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Responsabilidade civil das indústrias fumígenas sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor

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Agenda 15/03/2005 às 00:00

Resumo: O presente artigo tem por objetivo demonstrar, sob uma visão focada no Código de Defesa do Consumidor, a possibilidade jurídica de se responsabilizar civilmente as indústrias do fumo pelos danos causados pelo consumo de seus produtos. Para tanto, parte-se de uma análise crítica de algumas posições jurisprudenciais que vêm prevalecendo no País acerca do tema.

Palavras-chave: Indústrias fumígenas – Consumidor – Cigarro – Tabagismo – Vícios do produto – Publicidades ilícitas – Licitude – Livre arbítrio – Informação.

SUMÁRIO

: 1. INTRÓITO. 2. A LICITUDE DA ATIVIDADE DAS INDÚSTRIAS DO FUMO COMO ÓBICE À SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL. 3. O VÍCIO DE CONCEPÇÃO DO CIGARRO. 4. O VÍCIO DE INFORMAÇÃO, A LIVRE ADESÃO DO CONSUMIDOR AO CONSUMO DE CIGARROS E SUA AUTODETERMINAÇÃO PARA ABDICAR-SE DO VÍCIO. 5. O SUPOSTO CONHECIMENTO DO CONSUMIDOR QUANTO AOS RISCOS PROVENIENTES DO CONSUMO DO CIGARRO. 6. CONCLUSÃO. 7. BIBLIOGRAFIA.

1. INTRÓITO

Recebi, com alegria, o convite que me foi formulado pelo Dr. Ademir Piccolli, diligente organizador deste grandioso evento, para proferir algumas palavras sobre o tema "Responsabilidade civil das fabricantes de cigarros".

Embora contagiado por grande satisfação, não posso negar que a preocupação, outrossim, atingiu-me profundamente. Isto porque, o tema ao qual me proponho hoje a expor é, ainda, novel no Direito brasileiro e, extremamente, polêmico. E a polêmica, como se sabe, nem sempre se apresenta como terreno sereno, tranqüilo ao expositor, porquanto exposto que fica ao público, sagaz por informações inovadoras e convincentes, arriscando-se, muitas vezes, a proferir dislates ou a transmitir mensagens pouco satisfatórias à inteligência dos ouvintes.

Mas arrisco-me com contento. Longe de articular um discurso antitabagista – que de modo algum cabe nesta ocasião –, irei ater-me a algumas questões estritamente técnicas atinentes ao tema, de forma tal a demonstrar a possibilidade jurídica de se responsabilizar civilmente as indústrias de cigarros pelos danos advindos do consumo do tabaco e, com isso, quiçá, trazer alguma contribuição para o meio jurídico.

Pois bem. Como o tempo é limitado, importante, para situar os senhores no contexto da minha exposição, perpetrar um prelúdio dos tópicos a serem, em seguida, abordados. Destarte, limitar-me-ei à análise de três únicas posições jurisprudenciais que vêm predominando no País a respeito da temática agora abordada – com as quais não concordo, adianto-me – para, através deste artifício, elucidar os motivos pelos quais acredito serem as indústrias do tabaco responsáveis pelos danos que seus produtos causam aos consumidores que deles fazem uso – ou a eles estão expostos.

Os pontos a serem criticados são:

a) a licitude da atividade das indústrias de fumo (produção e comercialização de produtos fumígenos) como óbice à sua responsabilização civil;

b) a livre adesão do consumidor ao consumo de cigarros e sua autodeterminação para abdicar-se do vício.

c) o suposto conhecimento do consumidor quanto aos riscos provenientes do consumo de cigarros.


2. A LICITUDE DA ATIVIDADE DAS INDÚSTRIAS DO FUMO COMO ÓBICE À SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL

Sem delongas, passemos à análise do primeiro tema, qual seja, a licitude da atividade da indústria de fumo (produção e comercialização de produtos fumígenos) como óbice à sua responsabilização civil. Noutras palavras, e transformando a assertiva numa indagação: a legitimidade da atividade exercida pelas indústrias do tabaco realmente constitui empecilho à responsabilização civil dessas poderosas empresas?

A jurisprudência, em sua maioria, vem adotando o entendimento de que sendo lícita a atividade das indústrias fumígenas não há se falar em indenização, haja vista que o dano que traduz a obrigação de reparar deve originar-se de um ato ilícito. [1]

Vejam, nesse sentido, um julgado da lavra do Tribunal de Alçada de Minas Gerais (Apelação Cível nº 360.841-5), decidido em 29 de maio de 2002. A Relatora, em seu substancioso voto, decidira na ocasião que "(...) é importante ressaltar que a atividade da apelada é lícita, sendo que as restrições à publicidade dos cigarros, têm sido observadas nos termos regulamentados pelo Ministério da Saúde." Comungando com o voto da ilustre Relatora, o Juiz revisor apôs seu entendimento: "(...) a responsabilidade dos fabricantes de cigarros em razão dos malefícios advindos com o consumo do produto, não pode por si só gerar a obrigação indenizatória, eis que o dano ensejador da indenização deve ter origem em um ato ilícito, o que não é o caso sub judice, visto que a atividade de fabrico de cigarros, trata-se de atividade lícita (...)". Por fim, o Juiz Vogal, também acompanhando o voto condutor, esclareceu: "Na verdade adiro ao voto da ilustre Relatora na consideração de que entendo que empresa que tem autorização plena e que está dentro dos princípios da legalidade, sem ferir qualquer norma de ordem pública, jamais pode ser responsabilizada por supostos males que venham a causar a terceiros, principalmente quando se trata de mera indústria que depende, até mesmo, para distribuição de seu produto, de pessoas que diretamente se relacionam com os consumidores. (...) Neste caso, sendo lícita a atividade, nenhuma responsabilidade lhe causa enquanto permanecer este estado de coisas." [2]

Mesmo considerando a origem deste acórdão, data maxima venia, ouso a discordar de tal posição. A aplicação do Direito no caso aludido, bem assim em vários outros atinentes ao tema, com todo respeito aos seus prolatores, foi feita mediante uma interpretação superficial, extremamente rasa. E, vale dizer, essa cognição pouco aprofundada – nascida, é bem verdade, da excelente qualidade dos trabalhos produzidos pelos procuradores que representam as indústrias do tabaco – gera, infelizmente, um verdadeiro efeito dominó nos Tribunais nacionais, porquanto esses entendimentos, agora imortalizados em sentenças ou acórdãos, servirão de paradigmas a outros casos semelhantes a serem, futuramente, julgados pelo Judiciário.

A meu sentir, uma análise pouco mais penetrante seria suficiente para arruinar a tese agasalhada pelo acórdão aludido. Vejamos, para ilustrar o que pretendo demonstrar, alguns exemplos:

a.) Todos nós presenciamos, por intermédio da mídia, em meados de 1999, um problema envolvendo uma grande fabricante de veículos, a General Motors. Essa empresa comercializou veículos da marca Corsa e Tigra com imperfeições nos cintos de segurança, que foram responsáveis pela morte de, ao menos, duas pessoas.

b.)Uma determinada consumidora do Estado de Minas Gerais adquiriu um botijão de gás junto à empresa Supergasbrás S/A. Ao conectá-lo em seu fogão, principiou-se dali um vazamento de gás, culminando num incêndio sem proporções em sua residência. Os danos foram diversos...

c.) Numa ação possivelmente sem precedentes no Judiciário brasileiro, uma consumidora, da cidade de Lajeado, recebeu indenização, por dano moral, da microempresa fabricante dos sutiãs Intimitá. A consumidora, após fazer ginástica numa academia, constatou que sua blusa estava manchada de sangue. Verificou, então, que seus mamilos estavam esfolados. Diante disso, procurou imediatamente atendimento médico, atestando-se que "o sangramento nos dois mamilos foi provocado por escoriações do atrito do sutiã, durante exercício físico". O acórdão da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, modificando a sentença de primeiro grau, reconheceu o defeito do produto, condenando a empresa ao pagamento de 30 (trinta) salários mínimos, com juros retroagindo à data do fato, além de honorários advocatícios arbitrados em 20% do valor da causa.

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Pois bem. Ninguém poderá negar existir permissão no País para se produzir e comercializar veículos. Outrossim, inexiste impedimento para se produzir e comercializar botijões de gás e sutiãs. Portanto, impõe-se reconhecer que referidas atividades – produção e comercialização de veículos, botijões de gás e sutiãs – são lícitas. Então é de se perguntar: essa legalidade das atividades retromencionadas eximiria aqueles que a exercem de indenizar consumidores lesados por acidentes de consumo provenientes dos produtos explorados? A resposta, obviamente, é negativa.

Ora, em sendo assim, a análise não haverá de ser feita, em casos tais, pelo exame da licitude ou ilicitude da atividade. A questão não é esta. [3]

O que importa, na verdade, é examinar as particularidades do produto colocado no mercado – análise essa que deverá ser efetivada tanto no plano interno como no externo. [4] Percebam: no primeiro exemplo, a obrigatoriedade de indenizar surge da deficiência existente nos cintos de segurança dos veículos produzidos. Já na segunda passagem, um vício [5] de fabricação – leia-se defeito – no botijão de gás foi o responsável pelo incêndio ocorrido. Na derradeira menção, uma incorreção num sutiã originou os danos no corpo da citada consumidora. As atividades são todas lícitas; já as imperfeições existentes nos produtos não são. Como se pode notar, isto está evidenciado na própria Seção II do Código de Defesa do Consumidor, intitulada de "Da Responsabilidade pelo fato do produto (...)". "Fato do produto" denota acidentes ocorridos com produtos, enfatiza o elemento material causador da responsabilidade. A presença do elemento ilicitude está subentendida na própria imperfeição do produto, isto é, na idéia de defeito.

Aliada a esta corrente, a precisa lição de Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, jurista e Desembargador deste maravilhoso Estado, contida em obra valorosa, recentemente publicada pela editora Saraiva, intitulada "Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor". Preleciona ele que na hipótese específica da "responsabilidade por acidentes de consumo, a ilicitude da atividade do fornecedor está contida no conceito de defeito do produto ou do serviço, uma vez que a prioridade é a reparação do prejuízo sofrido pelo consumidor." [6]

À vista disso, o artigo 8º da Lei 8.078/90 prevê, expressamente: "Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores (...)". Na mesma trilha sinalizam os artigos 12, 14, 18, 19 e 20 do Código de Defesa do Consumidor, ao evidenciar a antijuridicidade dos vícios e defeitos. Assim, a Lei consumerista criou para o fornecedor um dever de segurança, obrigação esta de não lançar, no mercado, produto inseguro. Se o lançar e sobrevier o acidente de consumo, por ele responderá independentemente de culpa. [7]

Pensar de outra forma seria quase dizer que o consumidor nunca seria indenizado por produtos defeituosos – desprezando-se, assim, à máxima constitucional da defesa do consumidor –, haja vista que as atividades exercidas pelos fornecedores no mercado de consumo são lícitas, muitas delas, inclusive, regulamentadas e, até mesmo, inspecionadas por órgãos governamentais.

Com o cigarro a situação é exatamente esta. Difícil negar que a atividade exercida pelas indústrias fumígenas seja lícita [8] – a própria Constituição Federal, num dispositivo inusitado, refere-se à publicidade do tabaco. [9] Entretanto, advogo a tese de que o cigarro apresenta-se como um produto imperfeito, sob o ponto de vista jurídico, ou seja, contém vícios, mais especificamente, os chamados vícios de concepção e de informação.

Logo, sendo o produto imperfeito, poderá gerar acidentes de consumo – caracterizando-se, então, os intitulados defeitos – e, conseqüentemente, acarretar danos, de toda espécie, àqueles que dele fazem uso. É neste ponto que se apresenta a fundamentação da responsabilidade civil das indústrias fumígenas. O artigo 12 da Lei consumerista prevê, expressamente, que o "fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos." No que se refere ao artigo 12, percebe-se, com certa facilidade, que o Código de Defesa do Consumidor não motiva a responsabilidade civil fundada no risco da atividade na própria atividade do fornecedor. O fato gerador de sua responsabilidade é o acidente de consumo, ou melhor, está naquele acontecimento externo, ocorrido no mundo físico, causador de dano material ou moral ao consumidor, decorrente de uma imperfeição do produto.


3. O VÍCIO DE CONCEPÇÃO DO CIGARRO

Falemos um pouco das imperfeições que reputo existentes no cigarro.

Os vícios de criação ou concepção resultam de erro no projeto do produto, como também da escolha de material inadequado ou componente orgânico ou inorgânico nocivo à saúde, não suficientemente testado. Essa tipologia ocorre na fase da execução do projeto ou da fórmula, comprometendo a integralidade da produção ou, ao menos, todos os produtos da mesma série. Mesmo as mais modernas técnicas de controle da qualidade dos produtos não evitam sua ocorrência e, por isso, essa modalidade de imperfeição costuma ser a mais temida pelos fabricantes que, de certo modo, aceitam o risco criado. [10]

É visível – embora estranho e questionável como dito a pouco – que a produção e comercialização de cigarros, no País, correspondem a condutas lícitas. Decerto, não é, tão-só, porque o produto causa lesões, enfermidades de toda sorte e, até mesmo, a morte de seus consumidores (ativos e passivos), [11] que se poderia tachá-lo de imperfeito. [12] Com efeito, e não negligenciando outras possíveis tipificações, o vício de concepção do cigarro ressalta-se pela presença de uma substância em sua composição: a nicotina.

Embora não exista no País nenhuma prova técnica de que ela provoca a dependência, os pareceres, relatórios e estudos são unânimes em caracterizá-la como um psicotrópico. [13]

Para se ter uma idéia, as indústrias do tabaco chegaram a afirmar que a nicotina teria função preponderantemente vinculada ao sabor do cigarro; sempre procuraram negar a relação da substância com o vício. [14] E não poderia ser diferente. Digo isso porque importar, exportar, preparar, produzir e fabricar no Brasil substância entorpecente ou qualquer outra que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar é crime, conforme prevê a Lei 6.368/76 – Lei de Tóxicos. [15]

Portanto, comprovando-se que a nicotina é uma substância psicotrópica, estar-se-á diante de conduta que beira o crime, bem como de um verdadeiro vício de concepção do cigarro, em consonância com o disposto no Código de Defesa do Consumidor. [16] Como evidentemente se nota, a prova de que essa substância motiva a dependência demonstrará que o consumo do cigarro é, na verdade, um comportamento involuntário, pelo menos na grande maioria das vezes. [17]

Esse raciocínio pode parecer, à primeira vista, estranho e equivocado. Afinal, se o cigarro é um produto lícito, ilação lógica seria a de que a nicotina também o é. Ocorre que o Estado não a reconhece como sendo um psicotrópico, ou seja, aquela substância capaz de provocar dependência física ou psíquica em seus usuários. Pela análise da Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, RDC nº 22, de 15 de fevereiro de 2001 (atualizada pela RDC nº 228, de 11/12/2001), que atualizou a lista das substâncias sujeitas a controle especial, percebe-se que a nicotina nunca esteve inserida no rol de substâncias psicotrópicas. [18] Ora, se não existe controle governamental pela Agência de Vigilância Sanitária [19] sobre determinada substância, conclui-se que ela, pelo menos aos olhos cômodos do Estado, [20] é incapaz de acarretar danos substanciais à comunidade. Cai a lanço notar que a nicotina é hoje uma substância lícita, comercializada por meio dos produtos fumígenos. No entanto, provando-se tratar ela de um psicotrópico, sua licitude estará prejudicada – e o vício de concepção estará evidenciado – em razão da impossibilidade legal de se produzir e comercializar no País substância que acarrete dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Atentem-se – e isso é importante – que se demonstrado ser a nicotina uma droga, evidenciar-se-á, outrossim, que o prazer gerado pelo cigarro, longe de ser natural, é claramente artificial. Embora a sensação de prazer seja verdadeira, a impressão de que o cigarro acalma, relaxa e funciona como estabilizador do humor é tão falsa como uma nota de R$ 3,00, como muito bem ressalta o jornalista Mario Cesar Carvalho. [21] Na verdade, a sensação de relaxamento ocorre porque a nicotina agiu sobre um mecanismo produzido por ela própria: o da dependência. Ao tragar um cigarro, o fumante acalma-se porque estava em crise de abstinência. A nicotina que ele consumira já havia se dissipado do organismo. Aí começaram os sintomas da falta da nicotina – uma ansiedade que parece irritação, nervosismo e incapacidade de concentrar-se. Quando se aspira o cigarro, a crise de abstinência é interrompida e tem-se a sensação de relaxamento. Em resumo, a nicotina não acalma nem estabiliza o humor. Ela só alivia os sintomas provocados por sua própria falta; é a cura para um mal que ela própria criou. [22]

A nicotina faz do consumidor um viciado. As indústrias do tabaco dela se utilizam para criar uma situação de dependência nos fumantes, cultivando em seus organismos uma necessidade química que os transformam em consumidores involuntários de cigarros. Necessitam eles – os fumantes – de alimentar, minutos após minutos, seus vícios, impedindo, através de cada tragada, a manifestação de uma desagradável crise de abstinência, sob o débil abrigo do prazer postiço criado pela nicotina.

Esse perigoso vício de concepção fere de morte a boa-fé que deve reinar nas relações de consumo, bem como golpeia desonestamente os direitos basilares do consumidor brasileiro, servindo-se como um expediente enganoso para fecundar a dependência nos não fumantes e nutri-la naqueles já consumidos pela nicotina, tudo com o objetivo único de expandir o influente e quase irrefreável império das indústrias de fumo.


4. O VÍCIO DE INFORMAÇÃO, A LIVRE ADESÃO DO CONSUMIDOR AO CONSUMO DE CIGARROS E A SUA AUTODETERMINAÇÃO PARA ABDICAR-SE DO VÍCIO

Falemos agora a respeito da outra imperfeição que vislumbro existir no cigarro: o chamado vício de informação. Nesse momento, é preciso que se diga, inicio-me na abordagem das duas últimas proposições com as quais me compromissei no preâmbulo dessa exposição, quais sejam: a livre adesão do consumidor ao consumo de cigarros e sua autodeterminação para abdicar-se do vício; e, finalmente, o seu suposto conhecimento quanto aos riscos provenientes do consumo de cigarros.

Ganhou a informação, com a publicação do Código de Defesa do Consumidor, contornos peculiares.

Foi ela erigida à categoria de princípio fundamental do microssistema das relações de consumo (art. 4º, IV), integrando, ainda, o rol dos direitos basilares do consumidor (art. 6º, III). Desse início já se percebe que a informação está incorporada à própria essência da Lei 8.078/90; integra sua própria ossatura.

Outra característica inerente à informação, em situações que envolvam relações de consumo, é a sua inevitabilidade. Não cabe ao fornecedor decidir se deve ou não exibir instruções a respeito dos produtos que coloca no mercado; a faculdade não reside aqui. Deverá ele, o fornecedor, apresentar, obrigatoriamente, as informações sobre a utilização do produto e seus eventuais riscos. Sua ampla liberdade de agir foi, expressamente, revogada com o nascimento do Código de Defesa do Consumidor, lei essa caracterizada pelo legislador pátrio como de ordem pública e interesse social e, portanto, de forçosa observância e respeito por aqueles que se propõem a abastecer o mercado de consumo.

Percebam, ainda, que o texto normativo, ao se referir à informação, é abundante em adjetivos: adequada, clara, precisa, correta, ostensiva. Tais atributos, longe de evidenciar a riqueza de linguagem de nosso legislador, têm por função indicar a preponderância de outra característica da informação: a sua socialização. Não basta, pois, apenas informar; a informação precisa ser socialmente eficaz. Isto é, a informação sobre a natureza, a utilização e os riscos de determinado produto deverá, fatalmente, atingir o público alvo ao qual ele, o produto, é destinado, de forma tal que o consumidor seja legitimamente instruído, sem engodos, sem ilusões.

Ademais, o dever de informação está, umbilicalmente, ligado à cláusula geral da boa-fé objetiva que permeia todo o Código de Defesa do Consumidor. Boa-fé é cooperação, lealdade e respeito; é um referencial objetivo de conduta que o homem médio adotaria em determinadas situações. Resguardar a boa-fé significa proteger os contratantes de artimanhas e subterfúgios. [23]

Com efeito, foi em razão dessa extraordinária – e imprescindível, diga-se – tutela dada à informação, que o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 12, prescreveu que o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência da culpa, pela reparação de danos causados aos consumidores por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. A leitura deste texto normativo evidencia o que se denominou na doutrina de vício de informação. Tal imperfeição relaciona-se à qualidade da informação veiculada pelo fornecedor, essa que, por ter sido prestada de maneira ineficiente ou inadequada – ou mesmo por não ter sido prestada – acabou por acarretar um acidente de consumo. Novamente se observa o que me referi anteriormente: pouco importa a licitude da atividade exercida pelo fornecedor na análise do dever de responsabilização civil em situações atinentes às relações de consumo. A problemática da ilicitude reside no próprio produto, seja através de características intrínsecas a ele – como o já abordado vício de concepção –, seja, ainda, por atributos extrínsecos, referentes ao aspecto formal do mesmo produto.

Diante dessa "radiografia" da informação e de sua importância para o Direito das Relações de Consumo, poderemos principiar algumas considerações atinentes ao que me dispus a criticar nesta ocasião. Indago-lhes, então: pode-se enunciar, realmente, que o consumidor brasileiro é livre para fazer escolhas de consumo no que se refere aos produtos fumígenos, notadamente aos cigarros?

Justificar o consumo de cigarros através da singela afirmação de que o fumante "fuma porque quer", de que teria ele "livre arbítrio", é analisar o problema à margem das situações que o envolvem; é negligenciar a questão através da admissão de uma premissa extremamente superficial, frágil e falha.

Como aceitar que o consumidor escolheu livremente consumir cigarros se ele – ou ao menos a grande maioria deles – não tem conhecimento aprofundado da natureza do produto e dos riscos que ele encerra? [24] Adiante se verá, e citarei inclusive alguns exemplos, que a queima do cigarro produz mais de 4.000 (quatro mil) substâncias tóxicas que, certamente, o consumidor médio jamais imaginaria existir no produto que consome diariamente.

Ademais, toda a publicidade insidiosa já veiculada pelas indústrias do fumo, com o objetivo único de estimular a venda dos cigarros, incitou dúvidas no subconsciente do consumidor, induzindo-o a subestimar os malefícios do produto. É importante recordar que, em tempos não muito remotos, quando as peças publicitárias veiculadas pelas fornecedoras de tabaco não sofriam as restrições hoje existentes, toda a publicidade tinha como atores homens e mulheres elegantes e viris que, literalmente, esbanjavam saúde, beleza e sensualidade; essa espécie de marketing não tinha o condão de informar, mas, sim, de enganar o consumidor, já que vinculava o hábito de fumar a prática de esportes radicais, a aventuras, ao sucesso profissional, ao lazer e, até mesmo, ao requinte. [25] Como falar em "livre arbítrio" se, muitas vezes, o consumidor acabou, literalmente, induzido ou seduzido a adquirir um maço de cigarros? O "livre" arbítrio dos consumidores foi, pois, altamente influenciado por publicidades que, além de sugerir, persuadiam o consumidor ao uso do fumo. [26]

Não se pode negar, entretanto, existirem determinadas pessoas que realmente conhecem, com profundidade, os males causados pelo cigarro e, mesmo assim, mantêm o seu consumo, a exemplo de diversos médicos tabagistas. Surgindo ação judicial promovida por tais indivíduos, caberá às indústrias fumígenas, objetivando a exclusão de sua responsabilidade, demonstrar que aquele fumante conhecia, quando optou por iniciar-se no tabagismo, os riscos aos quais iria se sujeitar. Obtendo sucesso nessa prova, a fornecedora de cigarros comprovará que o acidente de consumo ocorreu por culpa exclusiva do consumidor e, por conseqüência, acabará isentada de indenizar; mas esses casos serão, a meu ver, extremamente raros. De qualquer forma, deve-se sempre ter em mente a premissa elementar de que cada caso é único e, em razão disso, deverá ser analisado de acordo com suas particularidades.

Quanto à afirmação exarada em algumas decisões no sentido de que a abdicação do vício pelo fumo dependeria, apenas, de uma decisão do próprio fumante ou da sua autodeterminação, data venia, tal assertiva representa mera conjetura, a margem de qualquer embasamento técnico-científico. E digo isso porque as estatísticas demonstram exatamente o contrário: 80% dos que tentam abandonar o vício fracassam na empreitada. Essa realidade é bem explicada pela ciência. Vejam: após uma tragada, a nicotina demora, normalmente, nove segundos para chegar ao cérebro, tempo recorde quando comparado ao de outras drogas. "No cérebro, a nicotina imita a ação de um neurotransmissor chamado acetilcolina, cuja função é fazer a comunicação entre os neurônios. Ao encaixar-se nos receptores de acetilcolina, a nicotina estimula essas células a produzir mais dopamina, um neurotransmissor ligado à sensação de prazer. É por isso que o cigarro é prazeroso. O aumento dos níveis de dopamina está associado a várias compulsões, por sexo, comida, jogos ou nicotina. Esse neurotransmissor age numa região do cérebro chamada mesolímbica, ligada ao prazer, à motivação e à gratificação. O mecanismo é extremamente complexo, mas seu princípio é simples: todos querem repetir experiências capazes de provocar prazer. Quem fuma um maço por dia verá esse circuito repetir-se 73 mil vezes por ano, estimando-se que cada cigarro seja consumido em dez tragadas. Que outra droga provoca 73 mil vezes a sensação de prazer num ano? Nenhuma. Por isso o cigarro causa dependência tão profunda." [27]

A revista Veja, em recente reportagem, divulgou algumas conclusões da primeira etapa de um estudo sobre o perfil dos fumantes que desejam largar o cigarro, trabalho este realizado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos. Depois de analisarem 32.000 (trinta e dois mil) homens e mulheres, os pesquisadores constataram que o sucesso dos tratamentos para o abandono do vício pelo fumo depende, dentre outros elementos, da condição social do fumante. Em resumo: os mais endinheirados têm mais facilidade de largar o cigarro, mormente porque a falta de recursos financeiros restringe o acesso aos tratamentos. Os custos, segundo a mesma reportagem, dependem do método escolhido (antidepressivos, chicletes, adesivos transdérmicos ou inaladores de nicotina), mas o gasto médio nos Estados Unidos é de 3 a 10 dólares mensais, em um processo que pode levar até um ano. [28]

Com efeito, não há como sustentar que a abdicação do vício pelo fumo dependeria, tão-só, da autodeterminação do fumante. A questão envolve situações outras que escapam à própria vontade do viciado, segundo afirmam os pesquisadores e estudiosos do assunto. São fatos provados cientificamente que, decerto, deveriam ser levados em consideração pelos julgadores na análise de casos envolvendo as situações ora discutidas, sob pena de se fazer tábula rasa das evidências rigorosamente reveladas pela ciência moderna.

Sobre o autor
Lúcio Delfino

advogado e consultor jurídico em Uberaba (MG), doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da UNIUBE/MG, membro do Conselho Fiscal (suplente) do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON), membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil, diretor da Revista Brasileira de Direito Processual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil das indústrias fumígenas sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 615, 15 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6441. Acesso em: 5 nov. 2024.

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