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A descriminalização do aborto no Brasil

Agenda 06/08/2017 às 10:33

Ao apreciar o HC nº 124.306/RJ, a Primeira Turma do STF deu mais um passo para descriminalizar o aborto, sinalizando que praticá-lo nos três primeiros meses de gestação não pode ser considerado crime. O Brasil aguarda - imerso num conflito de princípios - qual será a derradeira decisão.

No dia 09/8/2016, o crime de aborto pulou os muros do Código Penal e foi passear nas trilhas constitucionais traçadas pela 1ª Turma do STF, que, ao apreciar o Habeas Corpus nº 124.306/RJ, sinalizou que praticá-lo nos três primeiros meses da gestação não pode ser considerado crime.

A demanda orbitava a existência de requisitos legais para a prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam numa clínica clandestina em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Entretanto, no seu voto o ministro Luis Roberto Barroso estendeu-se ao argumentar que as prisões deveriam ser revogadas porque os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto até o terceiro mês de gravidez são inconstitucionais, pois violam direitos fundamentais da mulher. Rosa Weber e Edson Fachin o seguiram, enquanto Luiz Fux e o relator Marco Aurélio Mello não arrostaram a descriminalização.

O tema é tão polêmico quanto antigo, pois, de acordo com Matielo (1994), o Código de Hamurabi já o abordava prevendo indenização em casos de aborto provocado, cujo valor variava conforme ocorresse ou não a morte da  mulher, levando-se em conta se ela era livre ou escrava para fixar-se o valor indenizável. Morrendo a mulher livre, a filha de quem provocou o aborto seria morta; morrendo a escrava, indenizava-se em dinheiro o seu senhor.

Segundo Costa (1986), em regra, na antiguidade o Direito era indiferente ao aborto, que durante longo período não foi incriminado, pois considerava-se que o feto nada mais era do que parte das vísceras da gestante.

Fragoso (1987) leciona que, em tempos menos remotos, a repressão ao aborto aparece no Direito francês, equiparando-o ao homicídio e condenando à pena de morte, acrescentando que Feuerbach combateu essa equiparação e teve papel de destaque nas legislações do século XIX para atenuação das penas.

Voltando à decisão da 1ª Turma, logo após o julgamento, a Câmara dos Deputados criou uma comissão especial que pode dar envergadura constitucional ao aborto: "sempre que o Supremo legislar, nós vamos deliberar sobre o assunto", afirmou o presidente da Casa, que, naquela ocasião, era candidato à reeleição para a presidência, para a qual precisaria do apoio das bancadas religiosas, que o motivaram a criar a comissão quase que com a velocidade da luz.

Diante do controvertido tema, pergunta-se qual  papel o Estado deve desempenhar no desenlace dessas divergências de matiz filosófico-religiosa? Devem prevalecer os interesses do indivíduo e a visão humanista da sua autonomia e autodeterminação, reduzindo-se a estatura estatal e sua ingerência na vida social, ou deve-se dar espaço para que o leviatã, bem delineado por Thomas Hobbes (1651) se imiscua também em assuntos desse timbre?

Barroso manifestou-se claramente pela primeira opção: "como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?”

Na ementa do acórdão constou que é preciso conferir interpretação conforme à Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal, que tipificam o crime de aborto, para excluir da sua incidência aquele praticado voluntariamente no primeiro trimestre da gravidez, porque a criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.

Segundo o acórdão, a criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.

Para os ministros, a tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade pelos seguintes motivos: I) trata-se de medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar, vida do nascituro, por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; II) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; III) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais, problemas de saúde pública e mortes, superiores aos seus benefícios.

Em arremate, a Turma mencionou que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.

Noutra quadra, fora das hostes jurídicas, o presidente do Conselho Regional de Medicina de SP, Mauro Aranha, falando ao UOL notícias (2016), ponderou que toda criminalização que envolve a saúde afasta o paciente do médico, e isso, em si, é um grande dano. Por isso, para ele a questão deve ser removida da área criminal e alocada na da saúde, direitos sociais e humanos.

 Outros destacados profissionais da área da saúde compartilham essa opinião, entre eles o professor da Unicamp Aníbal Euzébio Faúndes (2015), que no seu artigo "Malentendidos sobre el efecto de la legalización del aborto" concluiu que na América Latina prevalece o conceito errado de que liberalizar a lei levará a um aumento no número de abortos.

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O professor ensina que esse é um grande mal entendido, porque os estudos demonstram que há mais abortos onde as leis são mais restritivas e os procedimentos não aumentam quando elas são revitalizadas com verniz mais liberal. Suas pesquisas indicam  que aumentando o acesso seguro ao aborto, além de reduzir o sofrimento e a morte, também se reduz o número de interrupções voluntárias da gravidez.

Portanto, a criminalização do desesperado ato além de não ajudar a diminuir a quantidade de abortos praticados, ajuda apenas a manter as mulheres pobres à margem dos recursos possíveis, agravando o problema de saúde pública que a clandestinidade representa. Isso porque, acredita-se que a criminalização como temos hoje invariavelmente prejudica as mulheres mais pobres, sem acesso a médicos, hospitais ou clínicas qualificadas. A essas, só resta recorrer a medicamentos perigosos, métodos grotescos, ou estabelecimentos precários, com elevados riscos à saúde ou óbito.

Os defensores da legalização sustentam que, obviamente, ninguém é favorável ou se compraz com a eliminação de uma vida, mas retirá-lo do Código Penal permitiria que essas gestantes alcançassem os profissionais habilitados do sistema público de saúde, tendo ao menos a integridade física preservada, já que a psicológica certamente restará abalada.

Esse abalo do psicológico restou comprovado em pesquisas como a desenvolvida na Unicamp pelos pesquisadores Costa, et al (1995) e publicada no artigo "A decisão de abortar: processo e sentimentos envolvidos", segundo o qual em maior ou menor grau o aborto sempre agride a psiquê feminina.

Noutro vértice, não se pode ter a inocência de acreditar que, com o atual nível educacional brasileiro, haja racionalidade e consciência para adesão responsável aos métodos contraceptivos disponíveis. Mais ainda ao considerar-se os adolescentes e jovens com hormônios em ebulição, que nos seus incandescentes arroubos juvenis a última coisa de que lembram é protegerem-se e prevenirem a gravidez indesejada.

Os defensores da legalização do aborto argumentam que nossa atual realidade é de mulheres submetidas a verdadeiro calvário, pois além de enfrentarem os mencionados danos físicos e psicológicos da violadora e desregrada intervenção, têm de lidar com as malhas da justiça, que as cobrem com o manto da criminalidade. Ponderam que se os membros da 1ª Turma do STF tiveram a coragem de olhar nos olhos do controverso tema, embora com efeitos limitados ao caso carioca, chegou a hora de escantear os posicionamentos religiosos e filosóficos para frear a aluvião de tragédias que o aborto mal conduzido produz.

Para isso, sustentam, haveria apenas duas vias: alterar o Código Penal pelo processo legislativo, ou motivar o STF a enfrentar a questão. Como no nosso legislativo não é prudente depositar grandes cotas de esperanças, esperam que uma das entidades com legitimidade para invocar aquela Corte leve o caso ao escrutínio dos ministros em deliberação do Pleno. Como três já se manifestaram favoravelmente à liberalização, os defensores da legalização acreditam que são grandes as chances de dar-se significativo passo no rumo de um futuro melhor e mais seguro para as mulheres.

Embora o objeto desse artigo seja a legalização do aborto no Brasil, uma surpreendente pesquisa conduzida por Steven David Levitt e Stephen J. Dubner (2007) nos Estados Unidos merece ser mencionada, haja vista sua conclusão inusitada e para muitos inaceitável e revoltante. Segundo os pesquisadores a legalização do aborto foi responsável pela redução da criminalidade nos EUA. Sustentam que, no início dos anos 90, precisamente quando a primeira leva de crianças nascidas após o caso Roe x Wade, que tratou da legalização do aborto em 1973, chegava à fase adulta, o índice de criminalidade começou a cair e continuou caindo à medida que uma geração inteira alcançou a maioridade, dela excluídas as crianças que as mães não queriam pô-las no mundo.

 Segundo os pesquisadores, o aborto legalizado resultou num número menor de filhos indesejados e filhos indesejados levam a altos índices de criminalidade. A legalização do aborto, levou, assim, a menos crimes. No tal caso, a opinião da maioria dos juízes da Suprema Corte no processo Roe x Wade, relatado pelo desembargador Harry Blackmun, se referia especificamente ao calvário da futura mãe.  Em 1970, 5 estados americanos já haviam legalizado o aborto e tornado o procedimento acessível.

Coincidentemente, ou não, esses 5 Estados iniciaram um pouco mais cedo a queda da criminalidade que os demais.  Portanto, para os dois pesquisadores, o sucesso na redução da criminalidade nova iorquina na década de 90 deu-se, também, em função da legalização do aborto no início dos anos 70 e não exclusivamente em função da política de tolerância zero aplicada pelo prefeito Rudolph Giuliani e seu chefe de polícia Willian Braton, baseada na teoria das janelas quebradas - broke windows teory.

Retornando à descriminalização do aborto no Brasil, há robustos argumentos para que ele continue etiquetado no Código Penal, o que é defendido por estudiosos respeitados, a começar por Lênio Luiz Streck e Rafael Giorgio Dalla Barba (2016), que sem entrarem no mérito da decisão do STF e sem posicionarem-se contra ou a favor da descriminalização, criticaram com veemência o voto do ministro Luis Roberto Barroso. Para eles, o ministro levou ao paroxismo o ativismo judicial e ultrapassou todos os limites que ainda restavam daquilo que Montesquieu nos legou em termos de separação dos poderes.

Streck e Barba questionam de que modo garantir a possibilidade de aborto pelo SUS ou convênios suplementares, quando os atendimentos são tão demorados, já que o aborto só poderia ser feito até três meses de gravidez. Para eles, descriminalizar simplesmente os procedimentos até então "clandestinos" é que não parece ser a “solução” advinda de uma Suprema Corte. 

Acrescentam que, se fosse, isso deveria vir acompanhado de ampla prognose, que, por certo, não é do âmbito de competência do Judiciário. Finalizam, argumentando que não se invalida uma lei com argumentos de política, pois os julgamentos devem ser de princípios, sendo desimportante o que o juiz pensa particularmente sobre o conteúdo da lei, pois cada um tem o seu papel na democracia.

Já na área médica, acerca da discussão sobre o momento exato em que se dá o início da vida humana, que na decisão do STF ocorreria a partir do 3º mês de gravidez, a cientista e professora da Universidade Federal de SP - Unifesp, Alice Teixeira Ferreira, em entrevista concedida em 2006 ao "Portal Academus", disse que cientista que diz não saber quando inicia a vida humana está mentindo.

Segundo a professora, qualquer texto de embriologia clínica, ou humana, afirma que se inicia na concepção. Em 1827, com o aumento da sensibilidade do microscópio, permitindo visualizar o óvulo e os espermatozóides, Karl Ernst Von Baer descreveu a fecundação e o desenvolvimento embrionário. Os médicos europeus, diante de tais evidências, passaram a defender o ser humano desde a concepção, contra o aborto. Em 1869 a Inglaterra foi o primeiro pais a tornar o aborto ilegal.

A professora arremata, afirmando que é um fato científico e não um dogma da Igreja Católica ou de qualquer religião. Para não dizer que está ultrapassado, os embriologistas desde 2005 afirmam não só que a origem do ser humano se dá na fecundação como, do ponto de vista molecular, a primeira divisão do zigoto define o nosso destino. 

Nesse norte, ao participar de seminário da Frente Parlamentar contra a legalização do aborto - pelo direito à vida, a cientista e professora do Departamento de Biologia Celular da UNB, Lenise Aparecida Martins (2007), argumentou que a discussão sobre o aborto deve focar a formação do indivíduo, e não o início da vida, e indagou: por que o governo protege os ovos de tartaruga e não quer proteger a vida intrauterina? Em seguida, questionou: se o embrião humano não é um ser humano, a que espécie pertence?

Também contrários à descriminalização, os professores Ives Gandra Martins, Roberto Vidal da Silva Martins e Ives Gandra Martins Filho (2008), defendem que o art. 2º do CC assegura todos os direitos do nascituro desde a sua concepção, portanto seria extremamente contraditório ter todos os direitos menos o direito à vida. Além disso, continuam, o art. 4º do Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, prevê que a vida é assegurada desde a concepção.

Vários outros argumentos são levantados pelos contrários à descriminalização, por exemplo, ao serem defrontados com a pergunta: mas se a criança indesejada nascer, vai viver sob quais condições? Respondem: sob as que construir ao longo da vida que lhe for proporcionada. De acordo com essa linha, nada justifica o possível assassinato de uma vida humana para preservá-la de algo, porque são numerosas as biografias de redenção nas mais adversas condições.

Contra a alegação de que a permanecer a criminalização as mulheres continuarão fazendo aborto, só que ilegal, contra atacam, ironizando que então seria o caso de legalizarmos os demais crimes gizados no CP. Isso porque, a criminalização não ser efetiva no combate ao aborto não é exclusividade deste crime, já que no Brasil a criminalização também não é efetiva em combater o tráfico de drogas, a corrupção, o roubo, o latrocínio, o homicídio, a violência doméstica, e vários outros crimes previstos no catálogo penal.

À derradeira, ponderam que se o homicídio qualificado é tão repulsivo que mereceu ser alçado à condição de hediondo, muito mais seria retirar ou impedir a vida de um ser humano completamente indefeso.

Portanto, o que se tem sobre o tema são duas correntes muito bem fundamentadas, ambas protagonizadas por eminentes estudiosos, com posições diametralmente opostas, que, há anos, debatem a questão. Todavia, a recente decisão da 1ª Turma do STF, antecedida pela que descriminalizou o aborto de fetos anencéfalos, no julgamento da ADPF nº 54/2012, demonstram a inclinação daquela Corte, de molde que assim que lhe chegar ao escrutínio o controverso tema, tudo indica que o aborto até o 3º mês de gravidez será descriminalizado no Brasil.  

Aos opositores, restará mobilizarem-se politicamente para alçar o tema a dispositivo constitucional pela via legislativa, a fim de salvaguardar-se do crescente ativismo judicial que a inércia dos nossos legisladores tem imposto ao país.

Tudo posto e sopesado, após analisar as duas correntes aqui apresentadas, adere-se àquela que pugna pela manutenção do aborto no catálogo penal. Além dos argumentos esposados pelos especialistas, notadamente os cientistas que afirmam que a vida inicia na fecundação, agregam-se os seguintes: se temos uma legislação que protege a vida e o bem estar dos animais, com mais razão devemos zelar pela vida humana; se temos uma legislação que beneficia os menores infratores, para tentar recuperá-los, com mais razão devemos tentar recuperar a esperança de vida do indefeso ser humano que reside na mulher; se temos como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, como verte do art. 3º, I, da CF/88, temos de ser solidários com a vida dos mais frágeis, e não há ser humano mais frágil que aquele domiciliado no ventre materno. 


Referências

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Sobre o autor
Luciano Rosa Vicente

Professor de Direito na Faculdade Anhanguera de Brasília - FAB; mestrando em Direito; especialista em Direito Público, Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Disciplinar; bacharel em Direito; e bacharel em Ciências Contábeis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICENTE, Luciano Rosa. A descriminalização do aborto no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5149, 6 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59455. Acesso em: 23 dez. 2024.

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