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Prisão: uma visão crítica frente ao princípio da presunção da inocência

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4. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O princípio da presunção da inocência ou da não culpabilidade é um princípio relativamente recente se considerarmos o tempo de existência de leis que regem as relações interpessoais. Conforme os ensinamentos do saudoso penalista Guilherme de Souza Nucci (2004, p. 38), não há evidências do princípio da presunção da inocência na pré-historia:

E, desde os primórdios, o ser humano violou as regras de convivência, ferindo semelhantes e a própria comunidade onde vivia tornando inexorável a aplicação de uma punição. Sem dúvida, não se entendiam as variadas formas de castigo como se fossem penas, no sentido técnico-jurídico que hoje possuem, embora não passassem de embriões do sistema vigente. Inicialmente, aplicava-se a sanção como fruto da libertação do clã da ira dos deuses, em face da infração cometida, quando a reprimenda consistia, como regra, na expulsão do agente da comunidade, expondo-o a própria sorte.

Acreditava-se nas forças sobrenaturais que, por vezes, não passavam de fenômenos da natureza, como a chuva ou o trovão, motivo pelo qual, quando a punição era concretizada, imaginava o povo primitivo que poderia acalmar os deuses (...). Não houvesse a sanção, acreditava-se que a ira dos deuses atingiria todo o grupo. Atingiu-se, em uma segunda fase, o que se convencionou chamar de vingança privada, como forma de ração da comunidade contra o infrator. Na realidade, a justiça pelas próprias mãos nunca teve sucesso, pois implicava, na essência, em autêntica forma de agressão. Diante disso, terminava gerando uma contra-reação e o círculo vicioso tendia a levar ao extermínio de clãs e grupos. O vínculo totêmico (ligação entre os indivíduos pela mística e magia) deu lugar ao vínculo de sangue, que implicava na reunião dos sujeitos que possuíam a mesma descendência.

Vislumbrando a tendência destruidora da vingança privada, adveio o que se convencionou denominar de vingança pública, quando o chefe da tribo ou da clã assumiu a tarefa punitiva. A centralização de poder fez nascer uma forma mais segura de repressão, sem dar margem ao contra-ataque. Nessa época, prevalecia o critério do talião (...), acreditando-se que o malfeitor deveria padecer o mesmo mal que causara a outrem. Não é preciso ressaltar que as sanções eram brutais, cruéis e sem qualquer finalidade útil, a não ser apaziguar os ânimos da comunidade, acirrados pela prática da infração grave. (...).

Como se vê, prevalecia neste período, em virtude das circunstâncias remotas em que viviam as pessoas, a mentalidade da época no que tange à crença nos poderes e castigos divinos, bem como a odiosa vingança privada, que se caracterizava pela ausência de juiz distinto das partes e a imposição da decisão por uma das partes à outra, geralmente a mais forte. Não havia que se falar, portanto, em presunção de inocência.

Já na idade média, período marcado pela força dominante da igreja, que se confundia com o próprio poder real, prevaleceu o Sistema Inquisitivo, sistema esse que possuía a finalidade de investigar e punir aqueles que praticavam, professavam doutrinas contrárias aos dogmas concebidos pela igreja da época, apresentava algumas características próprias, a saber:

(a) o julgamento é feito por magistrado ou juiz permanente, que sempre é um funcionário do rei ou da autoridade subordinada ao poder governamental; (b) o juiz tem a tarefa de acusar, defender e julgar, sempre se sobrepondo à pessoa do acusado; (c) a acusação, que sempre é ex officio , permite que a denúncia seja feita de forma secreta; (d) o procedimento é escrito, secreto e não admite o contraditório e, conseqüentemente, a ampla defesa; (e)  o julgamento é feito com base na prova tarifada; (f) a regra era a prisão preventiva do réu; (g) a decisão jamais transita formalmente em julgado, podendo o processo ser reaberto a qualquer tempo.

Nesse sistema, o direito de defesa do acusado nem sempre era observado em sua plenitude em virtude de seus requerimentos serem julgados pelo próprio órgão acusador. Aqui, surge a ideia de prisão preventiva, no entanto, tal instituto é usado indiscriminadamente se tratando no caso concreto mais uma regra do que excessão. Ou seja, na dúvida, prisão provisória!

O princípio da presunção da inocência surge justamente para frear o poder absoluto do Estado, em uma época onde o monarca era considerado o próprio Estado, ditando e fazendo cumprir a própria lei.

Posteriormente, ocorre a ascensão da burguesia e o advento do movimento iluminista, movimento onde ideais liberais tomam envergadura e o Processo Penal estava no centro dessas novas perspectivas. Destaque para obra do ilustre Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, denominada Dos Delitos e Das Penas, que trouxe importantes e valiosas lições sobre o Principio da Presunção de Inocência:

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“Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade apenas lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido que ele tenha violado as normas em que tal proteção lhe foi dada”. (BECCARIA, 2012, p. 105)

A partir de então, o Princípio da Presunção de Inocência passou a compor o sistema processual de diversas nações.

O princípio se positivou pela primeira vez no artigo 9º da Declaração do Direitos do Homem e do Cidadão em data de 26 de agosto de 1.789. Inspirado na razão iluminista de intelectuais como Voltaire e Rousseau. Posteriormente foi reafirmado no artigo 26 da Declaração Americana de Direitos e Deveres, em 22 de maio de 1948. E no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Assembléia das Nacões Unidas, em 10 de dezembro do ano de 1948.

Com o princípio da presunção da inocência, conforme preceitua LENZA (2016, pág. 67):

O Estado, ente soberano que é, tem o poder de ditar as regras de convivência e, para isso, pode aprovar normas que tenham por finalidade manter a paz e garantir a proteção aos bens jurídicos considerados relevantes: vida, incolumidade física, honra, saúde pública, patrimônio, fé pública, patrimônio público, meio ambiente, direitos do consumidor etc. Essas normas, de caráter penal, estabelecem previamente punições para os infratores. Assim, no exato instante em que ela é desrespeitada pela prática concreta do delito, surge para o Estado o direito de punir (jus puniendi).

Este, entretanto, não pode impor imediata e arbitrariamente uma pena, sem conferir ao acusado as devidas oportunidades de defesa. Ao contrário, é necessário que os órgãos estatais incumbidos da persecução penal obtenham provas da prática do crime e de sua autoria e que as demonstrem perante o Poder Judiciário, que, só ao final, poderá declarar o réu culpado e condená­-lo a determinada espécie de pena.

No direito brasileiro, a norma está positivada na Constituição Federal em seu rol de direitos e garantias constitucionais de forma como pode-se observar:

Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.(EC nº 45/2004)

LVII- ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

De acordo com Moraes, em regra, direitos constitucionais definidos como direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia e aplicabilidade imediata. E a própria Constituição Federal, em uma norma síntese, determina esse fato, expressando que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (MORAES, 2007).

O instituto é atualmente uma das mais importantes garantias, onde o acusado pela prática de uma infração penal deixa de ser um simples componente de uma relação jurídica processual e torna-se um sujeito detentor de direitos e garantias. O mesmo também está previsto no artigo 283 do Código de Processo Penal que assim determina:

Art.283 -  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. 

Deste princípio, vários outros surgem em favor do réu. Tais como o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal dentre outros.


5. PRISÃO A PARTIR DA DECISÃO DE SEGUNDA INSTÂNCIA

 Em decisão apertada por 6 a 5 votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu recentemente em julgamento proferido em 17 de fevereiro de 2016 que o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) não impede o início da execução da pena após condenação em segunda instância e indeferiu liminares pleiteadas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44.

Tal decisão ganhou grande repercussão uma vez que afronta diretamente o princípio da presunção de inocência insculpida tanto na Carta Magna quanto no próprio Código de Processo Penal que só permite o cumprimento da pena após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

O ministro Teori Zavascki, relator do HC 126.292, sustentou que a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, autorizando o início da execução da pena. Segundo Zavascki, a presunção da inocência impera até a confirmação em segundo grau da sentença penal condenatória, sendo que, após esse momento, exaure-se o princípio da não culpabilidade, e o réu passa, então, a presumir-se culpado.

A linha de raciocínio do ministro está ancorada no argumento de que os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal, não se destinam à discussão de fatos e provas, mas apenas matéria de direito, razão pela qual a formação da culpa lato sensu já se encontra sedimentada. Nessa linha, Zavascki frisou em seu voto que, “ressalvada a estreita via da revisão criminal, é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame dos fatos e das provas, e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado”.

O problema, neste caso, é que a norma constitucional é “expressa e clara” ao estabelecer o momento em que a presunção de inocência deve ser derrubada, qual seja, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Atente-se para o fato de que não se questiona ser justa ou injusta a execução provisória da sentença penal condenatória. O questionamento está no fato de ser ela autorizada ou não dentro do nosso sistema constitucional. E como verificado, de fato não o é.

Apesar de que se reconheça que o Brasil vive hoje uma época marcada pela insegurança, em que a sociedade cobra que a lei seja de fato cumprida, os tribunais brasileiros não podem modificar a constituição ao seu bel prazer. Com efeito, a julgar pelos argumentos lançados, o “bem” que a decisão do Supremo Tribunal Federal promove ao restabelecer a efetividade das sentenças penais, prestigiando a manutenção da decisão condenatória em segundo grau e permitindo a execução provisória da pena, não supera o “mal” de desconsiderar uma norma constitucional cujo conteúdo é expresso, claro e objetivo.

Sobre os autores
Antônio César Mello

Advogado; Especialista em Direito e Estado pela Universidade do Vale do Rio Doce, Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Federal do Tocantins; Doutor em Direito pela PUC/MG e; Professor de Direito.

Marcos Vinícius Medrado Cardozo

Amante da Ciência Jurídica, apaixonado pela leitura. Residente em Palmas, Tocantins. Acadêmico do penúltimo período do curso de direito da Faculdade Católica do Tocantins.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho de conclusão de curso realizado sob a orientação do Profº. Doutor Antônio César Mello da Faculdade Católica do Tocantins que visa discutir até que ponto vai a presunção da inocência apregoada pela nossa Carta Magna frente à pena de prisão.

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