1. Introdução
No dia 27 de abril de 2018, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Velloso, fez manchetes com a polêmica alegação de que “infelizmente [...] o STF vem deixando de ser uma corte constitucional para virar uma corte penal de segunda classe”. Para ele, o STF não tem vocação e nem tempo para julgar as matérias penais que lhe têm sido atribuídas nos últimos anos, em razão da sua competência originária, o que vem gerando uma depreciação da atuação do tribunal em relação a sua função principal: a de julgar grandes temas constitucionais.
Muito embora a doutrina já venha chamando atenção para o mesmo problema há anos, é seguro dizer que as críticas de Velloso vieram em momento decisivo. O começo de abril foi marcado pelo julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva[1], de repercussões internacionais. Na ocasião, teve foco principal a discussão a respeito da compatibilidade entre a prisão em segunda instância e o princípio constitucional de presunção de inocência, com destaque para a confusa alteração de jurisprudência do tribunal[2] no ano anterior, ainda que o dissenso não tenha sido por todo pacificado.[3]
Em seguida, o tribunal inaugurou o mês de maio com a decisão, por unanimidade, de restringir o foro de prerrogativa da função – o famoso foro “privilegiado” – apenas aos crimes cometidos durante o exercício do mandato e relacionados ao exercício do cargo. Essa decisão foi seguida pela primeira condenação do STF na Operação Lava-Jato[4], do deputado Nelson Meurer do Partido Progressista, a 13 anos e 9 meses de prisão em regime fechado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro
Ainda que análises como as do ex-ministro, em relação ao tamanho e à extensão do foro de prerrogativa de função, não tenham surgido apenas no contexto dos acontecimentos recentes, é evidente um escalamento desse conflito nos últimos anos, devido à demanda social contra a impunidade da classe política, sendo este um tema constante nas discussões do plenário.
Por outro lado, a crítica profunda do ministro revela problema potencialmente tão grave quanto este e que, ao contrário do primeiro, não tem tido a mesma repercussão midiática, o qual diz respeito ao próprio funcionamento do tribunal enquanto corte penal, isto é, a aplicação e uso que fazem os ministros dos princípios e institutos penais salvaguardados pela Constituição de 1988, assim como a sua aptidão para atuar primariamente enquanto corte penal.
É verdade que essa função não é inteiramente desconhecida pelo STF. Com o julgamento da Ação Penal 470 em 2012, conhecida como o mensalão, foram necessárias 69 sessões, ao longo de dois anos, ao final dos quais 24 dos 38 réus foram condenados[5]. Porém, as dimensões atuais são ainda maiores. Até novembro de 2017, haviam 185 inquéritos relacionados à Lava Jato em curso no Supremo[6] e, mesmo com a divisão das Ações Penais entre as duas turmas, o volume excessivo de casos vem tornando esse problema ainda mais latente.
Uma das evidências mais recentes deste fenômeno diz respeito aos standards de prova. Se, na ocasião do mensalão, a ministra Cármen Lúcia afirmou que “a condenação em processo penal exige juízo de certeza, não bastando a ausência de dúvida razoável sobre a existência do fato imputado ao agente”[7], no supracitado julgamento do deputado Nelson Meurer, Ricardo Lewandowski declarou que a “sua responsabilização penal pode ser caracterizada a estreme de qualquer dúvida razoável”.
Embora possa esse dissenso na fala dos ministros parecer uma simples mudança de posição jurisprudencial em relação a 2014, a questão dos standards mínimos de prova necessários à condenação, na verdade, nunca foi objeto de análise constitucional do plenário. No entanto, de lá para cá, a exemplo do que aconteceu com a prisão em segunda instância, o assunto vem sendo amplamente flexibilizado pelos tribunais, muitas vezes em desprezo ao princípio constitucional da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Em especial, o Tribunal Regional Federal da Região 4° (TRF-4) tem explicitamente se utilizado do standard “para além da dúvida razoável” em suas condenações da Lava Jato, a fim de comprovar a materialidade de crimes complexos, como são os crimes de colarinho branco. Segundo acatou esse tribunal, o standard da dúvida razoável é “o melhor standard de prova que existe”, decorrente “da constatação, pelas cortes inglesas no século XVII, de que a certeza é impossível, e de que, caso exigida certeza, os jurados absolveriam mesmo aqueles réus em relação aos quais há abundante prova”[8].
Esse sistema, no entanto, difere-se do standard adotado no Brasil, o de “livre convencimento do juiz”, segundo o qual o magistrado, desde que motive suas decisões, tem liberdade para formar sua convicção, levando em conta as provas produzidas e o contraditório judicial[9]. Em julgados recentes, a influência do TRF-4 certamente se fez sentir no Supremo, sendo hoje vários ministros não somente defensores como aplicadores do sistema norte-americano, mesmo na ausência de reformas legislativas ou de alterações jurisprudenciais vinculantes sobre o assunto.
Nesse sentido, visto a contemporaneidade do tema, este artigo objetiva analisar as posições do STF em relação aos standards de prova nos últimos anos, buscando padrões de aplicação do sistema de dúvida razoável e possíveis mudanças de entendimento na medida em que avançaram os desdobramentos da Operação Lava Jato.
2. Dos sistemas de valoração de prova e da dificuldade de comprovação material dos crimes do colarinho branco
O sistema de valoração de provas, tanto no direito civil quanto no penal tem longa história originária, a qual data a antiguidade cristã, com o punitivo sistema das ordálias – história essa que não se pressupõe exaurir neste estudo. Para fins didáticos, no entanto, são geralmente categorizados em três os principais sistemas de valoração das provas dos autos pelos juízes, a fim de alcançar a verdade do processo[10]: o sistema da prova legal (ou tarifado); o sistema da livre convicção e o sistema da persuasão racional.
Para o sistema legal ou tarifado, cada prova tem um valor preexistente e predefinido por lei. Com isso, não haveria espaço para qualquer liberdade magistral, a fim de valorar a prova em concordância com o caso concreto. A confissão, por exemplo, era considerada prova absoluta, a qual não poderia ser refutada, pretexto este que reinou em muitas das práticas inquisitoriais da Igreja Católica na Europa do século XIII. Esse sistema exerceu também grande influência nas Ordenações Portuguesas, as quais o Brasil adotou até a criação do Código de Processo Criminal de 1832. Segundo o ex-ministro do Supremo, Carlos Alberto Menezes Direito[11]:
Não vigora mais entre nós o sistema das provas tarifadas, segundo o qual o legislador estabelecia previamente o valor, a força probante de cada meio de prova. Tem-se, assim, que a confissão do réu, quando desarmônica com as demais provas do processo, deve ser valorada com reservas.
Com o advento deste Código, foram instaurados no Brasil os sistemas da livre convicção e da persuasão racional. Este último tem sua aplicação restrita ao Tribunal do Júri e consiste no extremo oposto ao sistema da prova tarifada – isto é, podem os jurados decidir na mais completa liberdade, livres de qualquer critério predefinido de provas ou de necessidade de justificar suas decisões. Para todos os demais processos, tanto civis quanto penais, no entanto, foi previsto pelo legislador o sistema do livre convencimento das provas pelos magistrados que, apesar do que o nome parece sugerir, traduz-se tão somente na tese de que estão livres os juízes para formar suas convicções com base nas provas dos autos, desde que justifiquem sua decisão na sentença que dá fim ao processo. Este princípio é garantido não apenas pela Constituição de 1988 como também pelo art. 155 do Código de Processo Penal (CPC) e pelo art. 131 do antigo Código de Processo Civil (CPC).
O novo CPC de 2015, contudo, veio trazer importante mudança ao paradigma de valoração das provas. No contexto não apenas da devida liberdade como da excessiva arbitrariedade dos juízes nas constituições de suas convicções, os reformadores do novo Código optaram por, à luz de uma doutrina mais democrática e um processo mais participativo, suprimir o termo “livre” da máxima de “livre convencimento do juiz” que trazia o Código anterior. A mudança na esfera cível se faz também aqui relevante pois, em 2018, em meio aos rumores de um novo CPP, muitas são também as propostas de retirada da expressão do art. 155, a fim de dar maior conformidade entre todos os códigos processuais pátrios. O deputado Paulo Teixeira, relator do projeto de 2015 justificou[12] a mudança alegando que:
embora historicamente os Códigos Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação judicial, não é mais possível, em plena democracia, continuar transferindo a resolução dos casos complexos em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. Na medida em que o projeto passou a adotar o policentrismo e coparticipação no processo, fica evidente que a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial relevância
Contudo, é de se questionar se as alterações legislativas tiveram qualquer impacto prático na valoração probatória pelos juízes. Certo é que a investigação e a condenação em massa dos crimes de colarinho branco foi, na última década, o maior motivador para a necessidade de um novo parâmetro probatório, segundo a ministra Rosa Weber[13] “nos delitos de poder, quanto maior o poder ostentado pelo criminoso, maior a facilidade de esconder o ilícito. Esquemas velados, distribuição de documentos, aliciamento de testemunhas. Disso decorre a maior elasticidade na admissão da prova de acusação”.
Logo, apesar da questão ter sido inicialmente levantada no próprio plenário do Supremo, em meio às discussões do mensalão, as primeiras condenações efetivamente baseadas no sistema da dúvida razoável, de forma explícita, se deram no âmbito do TRF-4. Segundo as alegações finais da acusação no caso do triplex de Guarujá do ex-presidente Lula, entende o Ministério Público Federal (MPF) que “o que se deve esperar no processo penal é que a prova gere uma convicção para além de uma dúvida que é razoável, e não uma convicção para além de uma dúvida meramente possível”.
O sistema de dúvida razoável, o qual o MPF fez uso, por sua vez, é aplicado nos países adotantes da common law, que apresentam um sistema processual penal adversarial, em contraposição ao sistema inquisitório dos países romanistas como o Brasil. Nesse contexto adversarial, as partes desempenham função muito mais ativa, sendo a elas atribuídas a atividade probatória, de forma exclusiva, preservando-se o juiz em uma espécie de posição passiva. Com isso, o sistema adversarial não busca, necessariamente a verdade processual, mas a solução do conflito instaurado entre as partes – tanto que são comuns nos Estados Unidos as práticas de bargaining, de forma que o réu possa negociar sua condenação diretamente com a acusação antes da sentença do juiz.
Contudo, a prática processual penal brasileira muito se difere dessa realidade, baseando-se na exclusividade estatal de exercer o poder de polícia e realizar política criminal, sendo, portanto, o juiz uma parte ativa do processo – parte essa que pode inclusive mandar produzir provas de ofício. O próprio STF deixa claro que a separação das funções de acusar e julgar, marca do sistema acusatório no processo penal brasileiro, fundamental para garantir a imparcialidade dos juízes[14].
Dessa forma, a importação e aplicação do instituto da “dúvida razoável” no Brasil por um TRF, mesmo que para fins de combate à impunidade política, não parece ter correspondência ou compatibilidade com nosso sistema, baseado no protagonismo do juiz e com menos relevância das partes. Não entrando ainda no mérito da legitimidade – o qual trabalharemos a posteriori – e da possível infração a importantes princípios constitucionais, é evidente um descompasso sistêmico entre o supracitado dispositivo e a conjuntura penal brasileira, do qual é evidência e falta de uma “regulamentação” própria a respeito do que caracterizaria a dúvida razoável e suas possíveis áreas de aplicação pelo STF, a exemplo do que fez a Corte norte-americana em meados dos anos noventa.
O empenho por instaurar um processo de moldes adversariais, nos quais as partes do processo, como o MPF, ganham papel de protagonismo é evidente desde a reforma do CPC de 2015, inserindo-se neste contexto também o novel sistema de valoração de provas “para além da dúvida razoável”. Contudo, a mudança para esse tipo de processo, no direito penal, âmbito da máxima liberdade, de subsidiariedade e da última ratio, não se faz com a mera supressão legislativa de uma expressão, como no âmbito cível. A partir dessas considerações, se faz necessário explorar o tema propriamente nas discussões do STF.
3. O standard “para além da dúvida razoável” e o princípio do “in dubio pro reo”
Antes disso, no entanto, é relevante enfatizar a sutil diferença entre o princípio do “in dubio pro reo” e a tão debatida dúvida razoável que é o cerne deste trabalho. É sabido que ambos são ferramentas empregadas na argumentação das decisões proferidas para condenação ou absolvição do réu. Entretanto, apesar de serem muito semelhantes e, em certa medida, complementares, o padrão americano da dúvida razoável requer que os quesitos de prova para confirmar a culpabilidade do acusado vão além da “dúvida razoável”, ou seja, de qualquer possibilidade de inocência do mesmo.
Em contrapartida, o princípio “in dubio pro reo” não faz nenhum tipo de gradação em relação a dúvida extraída e avaliada por quem julga, apenas identifica se há alguma hipótese de dubiedade no caso concreto, e, em submissão ao princípio da presunção de inocência, o réu será absolvido. Dessa maneira, fazendo uma comparação entre os dois, percebemos que, diferente do “in dubio pro reo”, o modelo norte americano permite sim a condenação com dúvida, desde que esta seja irrisória, mínima, não razoável. É o que Dallagnol afirma, em sua obra, em que demonstra que a verdade e a certeza da realidade não são possíveis de serem alcançadas[15], permitindo, assim, uma abertura para a dúvida mesmo no processo condenatório. Porém, se esta dúvida for razoável, aplica-se ao caso o princípio do in dubio pro reo.
4. A dúvida razoável nas Ações Penais do STF
Dentro do cenário de julgamentos abarcados pelo STF, a pesquisa jurisprudencial revela que substancial parte das ações penais que se aventuram no assunto da dúvida razoável pertencem a acórdãos de julgados da primeira turma do tribunal – notando-se comportamento inerte da segunda turma perante essa polêmica. A partir de uma análise refinada da jurisprudência do STF, foram encontradas determinadas ações penais que exemplificam a majoritária utilização dessa argumentação, quando incide o tema na discussão, sendo elas a AP 521/MT, a AP 676/MT, a AP 580/SP e a AP 883/DF.
Na ação penal originária 521, de relatoria da ministra Rosa Weber, o Tribunal, de forma unânime, optou pela absolvição do réu nos crimes licitatórios por falta de prova, uma vez que, a conforme o entendimento da própria relatora, a acusação criminal há de ser comprovada acima de qualquer dúvida razoável, o que não entendeu ocorrer no caso concreto. Em consonância com esse entendimento, na ação penal 676 também de relatoria da mesma ministra, o réu, o deputado federal Benjamin Gomes Maranhão Neto, do mesmo modo foi absolvido dos crimes de quadrilha, corrupção passiva e fraude à licitação, sob o julgamento da turma de que não incidiam provas suficientes para a condenação do réu.
Igualmente, na ação penal 580, de relatoria de Rosa Weber, o réu Beto Mansur, então prefeito da cidade de Santos, acusado de permitir a realização de evento público sem o devido processo licitatório – e, também não contemplado pelas hipóteses legais de inexigibilidade de licitação -, infringindo o art. 89 da lei de licitações 8.666, foi absolvido.
Nessa ocasião, a ministra Rosa Weber alegou em seu voto que “a presunção de inocência, no processo criminal, é [...] uma regra de prova” e “como regra de prova, a formulação mais precisa é o standard anglo-saxônico no sentido de que a responsabilidade criminal deve ser provada acima de qualquer dúvida razoável”. Seguiram o seu voto os ministros Luiz Roberto Barroso, Edson Fachin e Marco Aurélio, todos fazendo convergindo explicitamente com a opinião da relatora.
Todavia, o ministro Luiz Fux agregou que:
A doutrina e a jurisprudência preconizam que, no processo criminal, máxime para condenar, tudo deve ser claro como a luz, certo como a evidência, positivo como qualquer expressão algébrica. Condenação exige certeza, não bastando alta probabilidade, sob pena, na lição de Carrara, de se transformar o princípio do livre convencimento em arbítrio judicial[16].
Levando em consideração as demais ações penais, como por exemplo a ação 883 do Distrito Federal, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, é perceptível o mesmo padrão de absolvição, alegando o STF que não havia provas documentais ou testemunhais suficientemente necessárias a fim de o réu, o deputado federal Izalci Lucas fosse condenado pelo crime popularmente conhecido por “caixa dois”. Ainda nessa ação penal, o ministro Alexandre de Moraes fez referência ao pelo ministro Celso de Mello, no HC 84580 de sua relatoria:
AS ACUSAÇÕES PENAIS NÃO SE PRESUMEM PROVADAS: O ÔNUS DA PROVA INCUMBE, EXCLUSIVAMENTE, A QUEM ACUSA. - Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado (HC 84580, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/08/2009)[17].
A análise dessa pequena amostra de ações penais apresentadas até então nos revela: i) um padrão de absolvição nos casos em que a dúvida razoável é utilizada como recurso, normalmente em prol do réu; e ii) um debate muito raso e por vezes confuso nas turmas do STF. De fato, o instituto da dúvida razoável é recorrentemente reverenciado pelos ministros, no entanto, pouco se discute a respeito da importação desse artifício num contexto estruturalmente tão diverso do norte-americano de sua origem.
É finalmente, com a ação penal 676, onde encontramos a mais profunda (porém, ainda tímida) discussão a respeito da incidência do standard de prova “para além da dúvida razoável” no STF até então. No caso sob comento, a denúncia contra o deputado federal Benjamin Maranhão foi recebida inicialmente pela Segunda Vara Federal de Mato Grosso em dezembro de 2009, uma vez nessa época ele não detinha foro por prerrogativa de função. A denúncia afirmava que o deputado integrava um esquema criminoso para a aquisição superfaturada de ambulâncias fornecidas pelo grupo Planan. Somente em meados de 2011, Maranhão informou a sua condição de deputado federal, assim, o STF, por meio de sua competência, foi motivado a analisar e julgar a matéria.
No acórdão da seguinte ação penal, que é de 2017, a ministra Rosa Weber apresentou a mesma argumentação já utilizada na ação penal 521, que é de 2014:
(...), não há acervo probatório suficiente a embasar decreto condenatório quanto ao delito corrupção passiva, da mesma maneira que concluí quanto ao delito licitatório.
Como sabido, na presença de dúvida razoável não pode haver condenação criminal sob pena de violação da presunção de inocência, princípio cardeal no processo penal em um Estado Democrático de Direito.
O princípio teve longo desenvolvimento histórico, sendo considerado uma conquista civilizatória. Embora sua origem perca-se no tempo, a formulação da máxima latina correspondente (item quilbet presumitur innocens nisi probetur nocens) remonta ao trabalho do canonista francês Johannes Monachus, já no século XIV (sobre a origem da máxima, dentre outros, PENNINGTON, Kenneth. Innocent until proven guilty: The origins of a legal maxim. In 63 The Jurist 2003, p. 106-124).
A presunção de inocência, no processo criminal, é tanto uma regra de prova como um escudo contra a punição prematura. Como regra de prova, a formulação mais precisa é o standard anglo-saxônico no sentido de que a responsabilidade criminal deve ser provada acima de qualquer dúvida razoável (proof beyond a reasonable doubt), o qual foi construído durante os séculos XVIII e XIX na Inglaterra e nos Estados Unidos (conforme, dentre outros, SHAPIRO, Barbara J. Beyond reasonable doubt and problable cause: Historical perspectives on de Anglo- American Law of evidente. Los Angeles: University of Califórnia Press, 1991). Tal standard também foi consagrado no art. 66, item 3, do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (Para proferir sentença condenatória, o Tribunal deve estar convencido de que o acusado é culpado, além de qualquer dúvida razoável).
Isso impõe a necessidade de um quadro probatório robusto, com provas de todos os elementos da acusação. As provas devem ser aptas a gerar a responsabilidade criminal do acusado, com o afastamento de todas as hipóteses contrárias, desde que razoáveis, a essa convicção[18].
No voto supracitado, a ministra resgata o surgimento da dúvida razoável nos Estados Unidos e na Inglaterra. Segundo o autor Miller Shealy[19], o primeiro caso a tratar da definição de dúvida razoável em território norte-americano ocorreu no julgamento do réu pela acusação de bigamia, em 1880, em Utah – o célebre caso Miles x United States.
Nesse caso, a Suprema Corte foi acionada para definir o termo, isto é, de que forma que a culpa do réu deveria ser demonstrada “para além da dúvida razoável”, concluindo que a prova além da dúvida razoável é aquela que produz uma espécie de convicção permanente, uma certeza moral de que o fato realmente existiu. Um mero balanço de prova não é suficiente. Dessa forma, um jurado em um determinado caso penal não deve condenar o réu de imediato, a condenação só é passível de acontecer quando as evidências forem capazes de excluir todas e quaisquer dúvidas razoáveis.
Como vimos, a aplicação do standard mínimo de prova “para além da dúvida razoável”, uma realidade nos tribunais de todo o país, vêm sendo de forma ainda tímida discutida pela primeira turma do STF, principalmente graças ao protagonismo da ministra Rosa Weber, geralmente, para promover a absolvição dos réus, em casos onde é extremamente difícil a comprovação tanto da materialidade quanto da culpabilidade de seus autores – tais como os crimes do colarinho branco. Em 2018, porém, uma decisão da segunda turma do tribunal quebrou com esse paradigma de aplicação da dúvida razoável.
A ação em questão é a 996/DF, que condenou o deputado Nelson Meurer, do Partido Progressista do Paraná, pela prática de crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Rompendo com o padrão de absolvição com base na dúvida razoável, o ministro Ricardo Lewandowski disse em seu voto:
A corroborar tal raciocínio, veja-se que dos elementos de convicção existentes nos autos pode-se extrair que, no período em que o deputado Nelson Meurer exerceu a liderança do PP, a ele foi destinado um maior volume de dinheiro, com maior periodicidade na entrega, cessando o recebimento desse benefício ilegal exatamente no momento em que deixou aquela função”. Apenas no período em que Meurer esteve à frente da liderança do PP é que sua responsabilização penal pode ser caracterizada a estreme de qualquer dúvida razoável[20].