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Cura gay, ações afirmativas e o preconceito transvestido de direito fundamental

A resolução do Conselho de Psicologia traz uma pequena garantia de que a diversidade de orientação sexual deva ser tratada com normalidade, para que, em um futuro próximo, possa ser aplicado a ela o mesmo raciocínio jurídico que envolve a diversidade racial e combate o racismo.

Recentemente uma decisão da 14ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal nos autos da ação popular  nº 1011189-79.2017.4.01.3400[1] causou grande polêmica no mundo jurídico e fora dele.

Em síntese, a decisão deferiu em parte a liminar requerida pelos autores, determinando ao Conselho Federal de Psicologia que não interprete a resolução nº 001/1990[2]: “de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantido-lhes assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do C.F.P., em razão do disposto no art. 5º, inciso IX da Constituição de 1988”.

De um ponto de vista estritamente jurídico, tenderia a concordar com a decisão pelo fato de defender a liberdade científica e de expressão em detrimento de censura prévia de qualquer natureza.  Entretanto, discordo do magistrado quando analisa eventual incongruência do ato impugnado com a Constituição Federal, deixando de lado a análise da resolução pela ótica do ato que a fundamenta: a Lei.

Isso por que a Constituição Federal é vetor interpretativo de todo ordenamento, mas é também abstrata o suficiente para justificar qualquer forma de decisão, vemos isso todos os dias.  Eventual contraponto com o ato que o fundamenta (a lei) traria maior legitimidade a decisão, qualquer sentido que tivesse.

Dito isso, podemos passar a análise do conteúdo da decisão referente ao que se tem chamado de “cura gay” e a decisão que a permitiu, a despeito do que dispõe o Conselho Federal de Psicologia.

Em primeiro lugar, ressalto que a resolução combatida continua plenamente válida, com todos as normativas propostas: a vedação a medidas coercitivas tendentes a orientar homossexuais a tratamentos não solicitados, vedação a pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação em massa etc., de  modo a reforçar preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica. A resolução também explicitamente diz que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio nem perversão.

Então fica a consideração, -por que seria possível o atendimento voluntário e reservado a (re)orientação sexual?  A resposta nos parece estar alicerçada na capacidade de auto-determinação do indivíduo.

Correndo o risco de divagar, vamos analisar brevemente a Lei Maria da Penha.

A Lei 11.340/06 veio com atraso para combater a violência praticada contra a mulher em âmbito doméstico e familiar ou decorrente de relações íntimas de afeto. Em última análise, se presta a fortalecer a posição da mulher buscando uma igualdade real, estabelecendo medidas que coíbam a violência historicamente sofrida e assegurando um desenvolvimento social que gradualmente equilibre a relação entre gêneros. Dessa forma, pode-se concluir que a mens legis abarca o fortalecimento da auto-determinação das mulheres, em especial as que  se encontram em situação de vulnerabilidade.

Por outro lado, o  STF  já se posicionou no sentido de que as lesões leves ou mesmo culposas, quando no âmbito da Lei Maria da Penha, são de ação penal pública incondicionada[3].

Ora, não seria um contrassenso? Um homem é capaz de decidir acerca da persecução penal contra seu agressor mas uma mulher em situação análoga não seria? E essa diferença seria baseada exclusivamente no gênero.

Ocorre que essa distinção tem fundamento nas chamadas ações afirmativas. Renato Brasileiro sobre o tema esclarece:

“(...)buscam incluir setores marginalizados num patamar satisfatório de oportunidades sociais, valendo-se de mecanismos compensatórios. Esses programas de ação afirmativa não se colocam em rota de colisão com o princípio da igualdade, potencializando, pelo contrário, expectativas compensatórias e de inserção social de parcelas historicamente marginalizadas”.[4]

Com isso em vista, percebemos que a restrição a representação por parte da mulher em situações sob o escopo da Lei Maria da Penha tem um viés político-social forte.  Faz parte de um posicionamento de combate a discriminação e que assegure a proteção de um grupo socialmente vulnerável visando corrigir distorções históricas.

Assim, o que aparentemente é uma restrição da autodeterminação de um segmento social, na verdade é uma ação afirmativa, com finalidade de obter igualdade real, inibindo comportamentos nocivos.

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Isso se vê também no sentido de que a democracia não pode significar simplesmente ditadura da maioria, pois a defesa de um núcleo mínimo de direitos limita as decisões da maioria, garantindo justiça e representatividade às minorias.

É aí que entra a polêmica sobre a “cura gay”.

A ciência precisa sim de liberdade e maleabilidade para se aprofundar e permitir o avanço e o progresso, mas isso não é também um cheque em branco, uma autorização ampla e irrestrita para qualquer conduta em nome do desenvolvimento.

Se buscarmos um psicólogo por sermos crentes e desejarmos uma “(re)orientação” religiosa, isso seria vedado? Eticamente sim – ao psicólogo. O psicólogo pode abordar todas as formas de sofrimento que orbitem sua crença, mas não atacar a crença em si como uma patologia ou perversão. O mesmo deve se aplicar à abordagem da orientação sexual, nos termos da Resolução 1/1990 do Conselho Federal de Psicologia.

Aponto aqui que a discriminação pela orientação religiosa é vedada por lei, com penas de até cinco anos de reclusão. Já a discriminação pela orientação sexual – nos mesmos termos - constitui, se muito, crime contra a honra.

Talvez seja o caso de entender que a resolução do CFP traz o início de uma ação afirmativa, uma pequena garantia de que a orientação deve ser tratada com normalidade, para que, quem sabe, em um futuro próximo, possamos dar a ela o mesmo status jurídico que emprestamos as circunstâncias previstas no art.  1º da Lei de Racismo (7.716/1989)[5], e talvez então não seja necessário explicar que não se trata de doença por meio de resolução.


REFERÊNCIAS 

http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf

ADI 4424 (Rel. Ministro Marco Aurélio, j. 9/2/2012).

BRASILEIRO, Renato. Legislação Criminal Especial Comentada, 2ª Ed, Salvador, Ed. Juspodivm, 2014 p.881,882

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7716.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm


Notas

[1] https://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/uploads/2017/09/ATA-DE-AUDI%C3%8ANCIA.pdf

[2] http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf

[3] ADI 4424 (Rel. Ministro Marco Aurélio, j. 9/2/2012)

[4] BRASILEIRO, Renato. Legislação Criminal Especial Comentada, 2ª Ed, Salvador, Ed. Juspodivm, 2014 p.881,882

[5] Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Sobre os autores
Gabriel Morais Lanna

Bacharel em Direito pela UFMG Delegado de Polícia no Espírito Santo (2014) Pós Graduado em Direito Processual Penal (2015) Nomeado para o cargo de Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo (2016) Medalha Do Mérito Policial do Estado do Espírito Santo (2017) Professor de Direito Penal na Faculdade São Camilo (2017) Medalha Desembargador Ruy Gouthier de Vilhena (2017)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LANNA, Gabriel Morais; MORGHETTI, rebeca rauta. Cura gay, ações afirmativas e o preconceito transvestido de direito fundamental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5224, 20 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60760. Acesso em: 21 nov. 2024.

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