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Ação penal condicionada no delito de furto simples

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Agenda 17/09/2018 às 13:45

Capítulo 3 – A ação penal no crime de furto - hoje e no novo Código Penal

Passadas as explanações feitas nos capítulos anteriores, quando se descreveu sobre a ação penal e suas modalidades, bem como sobre o delito de furto e suas peculiaridades, passa-se a abordar o cerne do presente estudo, que é a possibilidade de mudança da ação penal, nos crimes de furto simples, de incondicionada, para condicionada à representação do ofendido.

É de conhecimento de qualquer jurista que o Direito está em constante adequação às demandas da sociedade sendo necessário que se mantenha vivo, dinâmico, observando as transformações sociais.

O problema deste artigo, portanto, é analisar sobre a real necessidade da ação penal incondicionada para o crime de furto, tipificado no artigo 155 do atual Código Penal Brasileiro. Para chegar à solução deste problema foi feita uma pesquisa de cunho bibliográfico observando o Código Penal, doutrinas, direito comparado e jurisprudências que tratam do assunto específico.

Dada a facilidade de acesso à justiça e a melhor interação social, com afastamento paulatino da autotutela, o Judiciário pátrio sofre com o intenso volume processual e a carência de material humano, fatores que atrasam as decisões e sentenças. Mesmo com o alavancar tecnológico propiciado pelos computadores e sistemas de movimentação processual, o volume de procedimentos é enorme. Um dos motivos que agrava essa situação é o grande número de pequenos furtos, apurados via inquérito policial, dada a obrigatoriedade de instauração dos Autos devido a ação penal incondicionada. Essa realidade acaba por comprometer o julgamento, e apuração, de crimes mais graves, acarretando, não raro, a prescrição, e consequente, impunidade em tais casos.

O delito de furto, hoje, processado via ação penal incondicionada, obriga o delegado a instaurar o Inquérito Policial, obriga o Ministério Público a elaborar sua denúncia, havendo materialidade e autoria, e obriga o Juiz a decidir o caso apresentado, seja ou não essa a vontade da vítima.

Acerca do sobrecarregamento da justiça com lesões patrimôniais menos graves, como os pequenos furtos, a doutrinadora Livia Scoucuglia relata que:

Os pequenos furtos — com valor inferior a um salário mínimo — são os responsáveis por mais de 60% das prisões do país. Esse número é consequência do sistema penal brasileiro que adota a obrigatoriedade da ação penal e também a ação penal incondicionada para pequenos furtos. (SCOUCUGLIA, 2014)

No Brasil a discussão sobre a ação penal mais adequada aos delitos de furto, remonta ao tempo do Império, especificamente no famoso “Furto das Jóias da Coroa”, passagem descrita no livro de Raul Pompéia. O autor cita o episódio em que um funcionário de confiança e especial amizade do Imperador Dom Pedro II furtou joias da coroa brasileira.

Na época, com a descoberta da autoria pelas Autoridades Policiais, o Imperador resolveu abrir mão do patrimônio, dando seu consentimento à subtração, sendo o caso encerrado sem punição. Isso gerou grande burburinho e fomentou a discussão sobre a relevância ou não do consentimento do ofendido para a subtração no crime de furto. A Lei penal, bem como a doutrina e jurisprudência no Brasil afirmam, em sua maioria, que prevalece o princípio da obrigatoriedade da Ação Penal, sendo isso é reforçado nos concursos e escolas de Direito, sem muita reflexão.

A alteração da ação penal de pública incondicionada, para pública condicionada à representação do ofendido nos crimes de furto é um passo relevante de racionalização do Direito Penal Brasileiro.

Exemplos legislativos no direito comparado existem, e serviram de base para o ante projeto do Código Penal brasileiro.

Dois exemplos, de países desenvolvidos, podem ser mencionados. O Código Penal Português e o afamado Código Penal Italiano, que abaixo serão transcritos.

O Código Penal Português, em seu artigo 203, assim descreve o delito de furto:

Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

A tentativa é punível.

O procedimento criminal depende de queixa

(Grifo nosso)

Assim como se pretende com o novo Código Penal, também no direito português, o delito somente será condicionado à representação se não houver qualquer violência ou qualificadora.

O Código Penal Italiano prevê que o delito de furto simples seja julgado pelos juizados especiais, por juízes leigos, e, igualmente, exige a representação da vítima para seu processamento

Articoli 624 - Furto

Chiunque s'impossessa della cosa mobile altrui, sottraendola a chi la detiene, al fine di trarne profitto per sé o per altri, è punito con la reclusione da sei mesi a tre anni e con la multa da euro 154 a euro 516.

Agli effetti della legge penale, si considera cosa mobile anche l'energia elettrica e ogni altra energia che abbia un valore economico.

Il delitto è punibile a querela della persona offesa, salvo che ricorra una o più delle circostanze di cui agli articoli 61, numero 7 e 625

(Grifo nosso)

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“Il delitto è punibile a querela della persona offesa”. Em português, “O delito será punido mediante a queixa da pessoa ofendida”.

Ambos diplomas legais são antigos. Não tratam de inovação legislativa. O Código Italiano é de 1930. O Português foi condensado em 1852, quando o Brasil sequer era república.

A sanção do projeto de lei que altera o Código Penal brasileiro não irá inovar. Não irá modernizar o direito. A ideia do crime de furto ser processado mediante ação penal pública condicionada é antiga, e, salvo entendimentos em contrário, pode, sim, trazer benefícios à aplicação da lei penal e processamento dos demais crimes, conforme será explanado.

É claro que nos crimes patrimoniais praticados mediante violência ou grave ameaça não se pode abrir mão da ação penal pública incondicionada, considerando que se tratam de crimes complexos, onde não somente o patrimônio é tutelado, mas também bens jurídicos tais como a liberdade individual, a integridade física e até a vida das pessoas.

O PL 1244/2011 prevê a alteração do Artigo 155 no novo Código Penal e menciona que a ação penal nos crimes de furto simples e de pequena monta, passe a ser de pública condicionada a representação. A comissão de elaboração do projeto de novo Código Penal definiu ainda que a reparação do dano, desde que a coisa furtada não seja pública ou de domínio público, extingue a punibilidade, desde que feita até a sentença de primeiro grau e aceita pelo réu.

Pela atual legislação brasileira, o rito processual para se apurar um furto de bicicleta ou o furto de milhões de reais, é o mesmo, o que tende a aumentar as prescrições por falta de vagas para audiências em tempo hábil. Em razão disso, acaba-se condenando o ladrão de bicicleta, pois é um processo mais simples de se definir a autoria, enquanto no delito de maior monta há várias dificuldades técnicas que podem gerar a prescrição do crime.

No direito brasileiro autores de pequenos furtos são presos provisoriamente em flagrante delito para, somente após algum tempo de reclusão, ser determinada a sua pena. Se a ação penal fosse condicionada à representação da vítima, certamente reduzir-se-iam as demandas judiciais e, consequentemente, o número de encarceramentos desnecessários.

Como dito, o projeto do Novo Código Penal condiciona a propositura da ação penal nos crimes de furto simples à representação da vítima, modificando-se, portanto, o tipo de ação penal.

Ao considerar-se que o direito penal deve agir somente em ultima ratio, ele somente atuará quando os outros ramos do direito forem insuficientes para solucionar o conflito existente. Logo, questiona-se sobre a real necessidade da intervenção estatal e do esforço da justiça para solucionar casos simples.

As futuras modificações no Código Penal, imporão que o Ministério Público só poderá propor ação penal nos crimes de furto simples mediante a representação do ofendido à uma autoridade policial ou judicial. O Delegado, igualmente, somente instaurará o Inquérito Policial após o pedido formal da vítima.

Logo seguir a tendência mundial de abandonar a obrigatoriedade da ação penal no furto simples ou transformá-la em ação penal condicionada à representação da vítima, é essencial para desafogar a justiça brasileira. Condicionar a ação penal nos casos de furto simples à representação da vítima se traduz em um esforço para respeitar a opinião e a privacidade do ofendido, quanto à sua disposição patrimonial. Isto porque muitas vezes os danos causados ao ofendido na propositura da ação penal podem ser maiores que os danos causados pelo infrator. É natural que caiba ao ofendido decidir se quer ver processado o autor do ato ou não.

Estas modificações possuem grande relevância, sobretudo, nos casos de furtos de pequena monta, que além de insignificantes possuem, geralmente, repressão estatal superior ao interesse particular. O instituto da ação penal condicionada à representação do indivíduo evita dispensar um sistema complexo para penalizar um infrator, caso a vítima não tenha interesse neste processo.

Além disso, tal instituto assegura a reparação do dano sem que seja necessária a privação de liberdade do infrator, que pode acarretar mais malefícios que benefícios ao infrator podendo ser fator de reincidência e impõe gastos ao Estado para manter tal indivíduo encarcerado. Fica claro que as modificações introduzidas na lei retiram a punição exagerada frente à pouca gravidade da lesão, relativizando a supervalorização e superproteção do bem jurídico do patrimônio. Contudo, vale ressaltar que não se pretende a impunidade do infrator, mas tão somente a possibilidade de redução do uso do judiciário em casos de menor gravidade desafogando-o, permitindo maior celeridade na justiça, uma vez que esta se preocupará apenas com as ações propostas mediante a representação do ofendido, que deve ter sua vontade respeitada, já que a proteção se dá em razão da propriedade privada.

Logicamente existem posicionamentos contrários à proposta. Há quem entenda que essa possibilidade de somente se instaurar um Inquérito Policial ou uma Ação Penal após a representação do ofendido possa agravar a impunidade, visto que a vítima poderia ser coagida, ou se sentir intimidada, e não querer representar contra o autor. Há também a ideia de que nossa sociedade não estaria madura o suficiente para se relegar à vítima a decisão de querer ver, ou não, o autor do furto simples processado criminalmente.

Ora, realmente vivenciamos um crescimento assustador da criminalidade. Realmente a vítima acaba por se sentir acuada quando se vê prestes a ingressar numa delegacia, mais ainda quando é posta frente a frente com o autor do furto. Realmente uma passividade do ofendido pode propiciar que pequenos larápios fiquem impunes.

Mas a capacidade de escolha deve ser respeitada. É facultado à vítima dispor, por exemplo, sobre sua integralidade física quando agredida levemente. Pode simplesmente dizer ao Delegado que não quer ver seu agressor punido e nada poderá ser feito. Ora, se o furtador, por exemplo, leva o relógio da vítima, sem violência, e é preso posteriormente, propiciando a devolução do bem, que mal teria a vítima simplesmente se contentar com a devolução de seu relógio? O larapio vir a ser preso em flagrante, provisoriamente, para dias depois, ou horas, ser solto, de pouco adiantará para reprimir a criminalidade.

O pequeno furto tem uma questão mais social do que criminal. Quase sempre o furto simples ocorre por necessidade do autor. Ademais, na grande maioria dos casos os furtos ocorrem em relação intima com o tráfico de drogas. Em outras palavras, as pequenas subtrações não violentas ocorrem para subsistência do infrator ou para o sustento de seu vicio em entorpecentes.

Se existisse uma política social mais eficiente e inclusiva, ninguém precisaria furtar para se alimentar. Se a polícia puder se focar em combater o tráfico ilícito de entorpecentes, não haverá o furto para sustento do vício.

Mas, infelizmente, o que se vê é a polícia, civil e militar, gastando seu parco tempo e recursos prendendo o pequeno furtador, formalizando prisões em flagrante delito, ao invés de buscar prender o traficante ou o real criminoso.

A gama de crimes graves é enorme. A força policial é limitada.

Se aquele autor do furto do relógio do exemplo acima não se sensibilizar com a “chance” que lhe foi dada pela vítima que optou por não representar, certamente irá voltar a delinquir, quiçá, com maior gravidade, acabando por vir a ser detido. Mesmo que volte a praticar furtos simples, esse comportamento recorrente pode, naturalmente, ser repassado à vítima, que poderá pesar, e pensar, se deve ou não abrir mão de seu direito de representar.

O ideal da ação penal condicionada no crime de furto é tão somente permitir que a polícia volte suas forças ao combate mais qualificado à criminalidade, bem como reduzir o acervo de procedimentos nos fóruns do país, e, por consequência, facultar à vítima a possibilidade de escolher se quer, ou não, perder seus dias em cartórios de delegacias e fóruns.

Não cabe ao direito penal, mediante a ação publica incondicionada do crime de furto, socorrer a sociedade combalida por políticos corruptos, falta de empregos ou por uma educação ineficiente. Uma sociedade devidamente preparada reduzirá a ocorrência dos pequenos furtos muito mais do que o encarceramento banalizado.

Sobre o autor
Endgel Rebouças

Delegado Regional de Polícia Civil de Minas Gerais desde 2006. Formado em Direito pelo Centro Universitário do Espírito Santo em 2003, onde também se pós graduou em Direito Civil no ano de 2005. Pós graduado ainda pela Unyleya em Direito Penal e Processual Penal no ano de 2018 e em Gestão em Segurança Pública em 2017.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBOUÇAS, Endgel. Ação penal condicionada no delito de furto simples. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5556, 17 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68604. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Artigo elaborado como exigência para conclusão do curso de pós graduação em Direito Penal e processual Penal pela Faculdade Unyleya

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