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A autorização judicial para investigar pessoas com foro de prerrogativa de função e a posição do CNJ:

consequência jurídica da falta de autorização para abertura da investigação criminal

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Agenda 01/06/2018 às 12:00

Examina-se a possível necessidade de se exigir a controle pelo Poder Judiciário para instauração de inquéritos envolvendo autoridades com foro por prerrogativa de função.

Resumo: O foro por prerrogativa de função, instituto jurídico com previsão na Constituição da República, consiste na atribuição a determinadas pessoas, ocupantes de cargos públicos de elevada envergadura, de processo e julgamento criminal realizado por Tribunais, com o objetivo preservar a imparcialidade necessária para a correta aplicação da lei. Todavia, tendo em vista a ausência de normas regulamentares sobre a matéria, uma vez que a Carta Magna e as Constituições Estaduais apenas apontam quais são os Tribunais competentes para julgar determinadas autoridades, sem contudo traçar o procedimento adequado, vislumbramos uma série de entendimentos jurisprudenciais divergentes. Assim, o objetivo do presente artigo é analisar o procedimento de investigação criminal aplicado aos indivíduos favorecidos pelo foro por prerrogativa de função, à luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Sumário: 1. Consequência jurídica da falta de autorização para abertura da investigação. 2. O Conselho Nacional de Justiça e o sistema acusatório. 3. O CNJ e a função do magistrado na investigação criminal. 4. A impossibilidade de extensão da exigência prevista no regimento interno do STF aos demais tribunais de justiça. 5. Da desnecessidade de autorização judicial para investigar magistrados. 6.Investigações conduzidas pelo delegado de polícia e autorização para indiciados com foro por prerrogativa de função. 7. O CNJ e a inconstitucionalidade de dispositivos regimentais que condicionaram a instauração de inquérito policial à autorização do poder judiciário.


1.CONSEQUÊNCIA JURÍDICA DA FALTA DE AUTORIZAÇÃO PARA ABERTURA DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL:

Grande parte da doutrina é silente e a jurisprudência brasileira sempre apresentou divergência no que pertine às consequências da ausência da supervisão judicial na fase investigatória pelo Ministério Público, até mesmo sobre a real necessidade de se exigir a controle pelo Poder Judiciário para instauração de inquéritos envolvendo autoridades com foro por prerrogativa de função.

No livro Tratado Doutrinário de Processo Penal,[3] foi feita uma digressão sobre como decide os tribunais superiores, in verbis:

Nesse diapasão, é possível observarmos que no Supremo Tribunal Federal, até outubro de 2015, predominava o entendimento de que a ausência de autorização para deflagração de diligências investigatórias em face de autoridade com foro por prerrogativa não traria a mácula da nulidade ao processo, salvo em situações nas quais a regra da reserva de jurisdição restasse desrespeitada. Nesse sentido:

“Embargos de declaração em inquérito. Inquérito instaurado contra autoridade com prerrogativa de foro, sem observância da competente supervisão judicial. Salvo casos em que haja fundadas razões em desvio de finalidade, não são ilícitas as provas que independem de autorização judicial para produção.  Embargos de declaração rejeitados. (Inq 2952 ED, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 10/03/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-057 DIVULG 23-03-2015 PUBLIC 24-03-2015)”.

No julgado acima mencionado, a Excelsa Corte cuidou de fazer importante distinguishing acerca do caso concreto, ao afirmar que, embora o investigado possuísse foro por prerrogativa de função, a colheita de elementos de informação não demandavam autorização judicial, de modo a dispensar a intervenção do Tribunal competente.

Outro argumento valioso foi o de que os dados obtidos na fase investigativa buscavam subsidiar a peça acusatória, podendo ser submetidos ao contraditório em momento posterior, durante a ação penal, razão pela qual não faria sentido o refazimento de todo arcabouço de convicção até então colhido em virtude tão somente do foro por prerrogativa do investigado.

Ou seja, salvo exceções pontuais, a exemplo de realização de interceptações telefônicas, a realização de diligências pelo membro ministerial sem autorização prévia da casa competente não acarretaria nulidade para o processo penal dela decorrente.

Continuando com o que escrevemos no livro Tratado Doutrinário de Processo Penal,[4]in verbis:

Entretanto, cumpre registrar que em outubro de 2015, em decisão oriunda do Estado da Paraíba, aquela Excelsa Corte afirmou que a mera instauração de inquérito contra Prefeito municipal sem a devida autorização judicial acarreta a inépcia da denúncia com o posterior trancamento da ação penal. Nesse sentido:

“Na espécie, no limiar das investigações, havia indícios de que o então Prefeito teria praticado crime eleitoral, por ter supostamente oferecido emprego a eleitores em troca de voto, valendo-se, para tanto, de sua condição de alcaide, por intermédio de uma empresa contratada pela municipalidade.  Nesse contexto, não poderia o inquérito ter sido supervisionado por juízo eleitoral de primeiro grau nem, muito menos, poderia a autoridade policial direcionar as diligências apuratórias para investigar o Prefeito e tê-lo indiciado. 6. A usurpação da competência do Tribunal Regional Eleitoral para supervisionar as investigações constitui vício que contamina de nulidade a investigação realizada em relação ao detentor de prerrogativa de foro, por violação do princípio do juiz natural (art. 5º, LIII, CF). Precedentes.  Questão de ordem que se resolve pela concessão de habeas corpus, de ofício, em favor do acusado, para extinguir a ação penal, por falta de justa causa (art. 395, III, CPP). (grifos nossos) (AP 933 QO, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 06/10/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-020 DIVULG 02-02-2016 PUBLIC 03-02-2016)”.

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Importante destacar a sempre firme jurisprudência de nossa Corte Suprema no sentido de que eventuais nulidades ocorridas na fase investigativa não possuem o condão de macular o processo judicial dela decorrente. Assim sendo, como justificar que a mera condução de investigação criminal por parte de autoridade incompetente seja capaz de imputar a pecha de nulidade para o processo penal que se seguiu?

O Supremo Tribunal Federal reconheceu, no julgado ora analisado, que a simples menção de autoridades com foro por prerrogativa funcional em investigações criminais não são suficientes para justificar o deslocamento da competência para investigar. Entretanto, afirmou que, diante da constatação da existência de indícios da participação ativa e concreta do titular da prerrogativa em ilícitos penais, a atração da causa para o foro competente se faz imprescindível.

Desse modo, o fato de o titular de foro por prerrogativa figurar como investigado já será suficiente para tornar nula a produção dos elementos informativos que seguirem presidida por autoridade incompetente, maculando não apenas a fase inquisitória, mas também eventual processo judicial que dela decorrer.

O Superior Tribunal de Justiça possuía, até outubro de 2014, decisões que exigiam a supervisão prévia pelo Judiciário para fins de autorizar investigações criminais em face de autoridades com foro por prerrogativa de função. Nesse sentido:

“O  processamento do inquérito policial instaurado para investigar suposto delito envolvendo Prefeito perante a Autoridade Policial, sem qualquer supervisão do Tribunal de Justiça, torna nulas as provas obtidas durante a fase extrajudicial e, consequentemente, a denúncia fundada nos elementos colhidos no inquérito.  Ordem de habeas corpus parcialmente concedida, para anular a denúncia, a decisão que a recebeu, bem como os atos de investigação realizados sem a supervisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, sem prejuízo de que sejam retomadas as investigações perante a autoridade agora competente.(HC 205.721/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 05/11/2013, DJe 19/11/2013)

Ocorre que, em março de 2017 a egrégia Corte Superior decidiu em sentido completamente inverso, afirmando não haver necessidade de autorização judicial para instauração de investigações por parte do Ministério Público, mesmo que o investigado possua foro por prerrogativa de função. Vejamos o Acórdão:

“Autorização do tribunal de justiça para abertura das investigações preliminares. Desnecessidade. Ausência de previsão na lei 8.038/90. Exigência de sindicabilidade judicial apenas no recebimento da denúncia. Recurso desprovido. Os poderes investigatórios do Ministério Público são poderes implícitos, corolário da própria titularidade privativa do Parquet em promover a ação penal pública (Constituição da República, art. 129, I). Contudo, a Constituição, em seu art. 129, VIII, confere expressamente ao Ministério Público a atribuição de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito à autoridade policial, independentemente de sindicabilidade ou supervisão judicial. Nas hipóteses de haver previsão de foro por prerrogativa de função, seja por disposição do poder constituinte, do constituído reformador ou decorrente, pretende-se apenas que a autoridade, em razão da importância da função que exerce, seja processada e julgada perante foro mais restrito, formado por julgadores mais experientes, evitando-se pois persecuções penais infundadas. Da prerrogativa de função, contudo, não decorre qualquer condicionante à atuação do Ministério Público, ou da autoridade policial, no exercício do mister investigatório, sendo, em regra, despicienda a admissibilidade da investigação pelo Tribunal competente”.  (RHC 77.518/RJ, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 09/03/2017, DJe 17/03/2017)

Em que pese a apontada divergência das mencionadas Cortes Superiores em relação à apuração de crimes praticados por autoridades com foro por prerrogativa de função, ambas concordam que, mesmo em se tratando de diligências investigatórias por parte do Ministério Público, será necessário expressa autorização judicial para diligências “sob reserva de jurisdição”. Nesse aspecto, será exigida autorização judicial para determinar interceptações telefônicas, quebra de sigilo bancário, dentre outras.

Há muito tempo já defendíamos que a exigência de prévia autorização judicial para instauração de inquérito policial contra pessoas detentoras de foro privilegiado afigura total afronta aos postulados do sistema penal acusatório consagrados na Constituição Federal; e foi justamente nesse sentido que decidiu o CNJ, em julgado a ser analisado ainda no presente trabalho.

Ademais, repisamos o argumento segundo o qual eventuais nulidades ocorridas na fase pré-processual, ou seja, no inquérito, não possuirá qualquer força impeditiva para a fase que se segue.

Data máxima venia, não há como tratar do tema com dois pesos e duas medidas diferentes. Se a fase investigativa possui capacidade de macular o processo que dela decorre, então a jurisprudência deverá se abrir à possibilidade de nulidade do processo decorrente de flagrantes ilegais ou mesmo interrogatórios policiais conduzidos sem a presença do advogado.

Não vemos, porém, dessa forma. Entendemos que a fase inquisitiva, por possuir natureza de procedimento administrativo, não é capaz, ao menos em regra, de afetar a legitimidade do processo que virá logo em seguida. Aqui utilizamos da expressão “em regra” tendo em vista a possiblidade de elaboração de provas nessa fase preliminar, a exemplo do depoimento ad perpetuam rei memorium, provas cautelares e prova não repetível.

Em casos tais, por se tratar verdadeiramente de provas, e não de meros elementos informativos, sua produção deve seguir o devido rito, inclusive com submissão ao contraditório e ampla defesa do acusado. Eventuais ilicitudes ocorridas na elaboração de tais provas poderá prejudicar o processo judicial nelas embasado.


2.O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E O SISTEMA ACUSATÓRIO

O Procedimento de Controle Administrativo nº 0002734-21.2018.2.00.0000. Relator: André Godinho, do CNJ, fez um destaque especial ao acolhimento do princípio acusatório, delimitando qual é a real função do juiz no moderno processo penal, in verbis:

A Constituição Federal de 1988 consagra o sistema acusatório no ordenamento jurídico brasileiro. A escolha do referido sistema depreende-se dos princípios constitucionais norteadores do processo penal e das garantias fundamentais asseguradas, especialmente, do quanto previsto em seus artigos 129, inciso I, e 5º, inciso, LIX, os quais garantem, respectivamente, a titularidade da ação penal pública por parte do Ministério Público e a possibilidade de oferecimento da ação penal privada subsidiária da pública, se a ação penal pública não for intentada pelo Parquet no prazo legal.

Segundo Ferrajoli, são características do sistema acusatório a separação rígida entre o  juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, a publicidade e a oralidade do julgamento. Em lado diametralmente oposto, são tipicamente próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório, a disparidade de poderes entre acusação e defesa e o caráter escrito e secreto da instrução.[5]

O modelo de Estado Democrático de Direito estabelece que a jurisdição seja exercida na forma da imparcialidade do julgador. Dessa forma, na atual conjuntura do processo penal democrático, considerando os ditames de um sistema acusatório, as funções de acusador e julgador são previamente estabelecidas e delimitadas, não podendo haver a substituição de um pelo outro.

Ao demarcar a separação das funções de acusar e julgar e, principalmente, atribuir a gestão da prova às partes, o modelo acusatório redesenha o papel do juiz no processo penal, não mais como juiz-ator (sistema inquisitório), mas sim de juiz-espectador. Trata-se de atribuir a responsabilidade pela produção da prova às partes, como efetivamente deve ser num processo penal acusatório e democrático.

Portanto, o juiz deixa de ter o papel de protagonismo na realização das oitivas, para ter uma função completiva, subsidiária. Não mais, como no modelo anterior, terá o juiz aquela postura proativa, de fazer dezenas de perguntas, esgotar a fonte probatória, para só então passar a palavra ás partes, para que, com o que sobrou, complementar a inquirição.

(...)

A situação é ainda mais grave quando o Ministério Público não está na audiência e, diante da ausência do acusador, assume o juiz esse papel, formulando as perguntas. Neste caso, mais do que protagonista, o juiz assume uma postura substitutiva do acusador, em flagrante incompatibilidade com o sistema acusatório, a imparcialidade e a própria igualdade de armas”.[6]

Diante da excelente explanação do ilustre Conselheiro podemos perceber a importância do sistema acusatório para o processo penal.

A divisão das atribuições de julgar, acusar e defender tem por escopo garantir a aplicação efetiva dos princípios do contraditório e ampla defesa, posto que visa manter a imparcialidade do órgão julgador, tornando sua decisão a mais justa possível.

Desse modo, exigir a participação prematura de magistrado em fase investigativa pode, inevitavelmente, afetar sua necessária imparcialidade para julgar o meritum causae em momento oportuno. É imprescindível que a participação desse membro do Poder Judiciário se restrinja a atos estritamente necessários, tais como aqueles que demandem sua autorização prévia.

Nesse tom, tomamos a liberdade de complementar os argumentos do ilustre Conselheiro, trazendo à baila lições de São Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, que já defendia:

“Não podemos praticar a justiça para conosco mesmos, mas, para com outrem. Logo, é necessário que o juiz decida, entre duas partes; o que se dá sendo uma o autor e outra o réu. Logo, em se tratando de crimes, o juiz não pode condenar quem não tem acusador”.[7]

Essa separação das funções estatais de julgar e acusar demonstra, claramente, que não se poderá obter uma sentença justa daquele que foi contaminado previamente pela ação positiva de investigar os elementos que circundam o caso concreto. Assim, não deve o magistrado competente agir em momento antecedente ao processo, a menos que sua atuação seja estritamente necessária para a normalidade do ato que se busca realizar.

Sobre o autor
Francisco Dirceu Barros

Procurador Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, Promotor de Justiça Criminal e Eleitoral durante 18 anos, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, ex-Professor universitário, Professor da EJE (Escola Judiciária Eleitoral) no curso de pós-graduação em Direito Eleitoral, Professor de dois cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal, com vasta experiência em cursos preparatórios aos concursos do Ministério Público e Magistratura, lecionando as disciplinas de Direito Eleitoral, Direito Penal, Processo Penal, Legislação Especial e Direito Constitucional. Ex-comentarista da Rádio Justiça – STF, Colunista da Revista Prática Consulex, seção “Casos Práticos”. Colunista do Bloq AD (Atualidades do Direito). Membro do CNPG (Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público). Colaborador da Revista Jurídica Jus Navigandi. Colaborador da Revista Jurídica Jus Brasil. Colaborador da Revista Síntese de Penal e Processo Penal. Autor de diversos artigos em revistas especializadas. Escritor com 70 (setenta) livros lançados, entre eles: Direito Eleitoral, 14ª edição, Editora Método. Direito Penal - Parte Geral, prefácio: Fernando da Costa Tourinho Filho. Direito Penal – Parte Especial, prefácios de José Henrique Pierangeli, Rogério Greco e Júlio Fabbrini Mirabete. Direito Penal Interpretado pelo STF/STJ, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Recursos Eleitorais, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Direito Eleitoral Criminal, 1ª Edição, Tomos I e II. Editora Juruá, Manual do Júri-Teoria e Prática, 4ª Edição, Editora JH Mizuno. Manual de Prática Eleitoral, Editora JH Mizuno, Tratado Doutrinário de Direito Penal, Editora JH Mizuno. Participou da coordenação do livro “Acordo de Não Persecução Penal”, editora Juspodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Francisco Dirceu. A autorização judicial para investigar pessoas com foro de prerrogativa de função e a posição do CNJ:: consequência jurídica da falta de autorização para abertura da investigação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5448, 1 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66393. Acesso em: 7 nov. 2024.

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