também por isso, merecem, no mínimo, tratamento igualitário, isto é, similar aos indivíduos ditos ‘normais’ [...][97]
Ainda sobre o seu juízo crítico, ele analisa que
Tratando-as indignamente, ao ignorar seus direitos à sexualidade, e, especialmente, ao seu livre exercício, que também é assegurado constitucionalmente; desconheceu que elas, como seres humanos, são portadoras de aspirações e sentimentos próprios de seres dessa natureza, que buscam, dentro de suas limitações, levar uma vida dentro da normalidade [...] aliás, os próprios animais ditos irracionais também sentem necessidades sexuais e, a seu modo, buscam satisfazê-las[98].
O que se constata é que, ao longo da história, o legislador, aparentemente, acabou por preterir a necessidade sexual das pessoas com deficiência, seja para se subtrair ao debate temático, seja porque simplesmente fechou os olhos para essa realidade latente e não deu a devida importância ao tratamento da questão.
Dado o grau contundente e necessário da crítica, necessária vênia para citar o autor novamente, na medida em que ele retoricamente indaga:
Nesse quadro, proibindo e criminalizando pesadamente qualquer contato carnal do cidadão com pessoas portadoras de enfermidade ou deficiência mental, estarão elas, por via indireta, proibidas ou impedidas de exercer, livremente, o direito fundamental à sexualidade? Estariam condenadas ao onanismo? Restar-lhes-ia tão somente a satisfação via masturbação?[99]
Acrescente-se que, diante da ausência de abordagem legislativa correlata com a questão das pessoas com deficiência, a omissão estatal acabou colocando-os à margem da sociedade, vez como foram rechaçados os leprosos em outrora.
Por fim, o professor Bitencourt[100] arremata que “ainda que, in concreto, se comprove que a vítima realmente não tem ‘o necessário discernimento para a prática do ato’, não pode ser ignorado o direito à sexualidade dos portadores de enfermidade ou deficiência mental”, além de cobrar das autoridades um tratamento “sem preconceitos para todas as pessoas portadoras de alguma enfermidade ou deficiência mental, ao contrário do tratamento que o atual diploma penal lhes reserva, presumindo-os assexuados”.
No mesmo sentido, assevera o professor Greco que
Não se pode proibir que alguém acometido de uma enfermidade ou deficiência mental tenha uma vida sexual normal, tampouco punir aquele que com ele teve algum tipo de ato sexual consentido. O que a lei proíbe é que se mantenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com alguém que tenha alguma enfermidade ou deficiência mental que não possua o necessário discernimento para a prática do ato sexual[101].
11 ANÁLISE DO ESTUPRO DE VULNERÁVEL A PARTIR DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Consoante analisado em tópicos anteriores, a entrada em vigor do Estatuto da pessoa com deficiência representou um divisor de águas no ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que trouxe consigo uma carga axiológica repleta de reconhecimento de direitos tendentes a romper paradigmas, promovendo igualdade e propiciando ferramentas para a inserção das pessoas com deficiência no contexto social.
Dentre os vários direitos reconhecidos, insta salientar o reconhecimento aos relacionados à sexualidade da pessoa com deficiência, tais como previstos nos artigos 6º, inc. II, 8º, 18, incisos VI e VII, bem como do art. 85, § 1º, todos do Estatuto Protetor.
A partir do reconhecimento legal (atendendo aos reclames da doutrina) da autonomia da pessoa com deficiência nos aspectos relacionados à sua vida sexual, tais como a escolha de parceiros, bem como pela possibilidade de escolha dos rumos de um relacionamento afetivo ou familiar, resta saber se essa independência esvazia o conteúdo da norma protetora do art. 217-A do Código Penal. Em outras palavras, deixaria a pessoa com deficiência de ser considerada vulnerável sob a ótica penal? A pessoa com deficiência seria tratada, sob todos os aspectos, sob o prisma de uma pessoa dita “comum”, inclusive sob o ponto de vista de ser vítima ou não do estupro de vulnerável?
A rigor, a resposta é negativa. Mas a análise do caso concreto é imprescindível.
Deve-se ter em mente que o Estatuto, ao reconhecer direitos sexuais à pessoa portadora de deficiência, nada mais fez do que tornar expresso que essas pessoas também estão sujeitas a desejos, aspirações, vontades e necessidades típicos de qualquer ser humano reputado “normal”, verdadeiramente abrindo os olhos da sociedade para essa realidade, que já não pode mais ser ignorada.
Dessa forma, o tratamento legislativo da temática veio em boa hora, visto que, como dito anteriormente neste trabalho, é inegável que até mesmo os animais irracionais são passíveis de desejos sexuais, ao passo que a pessoa com deficiência era tratada como objeto, à margem da sociedade, tratamento esse que ignorava os seus desejos sexuais ou familiares, não enfrentando adequadamente a questão.
Corroboram essa afirmação as modificações quanto à percepção da (in) capacidade civil instituídas pelo Estatuto da pessoa com deficiência (já estudados em tópicos anteriores), as quais deixaram claro que os limites a eventual curatela (bem como a processo de tomada de decisão apoiada) se limitarão a influenciar decisões de cunho patrimonial, não devendo imiscuir-se em questões existenciais, a exemplo da escolha de parceiros ou interferência sobre desejos sexuais.
Sob tal aspecto, a ideia de vulnerabilidade deverá ser analisada não mais com base exclusivamente na pré-existência de enfermidade ou doença mental (a qual, por si só, não significa necessariamente que a pessoa seja capaz de consentir simplesmente por ela ser portadora de deficiência), mas a perspectiva terá como ponto de partida a autonomia da vontade da pessoa portadora de deficiência, invertendo-se a lógica até então dominante.
A partir de tais premissas, deve-se fazer uma interpretação compatível com o Estatuto Protetor, em consonância com as disposições do Código Penal. Nesse ínterim, diante de uma suspeita de estupro de vulnerável (na hipótese de ser a vítima pessoa com enfermidade ou doença mental), o posicionamento do juiz deve ser no sentido de se examinar pericialmente se a pessoa tinha, no caso concreto, possibilidade de consentir para a prática do ato sexual. Caso contrário, estar-se-á diante da incidência do crime do art. 217-A do Código Penal.
Com base nessa concepção, não houve prejuízo da aplicação do art. 217-A do CP com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, visto que o caso concreto poderá revelar que a pessoa realmente não possuía condições para que sua autonomia para o ato sexual fosse validamente reconhecida. Porém, a presunção inicial será da capacidade de consentimento da pessoa portadora de deficiência e, por exceção (e prova em sentido contrário), haverá por se entender pela incapacidade para consentir.
Assim, o Estatuto Protetor vem a corroborar a indicação já existente no Código Penal (instituída pela Lei n.º 12.015/09).
O professor Sanches esclarece que
O Estatuto da Pessoa com Deficiência em nada interfere na caracterização do crime de estupro de vulnerável, pois desde a edição da Lei nº 12.015/09, em que a presunção de violência foi extirpada do nosso ordenamento jurídico, é necessário apurar se a enfermidade ou a deficiência mental de que padeça alguém ocasiona a falta de discernimento. As disposições do art. 6º do Estatuto podem servir para reforçar a indicação do Código Penal, mas não há mudança substancial na incidência do tipo[102].
Nesse sentido,
Definido pela nova lei que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa exercer direitos sexuais, o estupro de vulnerável só pode ocorrer quando a deficiência mental, causa para a vítima a absoluta impossibilidade de não ter discernimento para a prática do ato sexual, destarte, a vulnerabilidade não é absoluta, devendo ser aferida por meio de perícia[103].
Sob essa perspectiva, o crime só ocorrerá se a patologia (enfermidade ou deficiência mental) lhe retirar o discernimento necessário para a prática de relação sexual[104].
Corroborando esse entendimento, em relação ao deficiente ou enfermo mental
Deve ser considerado que existem níveis de deficiência e que, a partir de certo estágio de compreensão, o indivíduo tem uma capacidade de discernir que lhe permite a prática de atos sexuais, sem que isso represente qualquer violência contra si. Como a configuração do crime exige ausência do necessário discernimento, não haverá o delito se o deficiente, ou mentalmente enfermo, possuir tal capacidade[105].
Assim, é inegável que o Estatuto da pessoa com deficiência traz à tona a necessidade de enfrentamento, por parte da sociedade, das peculiaridades que, por toda a história, foram injustamente ignoradas (como, por exemplo, o reconhecimento às necessidades sexuais), tanto por motivos egoísticos quanto pela própria subjugação dessas pessoas a ponto de rebaixá-las à qualidade de “coisa”.
Por derradeiro, certamente há de se admitir a compatibilidade entre o Estatuto Protetor e a Norma Penal Repressora (Art. 217-A, § 1º, CP).