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Responsabilidade civil do Estado à luz do Estatuto de Defesa do Torcedor no futebol brasileiro

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2. O ESTATUTO DE DEFESA DO TORCEDOR

O ordenamento jurídico brasileiro é composto por normas consubstanciadas em leis, princípios, costumes, jurisprudência que regem o convívio em sociedade nas diferentes esferas humanas. No âmbito esportivo nacional, o Estatuto de Defesa do Torcedor (EDT), conhecido apenas como Estatuto do Torcedor, foi instituído a partir da Lei nº 10.671/03 para orientar aqueles que têm algum tipo de envolvimento com o esporte.

Contextualizando, o futebol brasileiro, que, em meados da década de 1990, era motivo de escândalos devido à ocorrência de irregularidades, especialmente aquelas relacionadas à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), aos frequentes tumultos, à violência e ao cambismo nos estádios, impulsionou a criação da referida Lei após investigações de duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) (PRESTES, 2010, p. 94-95). Apesar dos avanços no ano de 2003, somente em 2010, o EDT passou por mudanças mais significativas com a Lei nº 12.299/10.

De modo geral, o Estatuto do Torcedor surgiu com o fito de regular questões acerca de transparência na organização dos eventos, condições de acesso e permanência do torcedor no ambiente esportivo, torcidas organizadas, fraudes nos resultados das partidas e fornecimento, desvio e facilitações na distribuição dos bilhetes – ações tipificadas como crime –, regras de infraestrutura, por exemplo, destinadas à higiene e ao transporte.

Além dos pontos supracitados, o dispositivo em evidência destaca aspectos relacionados à proteção e à segurança daqueles que frequentam os recintos desportivos, tópico que é central neste estudo. Assim, a Lei nº 10.671/03, junto da Lei nº 12.299/10, trata de medidas destinadas a conter a violência nas arenas e nos seus arredores, inclusive durante o trajeto de ida e volta dos torcedores, tipificando como crime condutas que promovem tumulto e incitam a violência, a exemplo da invasão do local restrito aos competidores.

Apesar de ter origem no contexto futebolístico, o Estatuto destina-se às diversas categorias desportivas profissionais4. Como pontua Simão (2011, p. 15-16), as diversas manifestações de desporto são o desporto educacional, praticado nos sistemas de ensino, o desporto de participação e o desporto de rendimento, mas somente esse último é considerado profissional, por ser caracterizado pela remuneração firmada em contrato formal de trabalho entre atleta e entidade esportiva.

Quanto a isso, o autor, assim, caracteriza:

  • desporto educacional, praticado nos sistemas de ensino e em formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer;

  • desporto de participação, de modo voluntário, compreendendo as modalidades desportivas praticadas com a finalidade de contribuir para a integração dos praticantes na plenitude da vida social, na promoção da saúde e educação e na preservação do meio ambiente;

  • desporto de rendimento, praticado segundo normas e regras de prática desportiva, nacionais e internacionais, com a finalidade de obter resultados e integrar pessoas e comunidades do país e estas com as de outras nações (2011, p. 15-16).

Ressalta-se, ainda, que a citada Lei é resultado de uma demanda social, como atesta Prestes (2010, p. 19-20), propiciando um caráter moralizador aos esportes nacionais e um novo olhar sobre o torcedor. A partir disso, recorrendo a Azevedo (2008, p. 17-18), pode-se afirmar que o torcedor passou a ser visto como consumidor, enquanto a entidade organizadora do evento passou a ser considerada uma fornecedora de serviços, como bem indica o art. 3º da Lei nº 10.671/035. É nessa perspectiva que, normatizando os códigos do esporte moderno, o EDT assemelha-se ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) e, de certo modo, mantém implícita a existência do chamado torcedor-consumidor (CAMPOS et al., 2008, p. 15).

Sendo assim, as pessoas, ao comprarem os ingressos para as partidas, assumem a condição de consumidoras, as quais possuem direitos que devem ser observados tanto pelas entidades organizadoras quanto pelo Estado. Entre esses direitos, destaca-se a garantia de o indivíduo ter a sua incolumidade respeitada, devendo os responsáveis pela segurança tomar medidas de prevenção a fim de coibir ações de violência física que, porventura, possam ocorrer, em consonância com o Estatuto de Defesa do Torcedor.

Quanto a isso, Azevedo (2008, p. 29-30) destaca o aspecto profilático como fundamental no que diz respeito à integridade humana, de modo que a não observação desse aspecto central pode acarretar danos passíveis de reparação pelo Estado ou pela entidade promotora do evento esportivo, caracterizando a responsabilidade civil.

Sob uma ótica mais peculiar, os artigos que tratam da segurança do torcedor, de modo particular os que se referem à segurança preventiva oferecida pelo Estado, merecem atenção especial, dado o atual contexto de violência urbana que adentrou as praças desportivas e o dever do Poder Público de assegurar a paz social e a manutenção da ordem sob pena de responsabilidade.

2.1. DISPOSITIVOS DO ESTATUTO DE DEFESA DO TORCEDOR ATINENTES À RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Na doutrina atual, a temática aqui abordada ainda se mostra incipiente. Nesse contexto, cabe a essencial ressalva de que a análise e a interpretação dos dispositivos do EDT não são, de certo modo, aprofundadas. Isso se dá em virtude do reduzido número de autores que exploram esse conteúdo e que, muitas vezes, se limitam a transcrever a literalidade da Lei, apresentando comentários insuficientes e superficiais, diferentemente do que ocorre com o conteúdo de responsabilidade civil, o qual é investigado por vários doutrinadores.

Considerando tal ressalva, no que tange, especificamente, à responsabilização civil estatal e sua íntima ligação com a referida Lei, foco central deste estudo, mostra-se oportuna uma análise pormenorizada dos arts. 1º-A, 13, 13-A (incisos II, III, VII, VIII e IX), 14 (incisos I e II) e 17 (§1º), os quais serão transcritos e comentados doravante.

Art.1º-A. A prevenção da violência nos esportes é de responsabilidade do poder público, das confederações, federações, ligas, clubes, associações ou entidades esportivas, entidades recreativas e associações de torcedores, inclusive de seus respectivos dirigentes, bem como daqueles que, de qualquer forma, promovem, organizam, coordenam ou participam dos eventos esportivos.

Nota-se que esse dispositivo, de modo generalizado, lança sobre todos os envolvidos nos eventos esportivos, desde o Poder Público até o torcedor, a obrigação de zelar pela segurança, revelando-se um dispositivo de cunho social e jurídico, uma vez que expõe a condição de cidadão tanto em uma perspectiva sociológica como em uma perspectiva jurídica.

Considerando o caráter jurídico do artigo, Lopes (2011, p. 1) destaca a existência da responsabilidade solidária entre pessoas de Direito Público e de Direito Privado e, de certo modo, deixa claro que o próprio EDT especifica, em artigos seguintes, as particularidades das obrigações de cada um.

Art.13. O torcedor tem direito à segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas.

Nesse dispositivo, destaca-se o direito à segurança, também estabelecido na Carta Magna como um direito social6. Essa norma parece consubstanciar e nortear todos os outros dispositivos que tratam de prevenção da violência, uma vez que somente se pode falar de prevenção se o direito à segurança for um direito garantido daqueles que frequentam as praças esportivas.

A partir dessa perspectiva, tem-se o art. 144. da CF/88, o qual disciplina que é dever do Estado, por meio dos órgãos da polícia, e responsabilidade de todos preservar a ordem e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, destacando-se a responsabilidade civil estatal em eventuais casos de violência.

Art. 13-A. São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei:

[...]

II – não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência;

III – consentir com a revista pessoal de prevenção e segurança;

[...]

VII – não portar ou utilizar fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos ou produtores de efeitos análogos;

IX – não invadir e não incitar a invasão, de qualquer forma, da área restrita aos competidores.

Apesar de esses incisos preceituarem determinadas condutas do torcedor, dirigindo-se somente a ele em um primeiro plano, é possível observar, implicitamente, a relação entre o Estado e o efetivo cumprimento das determinações contidas nessas linhas.

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Nesse cenário, quanto ao inciso II, Gomes et al. (2011, p. 36) afirmam que transportar, deter ou portar quaisquer instrumentos capazes de servir para a prática de violência configura crime previsto no próprio Estatuto. Assim, portadores de guarda-chuvas e rádios de pilha, que podem ser utilizados para agredir outras pessoas ou ser lançados em campo, muitas vezes são impedidos de entrar nos estádios, cabendo à Polícia Militar decidir, após uma análise minuciosa dos riscos existentes em cada caso específico, a medida mais adequada (2011, p. 38).

Ainda há o destaque para bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou suscitar atos violentos. Nesse tocante, Gomes et al. (2011, p. 39-40) compreendem que não há proibição da venda de bebidas alcoólicas nos locais de realização dos eventos desportivos, mas somente a proibição da entrada no recinto daquele que portar bebida. Para exemplificar esse entendimento, os autores citam latas ou garrafas de vidro contendo líquidos, alcoólicos ou não, e citam o fato de que, nos estádios, bebidas em geral são acondicionadas em copos plásticos, objetos com um menor potencial lesivo.

Tal pensamento, porém, parece fazer confusão entre bebidas ou substâncias suscetíveis de gerar atos de violência e objetos que podem ser utilizados como arma. Uma lata ou uma garrafa de vidro, por exemplo, independentemente de conter líquidos, deve ser vista como objeto nocivo.

Diferentemente, a bebida em si, de modo particular a bebida alcoólica, já deve ser entendida como bebida ou substância proibida ou suscetível de gerar a prática de ações tempestuosas, podendo fazer parte desse grupo outras drogas. Desse modo, desse inciso, pode-se concluir que, ainda que o legislador não tenha feito menção expressa a bebidas de teor alcoólico, estas não devem ser comercializadas nos ambientes esportivos, já que podem desestabilizar física e psicologicamente indivíduos, tornando-os agressivos enquanto permanecem nos estádios.

Seguindo a lista de proibições, o inciso VII veda a posse e a queima de fogos de artifício e outros engenhos pirotécnicos de modo geral, uma vez que tais instrumentos são um grande risco quando não utilizados para a obtenção apenas de efeitos audiovisuais. Os itens elencados nesse inciso poderiam, a priori, enquadrar-se nos objetos citados no dispositivo anterior, mas entende-se que, por serem elementos, muitas vezes, considerados essenciais, principalmente nas festas de torcidas organizadas, mereceram destaque na Lei.

A discussão, até então, somente se focou em um lado da relação citada anteriormente: o torcedor. O Estado, mais especificamente a responsabilidade civil que lhe é atribuída, é considerado no momento em que tem o poder de coibir a entrada de elementos estranhos à ideal convivência entre os indivíduos. Isso pode ser feito mediante revista pessoal, como disposto no inciso III, a qual tem o intuito de encontrar objetos impróprios para ocasiões esportivas.

De acordo com Gomes et al. (2011, p. 43-44), a inspeção pessoal prevista no art. 240, §2º, do Código de Processo Penal (CPP) deve ter caráter sereno e contido a fim de resguardar a integridade física e moral das pessoas, especialmente das mulheres, que, preferencialmente, devem ser revistadas por outras mulheres. Os autores enfatizam também a obrigatoriedade da revista independentemente de fundada suspeita, de modo dissemelhante ao que prevê o art. 244. do CPP, sendo uma medida de prevenção geral em benefício do bem comum, legitimando a ação dos agentes públicos envolvidos.

Assim sendo, a responsabilidade recai sobre o Poder Público quando este falha na consecução de medidas profiláticas, pois, em algumas situações, a revista é inadequada e apressada devido ao despreparo dos profissionais envolvidos bem como ao grande contingente humano.

Já o inciso IX não requer muitas explicações, e a responsabilidade do Estado se materializa quando há uma lacuna no esquema de segurança proposto, possibilitando que apreciadores mal-intencionados dos espetáculos esportivos cometam atos de vandalismo, ao invadirem os locais privativos dos competidores com a destruição, por exemplo, de grades, redes, vestuários, bancos, além da possível violação da integridade física e moral dos partícipes.

Art. 14. Sem prejuízo do disposto nos arts. 12. a 14 da Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990, a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento esportivo é da entidade de prática esportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes que deverão:

I – solicitar ao Poder Público competente a presença de agentes públicos de segurança, devidamente identificados, responsáveis pela segurança dos torcedores dentro e fora dos estádios e demais locais de realização de eventos esportivos;

II – informar imediatamente após a decisão acerca da realização da partida, dentre outros, aos órgãos públicos de segurança, transporte e higiene, os dados necessários à segurança da partida, especialmente:

a) o local;

b) o horário de abertura do estádio;

c) a capacidade de público do estádio; e

d) a expectativa de público.

Tendo como base o já citado art. 6º da Constituição Federal de 1988, Duarte (2004, p. 1) exalta o dever genérico do Estado de proporcionar segurança a todos os cidadãos, torcedores ou não, e, no âmbito esportivo, isso independe de qualquer requisição.

Esse pensamento vai ao encontro do que diz Lopes (2011, p. 1) sobre a polícia, como agência estatal, ter obrigação indelegável de promover a segurança, mantendo a ordem em qualquer lugar e em qualquer situação em que exista probabilidade de dano aos bens jurídicos mais importantes do cidadão, como a vida e a integridade corporal. Desse modo, apreende-se que, independentemente de o art. 14. atribuir responsabilidade à entidade detentora do mando de jogo, é dever do Estado garantir proteção aos torcedores.

Quanto a isso, Gomes et al. (2011, p. 50), em relação ao inciso I, apesar de serem incisivos ao afirmarem que o policiamento preventivo é responsabilidade da Polícia Militar, ressalvam que esse órgão somente terá obrigação de prestar serviços se requisitos mínimos que permitam uma atuação regular forem preenchidos, a exemplo de vistorias feitas pelo Corpo de Bombeiros.

Sobre o inciso II, mais especificamente em relação à segurança, é evidente que a Polícia Militar precisa ser comunicada, recebendo as informações corretas e completas, para adotar as medidas mais adequadas com base nos dados recebidos. É fato que, se as entidades fornecerem as devidas informações e, ainda assim, ocorrerem tumultos devido à ineficiente ação policial, fica configurada a responsabilidade estatal.

Art.17. É direito do torcedor a implementação de planos de ação referentes a segurança, transporte e contingências que possam ocorrer durante a realização de eventos esportivos.

§1º - Os planos de ação de que tratam o caput serão elaborados pela entidade responsável pela organização da competição, com a participação das entidades de prática desportiva que a disputarão e dos órgãos responsáveis pela segurança pública, transporte e demais contingências que possam ocorrer, das localidades em que se realizarão as práticas da competição.

O art. 17. parece ser uma extensão do art. 13. Ora, se o art. 13, combinado ao art. 6º da Constituição vigente, determina que o torcedor tem direito à segurança, também será direito dele a implementação de planos de segurança previstos no art. 17, elaborados solidariamente, conforme §1º, pela entidade responsável pela organização da competição, pelas entidades de prática desportiva e pelos órgãos responsáveis pela segurança pública.

Nesse sentido, a CBF, no ano de 2010, preparou um plano geral de ação de segurança, transportes e contingências, ressalvando a impossibilidade de se preverem detalhes e minúcias específicos de cada cidade e de cada estádio e destacando a segurança pública como atribuição de responsabilidade dos governos estaduais (GOMES ET AL., 2011, p. 54-55).

Ainda no tocante às considerações sobre esse artigo, Duarte (2004, p. 1) ressalta que a apresentação de planos não exime as entidades de responsabilidade, bem como a ausência deles não exclui do Estado o dever de garantir segurança pública.

Concluindo esse momento da discussão, destaca-se a importância desse Estatuto, que, basicamente, configura uma especialização de alguns dispositivos contidos na Carta Magna brasileira, os quais promovem uma regulamentação geral em termos desportivos. É importante salientar também que a responsabilidade civil estatal extraída dos artigos analisados apenas ocorrerá se forem constatados os pressupostos da conduta, do dano e do nexo causal.

2.2. PRESSUPOSTOS PARA A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ANTE O ESTATUTO DE DEFESA DO TORCEDOR

Para estabelecer a estreita ligação entre os pressupostos formais referentes à reponsabilidade civil do Estado e às possíveis ocorrências no âmbito desportista a serem regidas pelo Estatuto de Defesa do Torcedor, é necessário, antes, revisitar a doutrina até então estudada, especialmente no que diz respeito às responsabilidades objetiva e subjetiva e direta e indireta e à interpretação do art. 37, §6º, da Constituição Federal de 1988, abaixo, novamente, transcrito:

As pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Inicialmente, tem-se que a doutrina majoritária extrai desse dispositivo apenas a responsabilidade objetiva do Estado, a qual prescinde de culpa, bastando a existência do dano e do nexo causal, sem que haja referência direta aos casos de ação ou omissão, e restando evidente a inferência de que haverá sempre responsabilidade objetiva estatal, independentemente da conduta que gerou o prejuízo. Nesse sentido, destacam-se autores como Meirelles (1998, p. 539) e Tartuce (2014, p. 345-349).

Diferentemente, Bandeira de Mello (2010, p. 1030-1033) é enfático ao declarar que dano causado por comportamento comissivo recai na responsabilidade civil objetiva do Estado, enquanto dano causado por comportamento omissivo recai na responsabilidade civil subjetiva do Poder Público, inclusive levando em consideração o dispositivo constitucional acima citado.

O referido autor fundamenta sua posição dizendo, acertadamente, que toda ação do Estado que possa atingir pessoal ou patrimonialmente um terceiro em benefício governamental ou da coletividade em geral e que ultrapasse os limites inerentes à vida em sociedade é consequência de um risco. Por isso, deve ser considerada objetiva a responsabilização civil estatal nessa situação.

Já no caso de existir omissão do Poder Público que acarrete prejuízos a outrem pela ausência, pela falha ou pela ineficiência de um determinado serviço, calcando-se na teoria subjetivista da culpa anônima, o aludido doutrinador, sabiamente, verifica a ocorrência da responsabilidade civil subjetiva do Estado (2010, p. 1032). Nessa mesma linha, outros autores podem ser citados, como Maria Helena Diniz (2013, p. 682) e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (1979, p. 487).

A doutrina, a exemplo de Cavalieri Filho (2012, p. 204-205), ainda apresenta a classificação da responsabilidade civil como direta e indireta. Nesse viés, parece adequado considerar a responsabilidade civil da Fazenda Pública como direta, tendo como base, principalmente, o princípio da impessoalidade, expresso no caput do art. 37. da Constituição, o §6º do mesmo artigo e o art. 43. do Código Civil, já mencionados.

Diante disso, é possível perceber que não há um exato consenso entre autores quanto à forma de se responsabilizar a Administração Pública pelos danos causados a terceiros, ficando a decisão sob incumbência do Poder Judiciário na análise dos elementos da responsabilidade civil: a conduta, o dano e o nexo causal.

2.2.1. A conduta

Existe uma íntima ligação entre a ação ou a omissão que causou danos e a voluntariedade do agente público envolvido. Por se esperar, por exemplo, que policiais executem seu ofício com consciência e domínio das próprias atitudes, percebe-se que a conduta ilícita, de modo geral, enseja a responsabilidade civil do Estado.

Nesse contexto, casos em que há confrontos diretos entre policiais e torcedores, muitas vezes, tornam-se conhecidos pelo uso da força brutal e desproporcional desses agentes públicos, gerando danos para as vítimas. Em situações desse tipo, por os prejuízos originarem-se de atos comissivos, não restam dúvidas de que a responsabilidade estabelecida é a objetiva tanto para a doutrina majoritária quanto para Bandeira de Mello (2010, p. 1030-1033), além de merecer destaque a responsabilidade considerada direta.

Como exemplo, em 2010, um confronto7 entre a cavalaria da Polícia Militar e alguns torcedores da equipe Sociedade Esportiva do Gama, após o clássico entre Brasiliense Futebol Clube e Sociedade Esportiva do Gama, resultou em um adolescente gravemente ferido na cabeça.

Segundo relatos de torcedores, a agressão foi gratuita. A polícia estava escoltando a torcida quando avançou com a cavalaria em direção a ela. O jovem ferido foi agredido por um cassetete no ouvido direito, acarretando uma fratura no osso da nuca e uma série de lesões diferentes na cabeça, ao tentar ajudar uma mulher a sair do conflito.

Outro caso8 de agressão ocorreu no ano de 2014, quando policiais espancaram um torcedor do Vila Nova Futebol Clube após jogo entre o referido time e a equipe do Atlético Clube Goianiense. O torcedor foi duramente agredido no banheiro do estádio por quatro policiais sem conseguir reagir, evidenciando confronto extremamente desproporcional e atitude reprovável dos agentes. O caso foi amplamente divulgado em redes sociais, especialmente por meio de um vídeo.

Sob outro viés, nos casos em que o Estado é requisitado a prestar serviços de proteção em eventos esportivos, e não o faz ou o faz parcialmente, pode-se constatar a possibilidade de omissão, como ocorre durante invasões de campos de futebol por torcedores, causando, por exemplo, agressões a terceiros, devido ao insuficiente policiamento. Outra situação que caracteriza a omissão diz respeito à não realização ou à má realização da revista pessoal, permitindo a entrada de objetos indevidos.

Em casos em que fica constatada a omissão do Poder Público, para a doutrina majoritária, há a responsabilidade civil objetiva. Já para Bandeira de Mello (2010, p. 1030-1033), resta evidenciada a responsabilidade civil subjetiva, por haver omissão do agente que deveria ter agido, mas não agiu. Nesse caso, quanto às responsabilidades direta e indireta, não há dúvidas de que o Estado é diretamente responsável, pois quem se omitiu também foi um representante do Poder Público.

Para ilustrar, um dos exemplos mais recentes9, ocorrido no início de 2015, aconteceu após partida que decidiu o título do Campeonato Cearense, quando torcedores do Fortaleza Esporte Clube invadiram o campo para comemorar o título e provocar a torcida do time adversário, o Ceará Sporting Club, a qual, em seguida, também adentrou o gramado. A confusão perdurou por vários minutos, com bastante violência e depredação da Arena Castelão.

Na época, o chefe do Batalhão de Policiamento de Eventos da Polícia Militar lamentou o ocorrido e afirmou que a estrutura do estádio não é feita para as torcidas do Brasil e que conter uma multidão em rebelião é difícil. Foi disponibilizado para o jogo um contingente de 200 policiais para garantir a segurança e a ordem de mais de cinquenta mil pessoas, segundo consta na página eletrônica que noticiou o conflito.

Com base na fala do chefe de polícia e na quantidade de profissionais incumbidos da realização da segurança do evento, evidencia-se a omissão do Poder Público, tendo em vista que a partida era final de campeonato entre times rivais com torcidas que possuem histórico de confrontos violentos.

Em outro exemplo, em partida10 entre Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e Sport Club Internacional no ano de 2015, torcedores relataram que houve falhas no controle de ingressos e na revista pessoal. Pessoas afirmaram que entraram no estádio sem precisar exibir o ingresso, e o comandante do Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar afirmou que somente uma revista superficial pôde ser feita em virtude de confusão iniciada.

2.2.2. O dano

No contexto que envolve a responsabilidade civil estatal, não seria exagero apontar o dano como elemento primordial, pois somente se pode falar em indenização se houver prejuízo a ser compensado. Nessa esteira, devem ser considerados os danos material e moral, sendo esse último a violação do direito à dignidade previsto constitucionalmente.

Com relação ao dano material, situações nas quais, por exemplo, torcedores sofrem agressões físicas que resultam em escoriações pelo corpo, perda de membros ou morte, por vezes, advêm de confrontos diretos com policiais ou com torcedores rivais, os quais utilizam, além de força física, objetos que não deveriam adentrar as praças esportivas, como bombas caseiras e garrafas de vidro.

Em qualquer uma dessas circunstâncias, a violação do direito à dignidade da pessoa humana, um dos direitos de personalidade, é estabelecida e, por ser imaterial esse direito, deve ser compensada. O indivíduo prejudicado, portanto, tem as suas condições física e moral abaladas, fato que lhe pode trazer problemas futuros.

Retomando os exemplos já elencados no subtópico anterior, percebe-se, no primeiro caso, em que um jovem foi agredido com cassetete e sofreu graves lesões na cabeça, inegável dano material, já que sua condição física foi bastante comprometida e os prejuízos futuros poderiam ser consideráveis. Além disso, houve o grande abalo psíquico, tendo em vista que o rapaz apenas teve a intenção de socorrer uma vítima do tumulto, destacando-se o dano moral.

O segundo exemplo, no qual um rapaz foi agredido covardemente por quatro policiais em um banheiro de um estádio, retrata claramente o dano material sofrido em decorrência das lesões físicas advindas do espancamento. Ademais, não se pode olvidar que, sem chances de defesa, o abalo psicológico ficou marcado na humilhação sofrida por a agressão ocorrer em local reservado, distante das atenções de populares, configurando, de certo modo, uma forma de tortura.

O terceiro caso relatado trata da invasão de campo na final do Campeonato Cearense. Nessa situação, vislumbra-se a possibilidade de muitos torcedores terem vivido momentos de terror e serem agredidos devido a uma falha na segurança. Desse modo, além de possíveis danos materiais daqueles que sofreram qualquer tipo de violência física, fica evidente o dano moral por causa da situação de desespero e medo em detrimento do lazer e do harmônico convívio social.

Por fim, a falha relatada no controle de bilhetes e na revista pessoal poderia ser desencadeadora de grandes prejuízos ou até de tragédias. Nesse caso, aproveitadores poderiam ter adentrado o estádio portando armas, fogos de artifícios, bombas caseiras, possibilitando a ocorrência de diversas avarias à integridade de todos os presentes.

2.2.3. O nexo causal

O último pressuposto a definir a responsabilização estatal é o nexo causal, que diz respeito ao vínculo direto entre a conduta e o dano. Assim, se for demonstrado que determinada agressão ou determinado prejuízo ocorreu em decorrência de excesso policial ou ataque de torcedores que poderia ser prevenido, por exemplo, resta concretizada a obrigação do Estado de reparar o agravo.

Esse pressuposto faz referência direta às provas capazes de associar dano e comportamento humano. Nessa perspectiva, na primeira ocorrência ilustrativa, a agressão ao jovem foi presenciada por testemunhas, além de existirem indícios suficientes da gravidade da violência, já que o rapaz foi hospitalizado com diversas lesões na região da cabeça.

No segundo exemplo, a prova é cabal, visto que um vídeo circulou nas redes sociais com imagens claras e evidentes da selvageria perpetrada pelos oficiais militares.

No terceiro caso, a invasão por torcedores pode facilmente ser comprovada, pois o jogo foi televisionado, existindo, portanto, imagens. Ainda, diversas foram as provas testemunhais, desde torcedores até profissionais da imprensa, os quais também foram vítimas do episódio. Pode-se destacar, outrossim, o reduzido contingente de policiais oficialmente disponibilizado pelo Poder Público em relação à grande quantidade de pessoas na praça esportiva, o que impossibilitou, sobremaneira, a contenção dos invasores.

Quanto à última ocorrência citada, provas testemunhais são imprescindíveis. Torcedores relataram que, mesmo tendo adquirido o ingresso, não precisaram apresentá-lo para entrar, fato reforçado pelo tenente-coronel do Comando de Policiamento da Capital. Quanto à revista malfeita, além do relato dos presentes, o comandante do Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar afirmou que algumas mulheres entraram sem ser revistadas para evitar que corressem risco no tumulto instaurado e que a revista foi superficial.

Findando as considerações relativas à responsabilidade civil do Estado e à sua obrigação de prevenir a violência abordada no Estatuto de Defesa do Torcedor, é válido destacar que a jurisprudência brasileira se manifesta acerca do assunto, o que será analisado no capítulo posterior, voltado para o estudo de casos concretos à luz das decisões judiciais.

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Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade 7 de Setembro como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito sob orientação do Prof. Me. José Vander Tomaz Chaves.

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