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O Ministério Público e a abrangência da Lei Maria da Penha: uma discussão de gênero e sexo

Agenda 06/01/2018 às 14:00

Comenta-se a diferença acerca de sexo e gênero, para fins de aplicação da Lei Maria da Penha, e em que ponto essa discussão interessa ao Ministério Público.

Desde o Constituinte de 1988, o Ministério Público vem galgando espaços e atuando na defesa dos direitos do cidadão. O fortalecimento do órgão é medida necessária ao fortalecimento do sistema democrático e do Estado de Direito.

Nesse contexto, muitas atribuições foram conferidas ao Órgão e na Lei Maria da Penha não foi diferente. Nos dizeres da exposição de motivos ao Projeto de Lei, consta no item 25 que: “O Ministério Público se afigura hoje como advogado dos interesses sociais, difusos e coletivos. É titular da ação que se fizer necessária para proteger o que é de todos, conforme determina o artigo 129 da Constituição Federal”.

A Lei Maria da Penha dedicou o Capítulo III exclusivamente para tratar sobre a atuação do Ministério Público, garantindo a sua intervenção em causas cíveis ou criminais, ainda que não seja parte (art. 25 da Lei 11.340/06).

Na praxe forense, essa atuação se dá, notadamente, nas Medidas Protetivas de Urgência e nos processos criminais, ambos processados e julgados no Juizado de Violência Doméstica.

Nesse ponto é imperioso tratar da delimitação da competência desses Juizados, para que neles só sejam apreciados os casos enquadrados na Lei Maria da Penha, pois não basta ser mulher para haver a tutela. Deve-se ter uma relação doméstica ou familiar entre as partes, bem como o fato ser decorrente não do sexo feminino da vítima, mas sim do gênero.

Aqui reside uma das grandes polêmicas da Lei, o que seria gênero? Gênero pode ser definido como aquilo que identifica e diferencia os homens e as mulheres, ou seja, o gênero masculino e feminino. De acordo com a definição comum de gênero, este pode ser usado como sinônimo de “sexo”.

No entanto, a partir do ponto de vista das ciências sociais, o gênero é entendido como aquilo que diferencia socialmente as pessoas, levando em consideração os padrões histórico-culturais atribuídos para os homens e mulheres.

Em síntese, pode-se afirmar que se nasce macho ou fêmea, mas somente o ambiente social é que determinará se seremos homens ou mulheres.

A violência de gênero é aquela praticada contra a mulher, relacionando-a aos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, de modo a enxergar a mulher (vítima) como um ser inferior, tomando por base a superioridade do outro. Embora essa submissão esteja comumente atrelada à figura do homem, não há óbice algum em se verificar a mesma sujeição nos conflitos que envolvem mulheres, como, por exemplo, entre mãe e filha, tia e sobrinha e casais homoafetivos.

A título de exemplo, uma mãe que exige da filha o cumprimento de afazeres domésticos, como lavar a louça da casa, ao mesmo tempo em que não cobra tais tarefas de seu filho, comete violência baseada no gênero, ao conferir certos direitos a um, enquanto exige deveres do outro pelo simples fato de ser ela mulher.

Nesse contexto de gênero, mais profundo que o de sexo, é possível a incidência da Lei Maria da Penha para a mulher trans, pois o que será relevante não é a presença da genitália masculina ou feminina, mas sim o modo de agir, de se sentir e ser tratado na sociedade. Somente dessa maneira é que se pode verdadeiramente cumprir o postulado da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º da Constituição Federal).

Contudo, nem tudo pode ser enquadrado como violência para a Lei. Um filtro se faz necessário e nesse ponto é que se torna crucial a atuação do Ministério Público.

Partindo do exemplo anterior, em que se tratou de um conflito entre irmãos, é possível se chegar a uma conclusão diferente.

Entre um irmão e irmã há uma relação familiar e a vítima é do sexo feminino, mas pode não haver conflito de gênero, caso se conclua que as partes se encontravam em pé de igualdade e que não houve alguma imposição para que a vítima assumisse algum papel historicamente atribuído à mulher, pelos ditames de nossa sociedade essencialmente patriarcal.

No caso hipotético relatado, não há de se falar em violência de gênero, caso a mãe exigisse de seus filhos (homem e mulher) a realização dos mesmos afazeres domésticos.

Em suma, quando não há violência de gênero, não haverá a incidência da Lei.

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Na realidade, somente diante do caso concreto é que será possível se proceder com essa análise, valendo-se o Ministério Público, caso necessite, da equipe multidisciplinar para um melhor posicionamento.

Esse filtro é de deveras importância e em nada enfraquece a Lei. Não se pode abraçar a ideia fácil, porém equivocada, de proteção geral e irrestrita, pois não é esse o intuito da norma, que prevê expressamente a delimitação da sua incidência para os casos que envolvam conflitos lastreados em violência de gênero (art.5º da Lei 11.340/06) .

A pretensão de se transpor o referido dispositivo ao invés de melhor proteger as mulheres, resulta, na realidade, no seu oposto. Realizando uma comparação esdrúxula, é como se a lei fosse um ônibus e o cobrador fosse o filtro. Caso eu retire o cobrador, todas as mulheres poderiam entrar no ônibus, sem controle, o que resultaria na lotação do mesmo, de modo a impossibilitar o acesso de quem realmente necessite desse meio.

Se todas as mulheres, em qualquer situação, fossem protegidas pela Lei, na verdade nenhuma delas estaria protegida e a norma, por conseguinte, não teria espectro de atuação algum, tornando letra morta os seus dispositivos.

Se o Judiciário e a delegacia não conseguem realizar a contento esse filtro, cabe ao Ministério Público essa função, pois, sendo parte ou não, sempre atuará como fiscal da ordem jurídica, direcionando corretamente as denúncias aos órgãos jurisdicionais competentes, bem como se manifestando pela incompetência para os feitos que erroneamente já foram encaminhados. Desse modo, garantirá o Ministério Público a observância dos ditames da Lei Maria da Penha e a tutela pela norma a quem de fato dela necessite.


BIBLIOGRAFIA

- CUNHA. Rogério Sanches / PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: comentada artigo por artigo. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

- LIMA. Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada. 2ª edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.

- ALMEIDA, Ana Kelly / BEZERRA, Maria do Carmo / NASCIMENTO, Rozeane Leal. Nota Técnica nº 01/2015 - Equipe Multidisciplinar Serviço Social da 2ª Vara de Violência Doméstica e Familiar de Recife/PE.

Sobre o autor
Geraldo de Sá Carneiro Neto

Mestre em Perícias Forenses da Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Camaragibe). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2012). Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio de Jesus (2014). Especialista – MBA em gestão do Ministério Público pela Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Benfica). Analista Ministerial da área jurídica do Ministério Público do Estado de Pernambuco, lotado em Promotoria de combate à violência doméstica. Professor de cursos preparatórios de concurso e Palestrante. ex-analista jurídico do Tribunal de Justiça de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NETO, Geraldo Sá Carneiro. O Ministério Público e a abrangência da Lei Maria da Penha: uma discussão de gênero e sexo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5302, 6 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59589. Acesso em: 22 dez. 2024.

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