I. Introdução
O art. 5º, VI, da CF/88, prevê como direito/garantia fundamental a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. De outro giro, o art. 225, § 1º, VII, prescreve que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cabendo ao poder público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade [1]. Da conjugação desses dois comandos de envergadura constitucional, emerge o seguinte problema: na tensão entre os direitos de liberdade de crença/culto e da proteção à fauna, qual deve prevalecer no caso de abate de animais para fins religiosos?
II. O sacrifício de animais e humanos nas diversas crenças religiosas ao longo da história
Um dos sacrifícios religiosos mais famosos de que se tem notícia, embora não consumado, está fossilizado no capítulo 22 do livro bíblico de Gênesis [2]. Trata-se da oferenda que Abraão fez de seu filho Isaque num monte da região de Moriá, que segundo a professora Júlia Blum [3] ocorreu por volta de 1811 AC. A esse evento, a professora Karen Armstrong [4] deu a qualificação de uma “exigência horripilante”, enquanto o professor Franz Hinkelammert [5] comentou que "é a história de um assassinato, mas, curiosamente, um assassinato que não ocorreu".
De acordo com o filósofo francês Félicien Challaye [6], o sacrifício de animais existia em quase todas as culturas na idade antiga, fazendo-se presente entre os hebreus, gregos e romanos. No islamismo, que segundo Abul Hassan Annaduy [7] nasceu a partir de 600 DC com o profeta Maomé, o sacrifício de animais chama-se Qurban ou Udhiyah: o ritual está previsto no Alcorão 2:196 [8] e acontece durante uma festividade denominada Festa do Sacrifício, que dura quatro dias e ocorre após a peregrinação à Meca, setenta dias após o Ramadã. De acordo com Pete Seda [9], a festa homenageia o profeta Ibraim que, segundo a crença, sacrificou seu filho Ismail como forma de obediência a Deus. Segundo o autor, a festa do sacrifício não tem como finalidade o derramamento de sangue ou ferimentos ao animal, mas a doação aos menos afortunados.
O professor Laerte Fernando Levai [10] acrescenta que no islamismo, para além dos rituais envolvendo abate de animais, há um ritual respeitoso até no abate para consumo, usando-se jugulação cruenta: depois de conter o boi, faz-se uma incisão transversal no pescoço enquanto o ritual sagrado, com a cabeça do animal voltada para Meca e oração a Alá, é cumprido, conforme os milenares preceitos do Corão.
No judaísmo, que segundo o professor alemão Georg Fohrer [11] é a primeira religião monoteísta da história e se desenvolveu a partir das tribos nômades israelitas 3000 AC, sempre se praticou o sacrifício de animais em rituais que recebem o nome de Korban, Kaparot e método Kasher de abatimento. Para o autor francês Charles Szlakmann [12], os judeus acreditam que o sacrifício é necessário para se ter uma interação maior com Deus e por isso se pratica o sacrifício até os dias atuais.
Também são famosos os rituais astecas de sacrifícios humanos em nome da fé, antes de os espanhóis conquistarem o México entre 1519 e 1521. Miguel León Portilha [13] leciona que para os astecas, os corações e o sangue das vítimas eram mais que desejados pelos seus deuses, sendo altamente necessários, pois acreditavam ser o povo escolhido do deus sol, então reencenavam o sacrifício original para que seu deus não morresse sem sangue novo. O professor Buddy Levy [14] relata que naquele cenário de invasão, violência e conquista, o capitão Hernan Cortez e seus homens tentavam convertê-los ao catolicismo e seus mandamentos para que abandonassem o sacrifício humano e deixassem de adorar seus ídolos, prometendo que "se abandonassem suas crenças e seguissem a crença em um só Deus, tornar-se-iam vassalos da Espanha e receberiam também outros benefícios como, por exemplo, a vida eterna”.
Os maias tocavam pela mesma partitura, pois de acordo com o professor Robert Somerville [15] todo evento relevante, do nascimento à morte, da semeadura ou colheita do milho à ascensão de um rei, requeria uma oferenda de sangue. Segundo o autor, mais que um ato simbólico, essa oferenda servia para que os humanos dedicassem aos deuses seu mais valioso dom.
Do que se colheu nessa pequena digressão histórica em tema tão sensível como sói ser a religiosidade, pode-se perceber que a prática ancestral de sacrifícios animais e até humanos em rituais religiosos de diversas crenças é fato tão comprovado quanto o movimento da Terra ao redor do Sol. Pelo histórico dos sacrifícios de vidas catalogado acima, facilmente se conclui que não se está diante de prática novidadeira, mas de tradição cuja ancianidade levou à consolidação, tanto que não se desenvolve apenas nos cultos de matriz africana, senão também entre judeus, muçulmanos, e outras crenças não alcançadas nesta pesquisa.
III. Legislação sobre o abate de animais para fins religiosos.
O comando maior sobre o tema está emoldurado no art. 225, § 1º, VII, da CF/88, cujo teor está plasmado na introdução deste artigo, dispensando repetição para evitar-se a tautologia. Do que indica essa bússola constitucional, apenas a questão da crueldade nos sacrifícios precisa ser analisada, porque nem no mais ousado voo da imaginação o abate de animais nos templos de matriz africana pode desequilibrar o meio ambiente ou provocar extinção de espécies. Isso porque, o etnólogo baiano Edison Carneiro [16] ensina que os animais utilizados nos sacrifícios variam de acordo com o orixá ou entidade que receberá a oferenda, tratando-se de animais comuns, utilizados no consumo humano, como galinhas, galos, codornas, bois, porcos, patos, bodes e cabras. Ainda segundo o baiano, esses animais não são utilizados apenas na oferta aos deuses, mas também como alimento dos religiosos onde ocorre o sacrifício, porque somente algumas partes do animal são oferecidas, e o que sobra alimenta os fiéis.
Em escala infraconstitucional federal, o primeiro regramento legal que aborda o trato dos animais é a Lei nº 10.406/2002, o Código Civil Brasileiro [17], que atualmente reconhece apenas duas categorias jurídicas: pessoas e coisas, logo, os animais classificam-se como coisas. Entretanto, essa realidade tende a ser cambiada com o Projeto de Lei nº 6.799/2013 [18], que no dia 11/4/2018 teve sua redação aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados - CCJC e como a proposta foi analisada em caráter conclusivo, considera-se aprovada na Câmara e repousa no Senado Federal para apreciação.
De acordo com o § 2º do PL, seus objetivos fundamentais são: I. Afirmação dos direitos dos animais e sua respectiva proteção; II. Construção de uma sociedade mais consciente e solidária; III. Reconhecimento de que os animais possuem personalidade própria oriunda de sua natureza biológica e emocional, sendo seres sensíveis e capazes de sofrimento. Por isso, pretende-se incluir um parágrafo único ao art. 82 do Código Civil, que passará a vigorar com a seguinte redação: Art.82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica aos animais domésticos e silvestres.
Pelo seu caráter inovador, pelo menos no Brasil, porque as Constituições Federais boliviana de 2009 [19] e equatoriana de 2008 [20] já reconheceram os direitos dos animais não humanos, vale destacar trecho da justificativa do PL:
A presente proposta visa tutelar os direitos dos animais, domésticos e silvestres, conferindo-os lhe novo regime jurídico, suis generis, que afasta o juízo legal de “coisificação” dos animais - que os classificam como meros bens móveis - , e prevê nova natureza jurídica que reconhece direitos significativos dos animais. Em análise ao tema, conclui-se que as normas vigentes que dispõem sobre os direitos dos animais incidem sob a ótica de genuína proteção ambiental, desconsiderando interesses próprios desses seres, de modo que o bem jurídico tutelado fica restrito à função ecológica. Com o fim de afastar a ideia utilitarista dos animais e com o objetivo de reconhecer que os animais são seres sencientes, que sentem dor, emoção, e que se diferem do ser humano apenas nos critérios de racionalidade e comunicação verbal, o Projeto em tela outorga classificação jurídica específica aos animais, que passam a ser sujeitos de direitos despersonificados.
No Brasil, a fauna e a flora são protegidas pela Lei nº 9.605, de 12/02/1998 [21], que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. O seu artigo 29 prevê que matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida é punível com pena de detenção de seis meses a um ano, e multa.
Já o art. 32 prescreve que praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos é punível com detenção, de três meses a um ano, e multa. Esses dispositivos dão margem à interpretação que o sacrifício de animais em rituais religiosos é crime, pois essa prática não figura entre as excludentes de ilicitude catalogadas no art. 37 da aludida Lei, que não considera crime o abate de animal quando realizado: I- em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família; II- para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente; III- por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente.
Na mesma raia, o art. 64 da Lei das contravenções penais, Decreto-Lei nº 3.688-41 [22], prevê pena de prisão simples de 10 dias a 1 mês ou multa para quem tratar animais com crueldade ou submetê-los a trabalho excessivo. Entretanto, parte dos estudiosos, como o professor e procurador de Justiça Ricardo Antônio Andreucci [23], entende que este comando legal foi revogado pelo mencionado art. 32 da Lei nº 9.605/1998, que passou a punir com detenção de 3 meses a 1 ano a conduta de quem praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.
Na esfera estadual, é útil visitar a Lei nº 10.470/1999 [24], de São Paulo, que no seu art. 1º prevê que é obrigatório em todos os matadouros, matadouros-frigoríficos e abatedouros, estabelecidos naquele Estado, o emprego de métodos científicos e modernos de insensibilização aplicados antes da sangria por instrumento de percussão mecânica, por processamento químico ("gás C02"), choque elétrico (eletronarcose), ou ainda por outros métodos modernos que impeçam o abate cruel de qualquer tipo de animal destinado ao consumo, com exceção dos abates regidos por preceitos religiosos (jugulação cruenta), direcionados ao consumo pelas comunidades a que se destinam, mediante solicitação dos matadouros, matadouros-frigoríficos ou abatedouros aos órgãos oficiais, sem prejuízo da observância ao que dispõem os artigos 6º, 7º e 8º da referida Lei. Portanto, é de se concluir que em São Paulo o abate de animais para fins religiosos está legalizado. (grifou-se)
Também em território estadual, o Legislativo gaúcho enfrenta questionamento sobre a roupagem que deu ao tema aqui agitado: a Lei nº 11.915/2003, Código Estadual de Proteção aos Animais no RS [25], prevê, no seu art. 2º, que é vedado: I. ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência; II. manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade; III. obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força; IV. não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo; V. exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal; VI. enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem; VII. sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde - OMS nos programas de profilaxia da raiva.
Como o dispositivo legal é integralmente voltado à proteção dos animais, deu margem a interpretações de que proibia o abate para fins religiosos, por isso o Legislador do extremo Sul publicou a Lei nº 12.131/2004 [26], que incluiu o § único àquele art. 2º da Lei nº 11.915/2003, nos seguintes teremos: "Parágrafo único - Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana". Assim, o Parlamento Farroupilha perfumou sua legislação com o bálsamo da liberdade religiosa, e o relator, deputado Edson Portilho, escorou sua justificativa no art. 5º, VI, da CF/88, ou seja, na proteção que o legislador constituinte conferiu à liberdade de crença e de culto. Em arremate, o deputado mencionou o art. 208 do Código Penal, que trata dos crimes contra o sentimento religioso. De acordo com o deputado, a redação original da Lei nº 11.915/2003 dava margem a interpretações “dúbias e inadequadas” que foram usadas indevidamente por setores da sociedade civil para denunciar ao poder público templos religiosos de matriz africana que, nos seus pontos de vista, maltratam os animais.
No seu Palácio Piratini, o Poder Executivo pampeano entrou em campo e regulamentou a Lei, por intermédio do Decreto nº 43.252, de 22 de julho de 2004 [27], que no seu art. 2º dispõe que "para o exercício de cultos religiosos, cuja liturgia provém de religiões de matriz africana, somente poderão ser utilizados animais destinados à alimentação humana, sem utilização de recursos de crueldade para a sua morte". Com isso, estava pacificado e legalizado o abate de animais nos cultos de matriz africana no RS, correto? Errado, porque os adversários dessa prática impetraram no Tribunal de Justiça gaúcho a declaração de inconstitucionalidade nº 70010129690 [28], visando a declarar inconstitucional aquele parágrafo único agregado ao artigo 2º da lei nº 11.915/2003, mas isso será abordado ao seu tempo, logo abaixo, no título das "Posições Jurisprudenciais".
Em escala infralegal, o abate de animais para fins religiosos está autorizado no item 11.3 da Instrução Normativa nº 3, de 17 de janeiro de 2000, do Ministério da Agricultura e do Abastecimento [29], com a seguinte caligrafia: É facultado o sacrifício de animais de acordo com preceitos religiosos, desde que sejam destinados ao consumo por comunidade religiosa que os requeira ou ao comércio internacional com países que façam essa exigência, sempre atendidos os métodos de contenção dos animais.
Do exposto, o que se há de ter como significativo é que toda a pirâmide normativa reserva espaço à questão aqui estudada, e desde a CF/88, passando pelas leis federais e estaduais, desaguando na Instrução Normativa ministerial, todas focam na proteção dos animais contra procedimentos cruéis. A CF/88 trata da proteção ecológica e busca proteger as espécies da extinção, mas como o sacrifício de animais em ritos religiosos não alcança esse patamar, também o foco constitucional nesse tema limita-se à evitar-se a crueldade.