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Da existência de um totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

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Agenda 24/03/2018 às 15:40

3. Da afirmação histórica dos Direitos Humanos

Segundo a doutrina majoritária da Academia jurídica e das Relações Internacionais, pode-se dividir a história da consolidação dos Direitos Humanos em três fases ou gerações, sendo cada uma delas correspondente a um dos princípios da Revolução Francesa (Liberté, Egalité, Fraternité).

É então que iniciamos o segundo ponto de nossa análise histórica dos Direitos Humanos, deixando de lado a genealogia do universalismo jurídico, concebendo sua natureza jusnaturalista, subjetivista, pós-escolástica, como fenômeno único e exclusivo da Europa ocidental, para adentrar ao mérito dos Direitos Humanos em matéria jurídico-política concreta, afirmada na Modernidade.

Para isto, tome-se de partida que a ideia de correspondência entre os períodos históricos dos direitos humanos e os princípios idealistas franceses surge com Karel Vasak, renomado jurista tcheco-francês, que, inspirado no legado do grande marco civilizacional da história recente da Modernidade – o mar de sangue da Revolução na França -, empenhou-se num estudo a respeito de tal conexão entre o conteúdo dos direitos reivindicados como naturais e universais em cada época da humanidade e aqueles bradados pelos revolucionários franceses, que deram início a uma nova era na história humana.

Vasak, então, corresponde o que chama de direitos humanos de primeira geração com o jargão revolucionário da liberdade, implicando, desta forma, que os primeiros direitos naturais universais reivindicados seriam aqueles relacionados à emancipação do indivíduo para com o Estado. Nada mais coerente que assim seja, visto que seriam, desde uma ótica liberal, os efeitos do desrespeito a estes direitos os de impacto mais perceptível para todos os homens, visto que tal questão implica diretamente na vida privada.

Assim, os direitos de primeira geração corresponderiam àqueles civis e políticos, que representariam maior independência do indivíduo em relação ao Estado, que passa a ter sua atuação geral e seu poder de interferência na vida privada limitados em favor do arbítrio do indivíduo, que passa então a ser um ente constituído pela primeira vez na história, manifestado na máscara do cidadão. Como se é de supor e dispensa notas adicionais, as Revoluções Americana e Francesa são os eventos que marcam a reivindicação e a afirmação destes direitos, que são consolidados na forma da Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen, em 1789.

A Declaração Universal, que é, sem dúvidas, o maior legado da Revolução Francesa, traz ao mundo uma nova realidade, o florescimento de uma nova ordem mundial, onde todos os homens nascem livres e iguais em direitos, com a faculdade natural e irrevogável de resistir à tirania (Arts. 1. e 2 da Declaração). Ora, resta mais do que evidente o resultado previsto ao longo de séculos de construção do mito do indivíduo. Os direitos dos homens são expressos, em definitivo, como uma carta ao indivíduo.

Em Zur Judenfrage, Marx discorre, destoando do tema central do ensaio – a emancipação política dos judeus na Prússia -, a respeito da natureza individualista dos direitos do homem, escreve:

"Por que é que ao membro da sociedade civil lhe chamam 'homem', simplesmente homem, e por que é que os seus direitos recebem o nome de 'direitos do homem'? Como se explicará semelhante facto? Pela relação entre o Estado político e a sociedade civil, pela natureza da emancipação política. Constatemos, em primeiro lugar, o facto de que os chamados direitos do homem, enquanto distintos dos direitos do cidadão, constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil, isto é, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade. A constituição mais radical, de 1793, declara: 'Art. 2. Estes direitos, etc. [os direitos naturais e imprescritíveis] são: igualdade, liberdade, segurança, propriedade.' Em que é que consiste a liberdade? Artigo 6: 'A liberdade é o poder que o homem tem de fazer tudo o que não prejudique os direitos dos outros', ou segundo a Declaração dos Direitos do Homem de 1791: 'A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique outrem.' Por conseguinte, a liberdade é o direito de fazer tudo o que não cause dano aos outros. Os limites dentro dos quais cada um pode actuar sem prejudicar os outros são determinados pela lei, tal como a fronteira entre dois campos é assinalada por uma estaca. Trata-se da liberdade do homem enquanto mónada isolada, retirado para o interior de si mesmo. (...) a liberdade como direito do homem não se funda nas relações entre homem e homem, mas antes na separação do homem a respeito do homem. É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo. A aplicação prática do direito humano de liberdade é o direito da propriedade privada. Em que consiste o direito da propriedade privada? Artigo 16 (Constituição de 1793): 'O direito da propriedade é o que pertence a cada cidadão de desfrutar e de dispor como quiser dos seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e diligência.' O direito humano da propriedade privada é, portanto, o direito de fruir da própria fortuna e de dela dispor como se quiser, sem atenção aos outros homens, independentemente da sociedade. É o direito do interesse pessoal. Esta liberdade individual e a respectiva aplicação formam a base da sociedade civil. Leva cada homem a ver nos outros homens, não a realização, mas a limitação da sua própria liberdade. (...) Nenhum dos supostos direitos do homem vai além do homem egoísta, do homem enquanto membro da sociedade civil; quer dizer, enquanto indivíduo separado da comunidade, confinado a si próprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal. O homem está longe de, nos direitos do homem, ser considerado como um ser genérico; pelo contrário, a própria vida genérica – a sociedade – surge como sistema externo ao indivíduo, como limitação da sua independência original. O único laço que os une é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a preservação da sua propriedade e das suas pessoas egoístas.” (MARX, 1844.)

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Marx, percebe-se, é um dos primeiros autores a denunciar o teor individualista dos Direitos do Homem. Pode-se falar, portanto, em uma primeira geração de Direitos Humanos como o desfecho histórico de um longo processo de afirmação do indivíduo como centro das relações humanas, quando o mesmo, atomizado, isolado de suas conexões comunitárias e laços de qualquer natureza, passa a evocar o reconhecimento de seu estado de autonomia para com o cosmos por meio de uma positivação de seu estado jurídico, passando a adquirir o que no entendimento moderno se chama de liberdade.

Pois bem, nenhum prosseguimento histórico da afirmação dos direitos individuais de liberdade poderia ser mais perfeito do que aquele correspondente à sua própria ampliação. E este é o mérito dos chamados direitos coletivos, que passam a tomar forma com a segunda geração de Direitos Humanos, os chamados direitos de igualdade, equivalentes ao segundo princípio revolucionário francês, que vem a ser objeto de reivindicações no contexto europeu do pós-Primeira Grande Guerra, onde nações inteiras, arrasadas pelos efeitos devastadores dos combates, se viram diante de um grave dilema no tocante às condições de vida das populações. É então que, de modo geral, surgem preocupações com o bem-estar social dos indivíduos, agora já agrupados em outra dimensão e visto desde uma nova perspectiva, a dos coletivos.

Se de uma perspectiva tradicional, há uma relação orgânica pessoa-comunidade, na Modernidade pós-escolástica esta relação é transposta para a artificialidade inorgânica manufatureira e racional-tecnicista entre indivíduo-coletivo, que se torna a premissa de todo o ideário liberal e universalista.

Para ilustrar o tema podemos recorrer ao maior escritor da Escola Tradicionalista, o italiano Julius Evola, que enuncia:

“The beginning of the disintegration of the traditional sociopolitical structures, or at least whatever was left of them in Europe, occurred through liberalism. Following the stormy and demonic period of the French Revolution, the principles espoused by the Revolution first began to act under the guise of liberalism; thus, liberalism is the origin of the various interconnected forms of global subversion.

It is therefore necessary to expose the errors on which this ideology is based and especially those of the ‘immortal principles’ by which it is inspired. This is necessary not only from a doctrinal point of view, but also from a practical one. Nowadays the intellectual confusion has reached such an extent that liberalism, which according to ancient regimes and the Church was synonymous with antitradition and revolution, is portrayed by some as a "right-wing" movement, bent on protecting human dignity, rights, and freedom against Marxism and totalitarianism. The following considerations are aimed at exposing this misconception.

The essence of liberalism is individualism. The basis of its error is to mistake the notion of the person with that of the individual and to claim for the latter, unconditionally and according to egalitarian premises, some values that should rather be attributed solely to the former, and then only conditionally. Because of this transposition, these values are transformed into errors, or into something absurd and harmful.

(…)

Conversely, to posit inequality means to transcend quantity and admit quality. It is here that the two notions of the individual and the person are differentiated. The individual may be conceived only as an atomic unit, or as a mere number in the reign of quantity; in absolute terms, it is a mere fiction and an abstraction. And yet it is possible to lean toward this solution, namely to minimize the differences characterizing the individual being, emphasizing mixed and uniform qualities (what ensues from this, through massification and standardization, is a uniformity of paths, rights, and freedoms) and conceiving this as an ideal and desirable condition. However, this means to degrade and to alter the course of nature.

For all practical purposes, the pure individual belongs to the inorganic rather than to the organic dimension. In reality, the law of progressive differentiation rules supreme. In virtue of this law, the lower degrees of reality are differentiated from the higher ones because in the lower degrees a whole can be broken down into many parts, all of which retain the same quality (as in the case of the parts of a noncrystallized mineral, or those parts of some plants and animals that reproduce themselves by parthenogenesis); in the higher degrees of reality this is no longer possible, as there is a higher organic unity in them that does not allow itself to be split without being compromised and without its parts entirely losing the quality, meaning, and function they had in it. Therefore the atomic, unrestricted (solutus), "free" individual is under the aegis of inorganic matter, and belongs, analogically, to the lowest degrees of reality.

An equality may exist on the plane of a mere social aggregate or of a primordial, almost animal-like promiscuity; moreover, it may be recognized wherever we consider not the individual but the overall dimension; not the person but the species; not the "form" but "matter" (in the Aristotelian sense of these two terms). I will not deny that there are in human beings some aspects under which they are approximately equal, and yet these aspects, in every normal and traditional view, represent not the "plus" but the "minus"; in other words, they correspond to the lowest degree of reality, and to that which is least interesting in every being. Again, these aspects fall into an order that is not yet that of "form," or of personality, in the proper sense. To value these aspects and to emphasize them as those that truly matter is the same as regarding as paramount the bronze found in many statues, rather than seeing each one as the expression of distinct ideas, to which bronze (in our case, the generic human quality) has supplied the working matter.

These references clarify what is truly a person and personal value, as opposed to the mere individual and the mere element belonging to a mass or to a social agglomerate. The person is an individual who is differentiated through his qualities, endowed with his own face, his proper nature, and a series of attributes that make him who he is and distinguish him from all others—in other words, attributes that make him fundamentally unequal. The person is a man in whom the general characteristics (beginning with that very general characteristic of being human, to that of belonging to a given race, nation, gender, and social group) assume a differentiated form of expression by articulating and variously individuating themselves.” (EVOLA, 1953)

Para os tradicionalistas na linha de Evola, o indivíduo adquire uma percepção histórica semelhante àquela anteriormente admitida por Marx, com um ponto crucial de divergência, a imutabilidade de pensamento quanto ao indivíduo em Marx. Diz-se isto, pois Marx não desconsiderou o liberalismo em suas objeções, senão que, pelo contrário, englobou em um ainda maior arcabouço teórico a ideia de indivíduo, transmutando-a para a noção do coletivo, que nada mais é do que a pluralização do indivíduo, que passa, em Marx, a assumir um papel diferenciado daquele que lhe foi anteriormente atribuído por Adam Smith em su’A riqueza das nações, se convertendo na classe.

Na Klassenkampf marxista – posteriormente também aceita por fascistas e tradicionalistas, sob determinadas circunstâncias – o indivíduo é entendido como o átomo componente de duas classes – burguesia e proletariado -, cujas relações entre si regem o curso histórico e são a locomotiva das interações humanas.

Os tradicionalistas não criticam a ideia de luta de classes, considerando-a inclusive como o motor propulsor de alguns dos principais eventos da história recente da humanidade, a incluir a Revolução Russa de 1917, que para Evola é o estopim de uma nova era na humanidade, marcada pela explosão dos governos de massas, como se pode ver com o alastramento por todo o mundo de regimes comunistas, fascistas, social-democratas, populistas e inclusive o Estado de bem-estar social das potências ocidentais. Todo o fenômeno revolucionário de massas do Século XX é o resultado, para marxistas, fascistas e tradicionalistas, do conflito de interesses presente nas relações de classe do capitalismo.

O impasse em que incorre a análise marxista, contudo, é o mesmo que este estudo se empenha em analisar desde sua introdução, o universalismo, que em sua máscara liberal evoca a necessidade de uma sociedade universal de indivíduos livres com direitos políticos e sociais (primeira e segunda gerações) reconhecidos e postos em prática, dado que o indivíduo é o grande epicentro das interações humanas, definindo a forma como o homem se relaciona com os outros, com o meio e com o cosmos, ao passo que no marxismo é evocada uma análise histórica global e atemporal, onde a luta de classes é imposta como objeto central das relações humanas em todas as eras, mesmo aquelas em que figuras como o Sagrado preenchiam o posto máximo da vida pública, não existindo ainda relações de trabalho configuradas em conformidade com seu estado moderno, ou, em outras palavras, exorta a um universalismo da classe, do coletivo, ou, em termos deste estudo, do somatório de indivíduos atomizados sob o contexto da exploração do homem pelo homem.

A ideia coletivista, contudo, não se encontra exclusivamente contida na consolidação da segunda geração dos Direitos Humanos, havendo um prosseguimento de sua afirmação com o desfecho daquela que ficou conhecida como a terceira geração dos direitos universais, que vem a surgir com o advento das inovações burguesas ocidentais e os chamados direitos difusos.

A identificação destes direitos, surgidos num contexto ocidental de Guerra Fria, com o idealismo da fraternidade da Revolução Francesa não poderia ser mais adequada, dada a natureza liberal-burguesa destes direitos, que nada mais são do que o resultado jurídico-político de um contexto de globalização e consolidação global do modelo econômico capitalista. A indústria cultural, que está, por sua natureza, sob comando do monopólio político liberal, possui papel de grande importância nessa fase da humanidade surgida no contexto ocidental da Guerra Fria, quando surge, espontaneamente ou não, um rol de preocupações globais quanto à preservação de direitos difusos, como o de convívio sadio com o meio-ambiente, o direito ao progresso e à livre iniciativa, todas marcas centrais de um mundo capitalista pré-globalizado.

Esta noção de nova geração dos direitos universais do homem, mais subjetiva e complexa do que as anteriores, vem a implicar em uma série de novas medidas internacionais visando a adaptação de todos os povos do mundo a uma nova realidade social e cultural, cuja origem, exclusivamente ocidental, frise-se, data de um contexto mundial polarizado, pós-Declaração das Nações Unidas, de temáticas tais, como a possibilidade de um hecatombe atômico e uma catástrofe natural decorrente da cada vez mais agressiva ação do capitalismo na corrida industrial e científica, assumiram papel central nos debates acadêmicos e políticos, criando um novo rol de conceitos universais – isto é, a partir do Ocidente para todo o mundo -, convertidos em tabus dogmáticos da nova ideologia liberal-democrática internacional.

Segundo um rol moderado de doutrinadores, há de se falar ainda em uma quarta geração de direitos, que englobaria pautas como a democracia e a pluralidade partidária. Porém, não se faz necessário qualquer aprofundamento neste mérito, uma vez que para a doutrina majoritária estes direitos de solidariedade estariam, em termos de Conjunto, sob a mesma classificação da Terceira Geração dos Direitos Humanos, constituindo nada mais que uma continuação das lutas travadas a partir dos anos 60, e não um movimento histórico à parte.

Todos estes conceitos doutrinários a respeito da consolidação histórica da ideologia moderna dos Direitos Humanos, na forma como conhecemos hoje, estão academicamente dispostos a uma grande série de contradições. Se se parte da lógica vasakiana rumo a uma tentativa de compreensão geral da substância jusnatural e universal dos direitos humanos, há o grande risco de se incorrer no impasse de sua formulação temporal. Isto é, pode-se questionar como uma lista de direitos universais, que, segundo a ideologia ocidental moderna, são comuns a todos os indivíduos em todos os cantos da Terra, pode ser simultaneamente o resultado de um longo processo histórico de lutas socais, políticas e inovações filosóficas e metafísicas de um pequeno punhado de nações na parte ocidental do globo. Em outras palavras, os mesmos direitos que existem desde uma data pré-eterna, sendo atemporais, são formulados de acordo com as mudanças ocorridas na história recente da humanidade. E para responder a esta questão, a única resposta possível entre os advogados do universalismo jurídico é a existência de um lento e gradativo processo de percepção racional dos direitos pré-concebidos, que, por obra do acaso, só foi possível no Ocidente.

A fragilidade desta teoria abre precedente a uma série de novos e mais complexos questionamentos, que vêm a surgir entre os doutrinadores da ciência jurídica bem como entre autores renomados de outras áreas do conhecimento, visto que a partir do momento em que esta dogmática passa a assumir proporções tais que englobam temáticas que excedem à própria competência do direito, as anotações de profissionais de outras ciências se tornam necessárias.

Pois, feitas as considerações acerca da construção histórica da concepção e do rol modernos de direitos humanos, passemos à análise crítica e às teses do presente estudo.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Lucas Leiroz. Da existência de um totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5379, 24 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64898. Acesso em: 23 dez. 2024.

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