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Da existência de um totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

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Agenda 24/03/2018 às 15:40

5 – Reflexões 70 anos após a Declaração

5.1 – Do status quo

Só pode haver um propósito na implementação dos Direitos Humanos, e do Direito Internacional como um todo, tal qual ela se dá atualmente: a manutenção do status quo liberal, impedindo movimentações de quaisquer países, governos e organizações em direção a uma postura soberana e desalinhada em totalidade aos propósitos ocidentais. As Nações Unidas, a CIJ e os organismos internacionais em geral agem única e exclusivamente com o intuito de manter um mundo globalizado sob o prisma epistemológico liberal ocidental. Se o governo de um país soberano tenta experimentar um regime não democrático ou democrático não liberal, é imediatamente expurgado dos círculos diplomáticos e comerciais internacionais. Se o governo de um país soberano molda sua economia em um sentido protecionista, protegendo sua indústria nacional das investidas estrangeiras em disputas desleais com países mais desenvolvidos, é prontamente criticado e sancionado pelas potências liberais, forçando a recuar em suas medidas em prol do livre-comércio internacional. Se um país soberano tenta adequar seu regime político e seu ordenamento jurídico com a cultura, as tradições e os credos locais, agindo em maior conformidade com a cosmovisão de seu povo, em detrimento da doutrina importada dos ocidentais, é também punido internacionalmente e acusado de violações aos direitos fundamentais e universais do homem.

De forma alguma, a jurisdição internacional e os Direitos Humanos agem em sentido de apaziguar as relações internacionais e promover a paz entre os povos. O real sentido dos atos das potências mundiais é unicamente, da mesma forma que fora outrora, conservar e alavancar seu poderio sobre as nações “inferiores”. Quando convêm às potências mundiais, acusações, algumas das quais arbitrárias, de violações aos Direitos Humanos são realizadas e medidas para conter tais supostas violações são tomadas prontamente. Quando a manutenção de tais violações é conveniente à conservação do status quo e quando as medidas de fins supostamente humanitários violam de forma semelhante os direitos básicos do homem, há o absoluto silêncio mundial. Isto pode ser compreendido com facilidade desde uma ótica schmittiana, como já enunciava o jurista alemão a respeito da relação amigo-inimigo - Freund-Feind-Unterscheidungen – (SCHMITT, 1932) como definição da política, o que também seria a base de seu constitucionalismo, onde a Carta Magna é mero instrumento da Vontade Soberana. Se na esfera política fronteiriça, demarcada pelos Estados Nacionais, existe uma instrumentalização das leis em favor do poder local, há também em curso uma dominação mundial por parte de um determinado grupo de países, que se valem, além de seu poderio militar, econômico e político, também de um aparato jurídico internacional.

As intervenções humanitárias são hoje uma reprodução fidedigna das guerras justas do passado. Cruzadas redivivas – e algumas das quais no mesmo solo. Se a doutrina de Direito Internacional, em toda sua estéril vagueza, se empenha em negar o teor racista da Corte Internacional e dos Direitos Humanos, a realidade prática, os casos concretos e os fatos correntes evidenciam justamente o oposto dos argumentos doutrinários, levando a uma literal interpretação do texto estatutário.

O que se pode concluir de tudo isto é que as potências mundialmente afirmadas com o desfecho daquilo que Eric Hobsbawm em A era dos extremos (HOBSBAWM, 1994) chamou de Guerra dos 30 Anos. O Tratado de Versalhes e a Sociedade das Nações prefiguraram Nuremberg e a ONU. E no pior dos cenários a história parece se repetir e prenunciar os mesmos eventos de um passado não muito distante. A Justiça Internacional foi em si pensada do Ocidente para o mundo, dos vencedores para os derrotados e dos ricos para os pobres. Se assim não for, deve-se questionar coisas um tanto triviais. Onde estavam, a exemplo, Harris the butcher, Winston Churchill e os comandantes do Bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki quando em Nuremberg se reuniram os justos do mundo em Corte para julgar e condenar os genocidas da Guerra das Guerras. Ou então, pode-se levantar a questão sobre a razão das centenas de militares e cientistas alemães acolhidos no Ocidente em troca de apoio e juramento à bandeira americana não terem sido de igual forma julgados por suas respectivas colaborações com os massacres. E, no plano bipolar da Guerra Fria, permanece sem resposta a indagação sobre a universalidade da Justiça Internacional para com os chefes dos bombardeios químicos dos EUA em solo vietnamita, que, mesmo sem sucesso efetivo para a campanha americana, arrasaram a vida de milhares de nativos e infertilizaram para a posteridade vastos hectares de terra viva; bem como para com os mentores da Operação Condor, que segue sendo tratada de forma rasa e insatisfatória, com um número aleatório de militares punidos com misericórdia exacerbada, enquanto os que estavam por trás dos próprios golpes militares seguem impunes; ou, como não se poderia deixar de mencionar, para com o Presidente George W. Bush, responsável por uma campanha genocida no Oriente Médio, que se arrasta até os dias de hoje, havendo culminado na execução sumária de líderes políticos como o Presidente do Iraque, Saddam Hussein, sob um único e já desmentido pretexto – as supostas armas de destruição em massa jamais encontradas.    

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5.2 – De uma alternativa ao estado vigente

Ao se tomar por verdade tudo o que foi até aqui enunciado no presente estudo, há ainda um último questionamento a se fazer. Como apontar saídas para o quadro vigente? De que formas, dentro das possibilidades presentes, pode-se reverter o cenário atual de modo a garantir melhorias gerais a todos os povos?

As respostas para tais indagações devem ser formuladas por partes, havendo antes de tudo uma questão central a ser solucionada em toda esta problemática: há alguma possibilidade de reversão deste quadro? Se se toma por base que os Direitos Humanos foram um advento ocidental – desconsiderando a dogmática implícita no arcabouço mítico-ideológico da teoria dos direitos universais -, sendo gradativamente desenvolvidos e positivados ao longo de séculos de revoluções que somente dizem respeito ao contexto ocidental, sendo formada uma Declaração “Universal” no Ocidente, por países ocidentais e somente com valores ocidentais, se relacionando com os demais povos e epistemologias por uma relação vertical de imposição e coerção, é de certa forma inviável pensar numa forma de reversão do atual estado das coisas sem uma mudança estrutural profunda.

Em linhas gerais, a violação dos Direitos Humanos - tanto por parte das “nações bárbaras”, que são alienígenas à axiologia ocidental, quanto por parte do Ocidente, em sua “missão civilizatória” e sua práxis interventora, pela qual viola direitos em nome dos direitos – faz parte da estrutura jurídico-política internacional, de modo que estes direitos, sendo adventos unilaterais do Ocidente, são elencados e defendidos de uma forma tal que são invariavelmente violados. Porém, o pior ponto de todo este quadro é que esta violação é justamente a locomotiva da máquina jurídica internacional. É através da violação de direitos por parte dos países pobres que os países ricos intervêm, fazem guerras “justas” e extraem lucros na eterna cruzada pelo respeito aos tais direitos que eles próprios impuseram aos violadores – e que eles próprios, como o Ente Soberano da sociedade global, detêm o arrogante privilégio da violação, adquirindo monopólio universal do uso da força.

Desta forma, soluções que fujam a mudanças radicais na estrutura global estão fadadas ao fracasso. Porém, tais mudanças estruturais não são de todo inviáveis, e é possível que, pelo atual andamento da geopolítica mundial, sejam forçadas a uma aceleração. Há uma nação “bárbara”, não ocidental, não falante de inglês e nada preocupada com os Direitos Humanos, assumindo o posto de maior potência mundial e de baluarte do capitalismo. Os EUA recuam em poderio de forma avassaladora, à medida em que suas campanhas fracassam sucessivamente em pontos estratégicos do planeta – Síria, Venezuela, Leste Europeu, Coreia – e uma nova guinada político-econômica no país com o começo da era Trump acaba por se tornar uma inesperada realidade.  Os EUA assumem uma postura mais isolacionista enquanto a China, nação alheia a tudo o que já surgiu no Ocidente, tende a cada vez mais ocupar o seu posto, ao passo que, simultaneamente, potências regionais resistem a algumas das mais agressivas investidas ocidentais e a Rússia, o gigante euroasiático e rival histórico de tudo o que já se produziu no Ocidente, depois dos primeiros anos pós-queda soviética, onde se esboçou um alinhamento com os EUA, agora ressurge com peso na balança geopolítica, equilibrando um cenário até então unipolar em direção à Multipolaridade.

Por este ângulo, pode-se pensar que, de forma análoga ao que ocorreu no passado, com a afirmação histórica dos Direitos Humanos tal como ela se deu, novos eventos de relevância notória para toda a humanidade podem vir a desencadear mudanças axiológicas e normativas e impulsionar uma revisão da estrutura jurídica internacional. Porém, se há de levar em conta também o outro horizonte hipotético do quadro vigente.

É questão de simples dialética da realidade, compreender como as sementes plantadas pelo Ocidente hoje gerarão frutos de efeitos proporcionais quando colhidos no futuro. Se Versalhes foi de tal forma humilhante para a Alemanha a ponto de cultivar um ódio coletivo de dimensões tamanhas que o mundo experimentou um dos episódios mais tristes da história da humanidade, com massacres e conflitos armados em escala generalizada, deve-se de pronto questionar os possíveis resultados de 70 anos de totalitarismo liberal em escala mundial, com todos os povos submetidos aos desígnios de uma pequena parcela da Terra. Os primeiros efeitos já estão sendo presenciados. Cada vez mais conflitos regionais eclodem em decorrência da ditadura mundial de Washington. De igual forma, cada vez mais partidos e candidatos com discursos radicais e firmemente opostos à retórica dos Direitos Humanos vêm ganhando força no mundo inteiro. O que daí decorrerá é uma questão de previsibilidade que foge ao escopo deste estudo, mas se há uma lição a ser tomada dos eventos pós-1945 até hoje é o fracasso em termos de tentativa de manter a paz mundial por parte dos organismos de defesa dos Direitos Humanos. Os referidos direitos jamais deixaram de ser violados e as guerras jamais deixaram de existir. Se haverá um novo conflito de escalas globais num futuro próximo, não cabe aqui dizer, mas afirmar que a ONU, tal qual a Sociedade das Nações, falhou por completo em seus desígnios aparentes – e isso significa dizer que vem cumprindo seus interesses reais –, é parte das constatações deste trabalho.


Considerações finais

Dado todo o exposto ao longo deste estudo, resta por concluir a veracidade da tese aqui defendida, que, por sua vez, se divide em três pontos fundamentais. O primeiro é o de que há, no seio da pós-modernidade, um totalitarismo pautado na ideologia liberal e imposto a partir do Ocidente para o resto do mundo. Este autoritarismo, contudo, não é algo novo ou recente, sendo apenas a reformulação de antigos costumes colonialistas e imperialistas, que outrora tiveram vez sob a máscara do cristianismo ocidental e do darwinismo social. O segundo ponto é o que a Teoria dos Direitos Humanos, da forma tal como foi formulada e declarada, não é senão um conjunto de adventos axiologicamente ocidentais, frutos das lutas sociais aqui desenvolvidas, e que se alicerça na concepção de indivíduo, que é uma inovação pós-escolástica, exclusivamente ocidental, que nada tem de universal ou em algum ponto semelhante com outras cosmovisões. E o terceiro ponto e mais fundamental é o de que hoje, 70 anos depois, pode-se constatar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de nada serviu para um combate efetivo às práticas desumanas e para a manutenção da paz mundial. 

A ONU prenuncia um fim semelhante ao de seu organismo antecessor, mas a história não se repete por mera obra do acaso. A violação dos direitos humanos faz parte da superestrutura da sociedade internacional, num ordenamento em que as normas são elaboradas de forma unilateral e de violação inevitável, legitimando intervenções igualmente unilaterais e coercitivas, que violam os Direitos Humanos em nome dos próprios Direitos Humanos.

Por fim, ressalte-se que, dado o atual estado das coisas, são cabíveis somente duas únicas vias de esperança: ou se assume que, muito embora todos os problemas com a teoria e a prática dos Direitos Humanos sejam verídicos, eles são hoje o último recurso restante para a humanidade com fins a um mundo mais justo e de maior paz entre os povos. Ou, numa via radicalmente contrária, se assume que a estrutura da sociedade internacional deve sofrer uma mudança de base, que reformule tudo o que até hoje se construiu em termos de jurisdição internacional e diplomacia, de modo a pensar uma forma de abranger um maior número de cosmovisões, englobando os demais povos do planeta que não estão dispostos a viver sob os ditames axiológicos ocidentais.

Há em curso no mundo um cenário de fortes convulsões geopolíticas, onde o domínio unipolar ocidental vem dando lugar a um mundo multipolar, onde potências regionais ganham cada vez mais força para competir no cenário internacional e defender seus interesses ante às grandes potências ocidentais. O cientista político russo Aleksandr Dugin, conhecido por sua Teoria do Mundo Multipolar (2012), enuncia: a luta contra o liberalismo (...) assume uma tonalidade antropológica – uma luta pelo Homem, em nome de tudo que faz o Homem ser um Homem: idioma, cultura, identidade, historicidade, tempo, liberdade e dignidade (DUGIN, 2018). Isto significa dizer que o liberalismo ocidental, sendo imposto a todos os povos de forma coercitiva pelo totalitarismo das Nações Unidas, é um aniquilador antropológico, supressor de culturas e acima de tudo um instituto político, econômico e juridicamente autoritário, que se faz prevalecer sobre todos os povos.

Para superar este impasse, é fundamental que ao menos se considere as possibilidades de uma reformulação jurídica internacional através de uma reconfiguração geopolítica. Por certo, democracia, liberdade individual e propriedade privada são direitos dificílimos de se universalizar para todos os povos. Mas é possível que se pense em um mundo com alimentação sadia, educação básica e tradicional, que atenda às necessidades comunitárias locais – isto inclui a via oral –, e onde todos os povos tenham direito à autodeterminação no pleno sentido do termo.

De outra forma, pensar em caminhos contrários a uma reordenação internacional é caminhar na direção em que já caminha todo o mundo desde a instauração do totalitarismo liberal das Nações Unidas: o caminho para a absolvição histórica dos opressores, para o aprofundamento do abismo entre países ricos e pobres e para o renascimento de uma onda política autoritária que manchará os solos da terra com sangue inocente.


Referências bibliográficas

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Abstract: This article’s objective is to investigate the evidences of the existence of a modern totalitarianism, based on the political liberalism and on the dogmatic theory of the Human Rights. 70 years after the Universal Declaration of the Human Rights, the violations to the same rights are apparently part of the international society. The origins of this problem and its possible solutions will be demonstrated here.

Keywords: Human Rights – Liberalism – International Law – International Relations – Geopolitics

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Lucas Leiroz. Da existência de um totalitarismo liberal-humanitário após 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5379, 24 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64898. Acesso em: 5 nov. 2024.

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