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Entre a dúvida razoável e o livre convencimento do juiz: o sistema de provas do processo penal em foco no STF

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5. Aplicabilidade da dúvida razoável nos Habeas Corpus (HC)

Tendo em vista que o instituto da dúvida razoável ainda não tenha sido objeto de discussão constitucional através de ações diretas de constitucionalidade ou inconstitucionalidade e, já tendo sido analisadas neste trabalho as ações penais em foco no STF, cabe agora a análise dos habeas corpus julgados pelo tribunal, que proporcionam uma dimensão mais ampla do tema.

No Brasil, os defensores da dúvida razoável no sistema probatório alegam que não há critério outro adotado pela lei ou defendido pela jurisprudência que evidencie com tanta clareza e precisão o caminho a ser seguido pelo juiz na constituição de seu convencimento, como o modelo americano, podendo eles se utilizarem de critérios probatórios flexíveis, juntamente com sua discricionariedade judicial.

Entretanto, isso não significa completa ausência de justificativas, sendo identificadas algumas condições mínimas para a motivação das decisões, reconhecidas pelas construções elaboradas pela doutrina e pela análise da aceitação dos standards na prática dos tribunais. Dessa forma, muitos dos parâmetros empregados pela jurisprudência brasileira remetem aos paradigmas do direito comparado, como veremos a seguir nos casos em que o STF se utilizou do standard.

No HC 88.875/AM, o voto do Ministro Relator Celso de Mello da segunda turma fornece um importante insight de posições futuras da Corte em relação à aplicação do standard da dúvida razoável e sua (in)compatibilidade com o princípio da presunção de inocência. Nesse sentido, o ministro Celso afirma que:

Prevalece, sempre, em sede criminal, como princípio dominante do sistema normativo, o dogma da responsabilidade com culpa ("nullum crimen sine culpa"), absolutamente incompatível com a velha concepção medieval do "versari in re illicita", banida do domínio do direito penal da culpa. Para o acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais ("essentialia delicti") que compõem o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente. Em matéria de responsabilidade penal, não se registra, no modelo constitucional brasileiro, qualquer possibilidade de o Judiciário, por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer a culpa do réu. Os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita (HC 88875, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 07/12/2010, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-051 DIVULG 09-03-2012 PUBLIC 12-03-2012)[21].

 Por meio desse HC, é possível visualizar uma das principais argumentações inerentes a essa discussão: o fato de ser indispensável, para a acusação, a descrição efetiva dos elementos estruturais que compõem o tipo penal. Caso contrário, retorna ao réu a obrigação de provar que é inocente. Assim, é possível identificar um fundamento muito utilizado pelos ministros do Supremo: a não culpabilidade do acusado por mera presunção. Ou seja, se não for possível comprovar de fato as provas fornecidas por quem acusa, não haverá condenação e nem responsabilização por mera suspeita.

Outro habeas corpus que confirma essa corrente jurisprudencial é o HC 102.936/RS da primeira turma, tendo como relator o Ministro Luiz Fux, que alega em seu voto a necessidade de comprovação expressa do cabimento de insanidade mental para incidir um habeas corpus, assim, devido à falta de provas, o pedido da ordem de habeas corpus foi negado por unanimidade, argumentando o ministro relator que:

“a instauração do incidente de insanidade mental exige: (a) a presença da dúvida razoável a respeito da imputabilidade penal do acusado em virtude de doença ou deficiência mental; (b) faz-se mister a comprovação da doença, não sendo suficiente a mera informação de que o paciente se encontra sujeito a tratamento; (c) o mero requerimento do exame não é suficiente para seu deferimento”. HC 102936, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 05/04/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-078 DIVULG 27-04-2011 PUBLIC 28-04-2011[22]


6. Conclusão

Indubitavelmente, a partir do exposto, nota-se a importância da discussão desse assunto no cenário contemporâneo dos tribunais brasileiros de acordo com grande incidência de crimes de colarinho branco, que suscitam critérios mais flexíveis de comprovação de autoria e materialidade. Assim, conforme buscou esclarecer este trabalho, o liame entre a dúvida razoável e o princípio do livre convencimento do juiz é tema que apresenta marca distinta de contradição, uma vez que se discute a (i)legitimidade de aplicação de um recurso estrangeiro, tanto por parte do TRF-4, quanto por parte do STF, sem antes uma discussão legislativa ou constitucional formal sobre este respeito.

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Nesse sentido, buscou-se analisar, por outros meios, as oportunidades em que o Supremo trouxe este tema à tona, seja por meio de habeas corpus ou ações penais originárias que tenham sido objeto de discussão do tribunal. Se pode constatar, através dessas análises, que, muito embora a Corte recorra ao instituto da dúvida razoável de forma menos punitivista que os tribunais pátrios, isto é, geralmente se valendo deste recurso para, contrario sensu, comprovar a inocência do réu, o faria de forma não tão menos ilegítima, visto a falta de discussão constitucional em pleno sobre o assunto.

Resta ao menos comprovada, portanto, a crítica trazida na introdução deste trabalho do ex-ministro Velloso, acerca do definhamento do STF enquanto Corte Constitucional, e da sua incompetência para se comportar enquanto Corte Penal.

Isso porque a dúvida razoável, a qual tem servido de refúgio por diversos tribunais nos últimos anos, não é proveniente de lacuna ou omissão do ordenamento, mas tão somente opção dos juízos por um sistema probatório diferente, por ser este considerado superior para o fim de punir certos crimes, o que pode ser perigoso dentro de uma esfera interventiva tão violenta como é o Direito Penal.

Dessa forma, os questionamentos a respeito da i) validade da substituição do “livre convencimento” pátrio por considerarem os juízes a “dúvida razoável” como o melhor standard de prova que já existiu; ii) compatibilidade entre esse recurso e o nosso vigente sistema probatório, sem realização prévia de qualquer medida de adaptação por parte da nossa Corte Constitucional e; iii) substituição do princípio do livre convencimento do juiz sem ao menos ser levantada ação no âmbito do controle de constitucionalidade, são temas que esse trabalho buscou levantar em meio de assunto tão esquecido.


Notas

[1] HC 152.752.

[2] Com o HC 126.292 e a ARE 964.246.

[3] Aguardam julgamento as ADCs 43 e 44.

[4] Ação penal (AP) n° 996, julgada pela 2° Turma do STF.

[5] VENTURI, Lilian. STF: entre guardião da Constituição e tribunal penal. Nexo. 2017. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/explicado/2017/11/20/STF-entre-guardião-da-Constituição-e-tribunal-penal >. acesso em: 23 jun. 2018.

[6] Ibidem.

[7] AP 470.

[8] Alegações finais do MPF no caso do ex-presidente Lula. Autos nº 5046512-94.2016.4.04.7000; 2018, p. 59.

[9] ESCOLA BRASILEIRA DE DIREITO. Princípio do livre convencimento motivado: análise do artigo 155 do Código de Processo Penal. Jusbrasil.  2017. Disponível em: < https://ebradi.jusbrasil.com.br/artigos/476617952/principio-do-livre-convencimento-motivado-analise-do-artigo-155-do-codigo-de-processo-penal >. Acesso em: 23 jun. 2017.

[10] LIMA, Daniel. Sistemas de valoração da prova: qual é o adotado no Brasil? Canal Ciências Criminais. 2017. Disponível em: < https://canalcienciascriminais.com.br/sistemas-valoracao-prova/ >. Acesso em: 24 jun. 2018.

[11] RHC 91691, Relator(a):  Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 19/02/2008.

[12] STRECK, Lenio Luiz. Senso incomum: dilema de dois juízes diante do fim do Livre Convencimento do NCPC. ConJur. 2015. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2015-mar-19/senso-incomum-dilema-dois-juizes-diante-fim-livre-convencimento-ncpc >. Acesso em: 24 jun. 2018.

[13] PASSOS, Najla. As “inovações” que geram polêmica no julgamento do “mensalão”. Carta Maior. 2012. Disponível em: < https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/As-'inovacoes'-que-geram-polemica-no-julgamento-do-'mensalao'-/4/26016 >. Acesso em: 24 jun. 2018.

[14] ARAS, Vladmiri. STF reafirma o sistema acusatório no processo penal brasileiro. 2017. Disponível em: < https://vladimiraras.blog/2017/10/31/stf-reafirma-o-sistema-acusatorio-no-processo-penal-brasileiro >. Acesso em: 24 jun. 2018.

[15] DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. As lógicas das provas no processo. Editora Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2015. 1ª edição. p. 267.

[16] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 580/SP – São Paulo. Relator: Ministra Rosa Weber. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 13 dezembro 2016. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13086712 >. Acesso em: 05 jul. 2018.

[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 883/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 20 março 2018. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14801986 >. Acesso em: 04 jul. 2018.

[18] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 676/MT – Mato Grosso. Relator: Ministra Rosa Weber. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 17 dezembro 2017. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14300838 >. Acesso em: 05 jul. 2018.

[19]SHEALY JR, Miller. A reasonable doubt about "reasonable doubt". Oklahoma Law Review. Oklahoma. 2013. Disponível em: < https://digitalcommons.law.ou.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article=1082&context=olr >. Acesso em 05 jul. 2018.

[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 996/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Edson Fachin. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos,  11 jun. 2018. Disponível em: < https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/589630470/acao-penal-ap-996-df-distrito-federal-0002245-3620161000000 >. Acesso em: 05 jul. 2018.

[21] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 88875/AM – Amazonas. Relator: Ministro Celso de Mello. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 07 dez. 2010. Disponível em: < https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21588636/habeas-corpus-hc-88875-am-stf  >. Acesso em: 25 jun. 2018.

[22]  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 102936/RS – Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Luiz Fux. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 05 abril 2011. Disponível em: < https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18806483/habeas-corpus-hc-102936-rs >. Acesso em: 25/06/18.

Sobre as autoras
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Amanda Soares Oliveira; NUNES, Izabela Santos et al. Entre a dúvida razoável e o livre convencimento do juiz: o sistema de provas do processo penal em foco no STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5543, 4 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68756. Acesso em: 22 dez. 2024.

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