VIII – A EXECUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Os direitos sociais, como direitos fundamentais, são valor supremo inerente a democracia cuja implementação não admite retrocesso, nascidos que foram de denso consenso democrático.
Aliás, não poderia ser de outra forma, pois democracia é defesa dos direitos humanos e mais princípio majoritário.
Tão vastos e qualitativos são os direitos humanos que se afiguram limitação ao poder constituinte originário. Dir-se-á, talvez, ao contrário, que, quando tivemos um modelo tal qual o de reforma constitucional introduzida na Argentina, em 1994, os tratados que versem sobre direitos humanos terão dignidade constitucional que não acontece no Brasil.
Visto isso, necessário que o processo, enquanto instrumento no moderno estado democrático, se afigure efetivamente ágil e adequado para a defesa desses direitos que serão levados ao Estado-juiz[75]
Ouso dizer que mesmo o artigo 461, § 5.° na moderna redação que está tentando permitir a eficácia executiva lato sensu, na medida em que autoriza a tomada de providências destinadas à obtenção do resultado prático equivalente independente do concurso da vontade do réu, no próprio processo em que se proferiu a decisão, operando-se a substituição da conduta do demandado pelo próprio Estado, através de seus agentes, não basta ao Ministério Público e aos legitimados a tutela da ação civil pública, art. 5.° da Lei n.° 7.347.
Digo que não basta, porque mais precisa ser feito.
A multa diária, com o mecanismo de indução, como está na redação do art. 12, § 2.° da Lei n.° 7.374/85, não tem efetividade à norma, pois incompatível com o regime geral da tutela antecipada sob o regime de execução provisória (art. 588 do CPC). Melhor até seria ter-se tal dispositivo como revogado pelo art. 84 do Código de Defesa do Consumidor, que lhe é posterior.
Por outro lado, a cobrança de débitos fundados em responsabilidade civil, por conta da redação dada pela Emenda Constitucional n.° 30 da CF ao artigo 100, na medida em que a execução contra a Fazenda Pública depende do trânsito em julgado, é uma afronta a implementação da tutela ressarcitória do dano pelos prejuízos causados pela falta de políticas públicas, pois só estão livres do precatório os débitos de pequeno valor (art. 100, § 3.° da CF).
E a prisão civil? No sistema do Common law, é tão grande o respeito pelas decisões judiciais que há aplicação prevista e efetivamente aplicada de prisão. Em verdade, a eficiência do caráter in personam da injuction e de specific performance é assegurada no modelo anglo-saxão através da ameaça de sancionamento por contempt of court seja a título de prisão (por até 2 anos) ou sequestro de bens do transgressor, medida necessária no Brasil, a correta implementação de políticas públicas.
Mesmo esse sequestro, não tem caráter cautelar, mas executivo, pois diverso da mareva injuction, identificada com nossos arrestos e sequestros cautelares.
Hoje, no Brasil, tão prisão civil seria inviável, face a garantia inserida no artigo 5.°, LXVII, da CF, que veda a prisão civil por dívida?
Preocupa o fato de que a doutrina, estudando o exemplo da França, não enxergou na contumácia obstáculo para o julgamento do mérito. Na Alemanha, o objetivo foi de vencer e debelar contumácia, vencendo a desobediência, no escopo de tutelar a autoridade do Estado.
Há os que entendem, como Donaldo Armelin[76], que a Constituição proibiria apenas a prisão por dívida, no sentido de inadimplemento da prestação pecuniária, pois o emprego da prisão civil como mecanismo coercitivo para resguardar a autoridade jurisdicional não encontra obstáculo. Trata-se de desobediência ao dever constitucional não a simples ônus.
Por certo, Eduardo Talamini[77], opina que o preceito constitucional consagrou essa hipótese como exceção porque a regra geral é a vedação de qualquer hipótese de prisão civil e, ainda, ademais, a prisão civil do depositário infiel funciona como mecanismo de preservação da autoridade do juiz.
Lembremos da experiência alemã, onde o uso de remédios de coerção permitiu a assimilação da prisão para assegurar a efetividade da sentença.
Em verdade, a implementação de política pública não é mero inadimplemento de prestação pecuniária. É mecanismo de indução para fazer valer direito fundamental que determina deveres positivos do Estado em sua realização. Cabível, pois, a prisão civil da autoridade competente que retarda cumprimento de ordem judicial visando cumprimento de política pública.
Não se trata de exercício de interpretação extensiva, como proposto por Pontes de Miranda[78] com relação ao artigo 885 do CPC que prevê a prisão do devedor que desatenda ordem judicial de devolução do título, que trataria de meio para impedir que alguém se junte a entrega.
Autores, do nível de Marinoni, defendem até que a prisão civil estaria entre as medidas atípicas que o juiz pode adotar mesmo de ofício[79] para efetivar a tutela específica prevista no art. 461, § 5.° do CPC. Nessa linha, recorre-se ao mesmo Marinoni, para quem o poder de ofício de atuação do magistrado (art. 797 do CPC) não fica circunscrito aos casos expressos autorizados, mas, outrossim, a outros casos excepcionais[80].
Tal medida que permite alcançar a garantia de uma tutela jurisdicional satisfativa plena e exaustiva segue a trilha do Zwangsstraf, § 888 do ZPO, correspondente ao contempt of court anglo-americano, evitando a desmoralização da decisão judicial.
Do contrário, pasmem, cairemos em sede de ilícito de menor potencial ofensivo, se for caso de prevaricação (art. 76, Lei n.° 9099/75) à luz de proposta de transação (art. 76, § 2.° ), abdicando o Estado de impor a prisão, substituindo-a por multa de pena restritiva (art. 76, caput), tornando remota a possibilidade de condenação, Lei n.° 10.259/2001 (juizados especiais criminais), face ao máximo de 1 (um) ano de pena.
Por fim, notável seria, nos casos de deveres de fazer, tão qual a construção e operacionalização de presídios, hospitais, instalações sanitárias, necessárias de saneamento básico, obrigatórios a implementação do direito de segurança e saúde da população, num contexto de necessidade e adequação (proporcionalidade), que envolvam condutas prolongadas, a nomeação de um monitor no contexto de uma tutela executiva latu senso, para supervisionar o andamento do cumprimento da decisão, a ser remunerado pela Administração, tal qual na institucional decrees do direito anglo-saxônico.
Lembro, Raquel Denize Stumm[81], quando aborda com percuciência que não seria dado imiscuir-se em matérias de cunho político constante do mérito das leis, a não ser quando instados a proteger os direitos fundamentais contra agressões injustificadas, pois cumpre uma obrigação imposta pelo sistema jurídico.
Medite-se, pois, no estágio atual de inefetividade de cumprimento de medidas judiciais contra o Pode Público. Estão, aí, a redação dada pela Medida Provisória n.° 2.180, ao art. 4.°, § 9.° , da Lei n.° 8.437/92, na medida em que suspensão da tutela concedida contra a Administração pelo Presidente do Tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal e, outrossim, o art. 100 da Constituição, com a redação da E. Constitucional n.° 30/2001, que vincula a expedição de precatórios ao trânsito em julgado. São, porém, inconstitucionais, pois, em afronta ao art. 5.°, XXXV, da CF, estreitam o acesso à justiça contra a Administração, impedindo a realização concreta de políticas públicas.
Em matéria de políticas públicas, não há que falar em “usurpação” ou “intromissão indevida” quando de leva em conta que cada indivíduo é credor de boa gestão de negócios públicos, tendo título originário para dela participar ativamente da implementação desses direitos sociais, cujo grande guardião é o Ministério Público, numa luta sem tréguas contra a miséria e o quadro larvar de pobreza que insistem em se perpetuar no País.
Do contrário, colocaríamos o processo perigosamente contra a realidade social e na contra-mão da doutrina processual moderna que busca técnicas capazes de permitir maior efetividade da prestação jurisdicional.
Por outro lado, não pode ser invocado pelo Poder Público o princípio da separação de poderes[82]. É o que já se afirmou com relação a sentença proferida pelo ilustre juízo da 5.ª Vara Civil da Comarca de Sorocaba, comentada por Rodolfo de Camargo Mancuso[83] ao obrigar a Prefeitura Municipal daquele Município a obrigação de submeter a prévio tratamento todos os afluentes advindos da rede pública de coleta de esgotos antes de seu lançamento ao Rio Sorocaba.
Correta a assertiva de que o Ministério Público, na tutela do meio ambiente, como de todos os interesses difusos ou coletivos, deve ser admitido a recorrer ao Judiciário para obrigar a Administração a agir, quando sua atividade prevista em lei é essencial.
Não se fale em insindicabilidade quando a lei obriga a Administração a um determinado comportamento, uma vez que havendo o dever de atuar, não há margem para discricionariedade técnica ou considerações políticas. O descumprimento do dever de atuar implica em correção pelo Judiciário.
Mesmo que a lei regulasse um comportamento discricionário da Administração, o caminho ainda assim seria de exigir um dever de adotar a melhor solução, pois se adotar outra, haverá violação à legalidade e aquela conduta censurada deverá ser objeto de anulação.
Superada está, como se proclamou nesse trabalho, as formas características do Estado liberal que muito serviram a burguesia, num contexto de confiança e segurança jurídica, próprios de um Estado de Direito, que se formou no século XIX.
Estamos num Estado Democrático de Direito, em caminho diametralmente oposto ao modelo que preceituava Administração forte, de origem no pensamento de Hegel[84]. Ali, o cidadão vivia sob a égide de um corporativismo, que o pretexto de defesa da família, das matizes e berços históricos e até da religião, como se observou sob o Estado-Novo de Salazar (Constituição Portuguesa de 1933), em Portugal, na Espanha, entre 1935 e 1975, repugnou a cidadania.
O Estado Liberal presta-se a servir aos mecanismos de mercado e concebe, no máximo, formas de delegação do Poder Público.
O reflexo das concepções de Kant, surgem no processo, onde a distinção entre as ações de força do direito medieval e as condenatórias apagou-se, no século XIX, quando sob influência da doutrina de August Thon, inspirador do normativismo jurídico de Kelsen, reduziu o direito como um todo ao direito obrigacional. Era o Estado de Direito em sentido formal, em que a validade dos atos da Administração será encontrada na lei suficiente para segurança jurídica reivindicada pela burguesia.
Como reflexo dessa tese, tão bem enfrentada por Ovídio Baptista da Silva[85] muitos especialistas desconsideram a distinção básica entre ações pessoais e reais, onde está a base da dicotomia sentenças condenatórias, que tenham por base uma obrigação e as executivas, quando a ação resulte de uma pretensão real que tenha por fim obter uma coisa sobre o qual ocorra o direito litigioso.
Entenda-se assim o posicionamento de Chiovenda[86] de que o direito real não existe no plano da relação processual, na medida em que tanto o direito real quanto o direito de crédito geram uma ação condenatória, porquanto, para aquele juízo, o direito absoluto apresentar-se-ia “como obrigação”.
Bem expõe o Professor Luiz Guilherme Marinoni[87], que o problema, atualmente, é diferente da ótica liberal, preocupado apenas num adequado sistema de garantias e da liberdade do cidadão. Procura-se concretizar a Constituição, em interpretação aberta e discursiva, tutelando os interesses do cidadão em sua inserção numa sociedade justa, solidária e equilibrada.
Mister a participação do cidadão exigindo melhor gestão da coisa pública. Afinal, “todo poder emana do povo, que o exerça por meio de seus representante ou diretamente” (art. 1.°, § 1.° da Constituição).
O Estado Democrático de Direito exige participação do cidadão, que tem o Ministério Público como seu advogado, para busca de imposição de políticas públicas já estabelecidas na Constituição ou na Lei, como é o caso da gestão ambiental (art. 255 da Constituição).
Absurdo o amargo regresso a categorias jurídicas, que se sedimentaram na ditadura militar, como a suspensão da segurança (art. 4.° da Lei n.° 4.348/64), que por critérios metajurídicos, balizados em política econômica de ideologia conservadora de reforço dos interesses da Administração, não permitem a repristinação de liminares obtidas contra o Poder Público e suspensas pelo Presidente do Tribunal (juízo ad quem), mantendo-a moribunda, mesmo diante de pronunciamentos de mérito contrários, até o trânsito em julgado[88].
Necessário, pois, que se veja o Estado de Direito, no mundo moderno como aberto a pluralidade de concretizações, cujo limite é constituído pelos valores de reconhecimento à dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento dos direitos fundamentais, dentre os quais, se inclua o de implementação de políticas públicas, e a efetividade processual das providências judiciais necessárias a ela.
A participação através do processo, com manejo das ações civis públicas, implica, sem dúvida alguma, num controle da atividade estatal pelo Judiciário, sendo o processo civil importante veículo de controle social, o que equivale a ver no processo moderno uma forma de participação, como já percebeu no passado Ada Pellegrini Grinover.
Se a vontade política produz programas de atendimento à sociedade, não resta dúvida de que ser implementados como exige a própria vontade popular.
Não há que falar em usurpação ou intromissão indevida quando se leva em conta que cada indivíduo, na condição de destinatário e credor da boa gestão dos negócios públicos, tem legitimidade para dela participar ativamente. Longe estamos do tempo da ordem econômica de Adam Smith, num mundo ideal de Kant.
A visão de Kant amolda-se a Locke quanto ao cidadão-proprietário economicamente influente numa linha justificativa da ascendente camada burguesa. É essa míope leitura da realidade que permite identificar as reivindicações de excluídos como subversão[89].
A democracia participava, que se exalta, não se prende necessariamente a linha poética de Rousseau, para quem os atingidos pelas decisões, os outorgantes da norma devem ser idênticos ao conjunto de destinatários da norma exigindo: república, igualdade, lei, vontade geral e bem comum.
No entanto, o imperativo categórico kantiano não leva em conta excluídos, mas sim uma sociedade ideal voltada para a liberdade.
O exercício do status positivus, que significa pretensão à proteção jurídica visando a distribuição de prestações pelo Estado, tem como necessário colorário a luta pela exclusão, que deve alcançar a igualdade de todos, no tocante à qualidade de vida, dignidade humana, acesso aos direitos fundamentais.
Bem sintetiza Friedrich Müller[90] que uma democracia levada a sério exige mais que eleições de quatro em quatro anos, para legitimar uma democracia formal burguesa. Uma democracia levada a sério demanda o cumprimento das pretensões do “status negativus” e do “status positivus” da prova, exigindo que a vontade popular, como um todo, o direito de cada pessoa, seja respeitado.
Do contrário, ao absurdo de abdicar-se de direitos fundamentais viver-se-ia, lamentavelmente, uma democracia nominal, sem povo, na linguagem de Samuel Pufendorf[91], “irregulare aliquod corpus et monstro similte”, isto porque a exclusão deslegitima (art. 5.°, da Constituição de 1988).
A experiência frustrada com o mandado de injunção[92] e a discreta experiência com as argüições de preceito fundamental no Supremo Tribunal Federal, não devem inibir o fortalecimento da obrigatoriedade dos direitos humanos e a inserção dos subintegrados contra a ação dos sobreintegrados.
Esse o papel a ser exercido pelo Judiciário na implementação de políticas públicas, em defesa da democracia, que tem como um dos seus grandes guardiães o Ministério Público.
Isso afirmamos porque, à luz de Jurgen Habermas[93], o Direito é 2(duas) coisas ao mesmo tempo: um sistema de conhecimento e um sistema de ação. Longe, pois, estamos da leitura moral dos direitos humanos (como em Kant), uma perspectiva individualista. Isso porque o Direito é um sistema de ação e como tal direitos participatórios, oriundos de normas válidas, que são aquelas com os quais todos os possíveis afetados possam concordar como participantes em discursos racionais no intuito de alcançar o entendimento mútuo, onde surge a força do convencimento, matiz e fonte da vinculação do direito.
O direito do cidadão a políticas públicas corresponde a um direito a igual consideração e respeito na decisão política sobre como tais bens e direitos devem ser distribuídos[94].
Não se fala num eu-cidadão individualista, tal qual o eu-puro de Fichte, mas um eu-social, pautado de experiências, que pauta sua conduta subordinando seus impulsos e objetivos pessoais ao que for considerado, em consenso social, como o objetivo da sociedade.
Afinal, o moderno conceito de justiça, exige um contrato social em que cada pessoa deve ter a mais ampla liberdade política compatível com igual liberdade para todos, e que as desigualdades em termos de poder, riqueza, renda, não devem existir a não ser na medida em que favoreçam o benefício absoluto dos membros em pior situação na sociedade[95], na lição de John Rawls.
Quando se exige a implementação de políticas públicas, proíbe-se o Estado de proibir, pois isso significa um insulto a Democracia.