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Verde-amarelismo jurídico: movimento por um trabalho sem direitos

Agenda 13/11/2019 às 17:40

A Medida Provisória 905/2019 quer "beneficiar" os jovens, abrindo-lhes as portas para o mercado de trabalho, mas retirando-lhes os direitos mais básicos. Tal qual o manifesto do verde-amarelismo, de há quase cem anos, o governo convida a nova geração a produzir sem discutir.

Convidamos a nossa geração a produzir sem discutir. Bem ou mal, mas produzir.

Manifesto do Verde-amarelismo


Em 1926, surgia no Brasil, como uma das decorrências da Semana de Arte Moderna de 1922, o movimento literário Verde Amarelo. Também conhecido como “Escola da Anta”, o movimento sustentava em seu Manifesto oficial, como regra fundamental, “a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder. O grupo defendia “todas as instituições conservadoras” acreditando que somente por meio delas é que conseguiriam alcançar a “inevitável renovação do Brasil” 1. O movimento propunha um "retorno ao passado" e via “no popular, com sua índole pacífica, a alma da nacionalidade, a ser guiada pelas elites do país” 2.

Quase cem anos mais tarde, como um dos desdobramentos da “modernização” das leis trabalhistas realizada pela Reforma Trabalhista, em vigor há dois anos, o Presidente da República lança um novo programa para “beneficiar” jovens trabalhadores. Sob a denominação de contrato de trabalho verde e amarelo, o programa é instituído pela Medida Provisória Nº 905, de 11 de novembro de 2019 e visa à criação de novos postos de trabalho para que jovens, entre dezoito e vinte e nove anos de idade, tenham acesso ao primeiro emprego.

De acordo com o texto da Medida Provisória, o programa deveria se destinar exclusivamente a novos postos de trabalho, conforme preceitua o Artigo 2º. Curiosamente, entretanto, o parágrafo primeiro do Artigo 5º autoriza a nova forma de contratação “para qualquer tipo de atividade, transitória ou permanente, e para substituição transitória de pessoal permanente” (destacamos).

Sob o fundamento de não se destinar a trabalhadores qualificados, o programa coloca um limitador salarial de um salário mínimo e meio para o salário básico mensal dos empregados contratados na nova modalidade. Garante, entretanto, a manutenção da modalidade contratual mesmo quando o salário ultrapassar esse valor, em decorrência de aumento após doze meses de trabalho.

O Artigo 4º da Medida Provisória “garante” os direitos previstos na Constituição Federal – como se uma Medida Provisória pudesse dispor de modo diverso. Não são garantidos, entretanto, os direitos previstos na CLT e nas normas coletivas da categoria a que pertencer o trabalhador. Como ficam os Princípios do Não-Retrocesso Social, da Não-Discriminação e da Proteção, razões de ser do Direito do Trabalho? A projeção da aplicação da regra mais favorável, por exemplo, ganha uma ressalva, mais ou menos assim, “salvo se disposto em contrário, especialmente em MP”. E aí começa uma série de retirada de direitos trabalhistas, quer pela supressão direta, quer pela erosão, afetando, inclusive, o custeio do Estado Social.

O discurso de geração de empregos – apesar de não ser inédito, pois serviu de lastro para o movimento da reforma deflagrado pela Lei n. 13.467/17, sabidamente inexitoso – mostra-se falacioso 3. Não só porque a nova modalidade contratual retira direitos dos trabalhadores, diminuindo o poder de compra daqueles que mais consomem 4, mas também por se tratar de uma nova modalidade de contrato por prazo determinado, por até vinte e quatro meses, “a critério do empregador” (sic.). Assim, ainda que a nova modalidade contratual, fosse capaz de gerar mais empregos, esses teriam a efêmera duração de, no máximo, dois anos. Regras de exceção e temporárias em matéria trabalhista, aliás, também não se mostram novidade, servindo, apenas, como uma cortina de fumaça, passageira e frágil, com finalidade populista e eleitoreira, como em situações recentes envolvendo a realização da Copa do Mundo de Futebol 5. Além disso, como já referido, a norma autoriza a contratação de trabalhadores sob a nova modalidade para a substituição transitória de pessoal permanente, o que em nada faz aumentar o número de postos de trabalho.

A nova modalidade de contratação deixa o jovem trabalhador totalmente à mercê do empregador. Isso porque, além de o prazo contratual ser o que melhor sirva aos interesses desse último, fica afastada a conversão contratual para prazo indeterminado quando o contrato for prorrogado mais de uma vez, em evidente ofensa ao princípio da continuidade da relação de emprego. Acentua a hipossuficiência do polo fraco da relação, tirando o foco da luta de classes. Deixa, em seu lugar, aparentemente, um conflito de gerações, entre trabalhadores novos e nem tanto, corroendo ideais de classe e de pertencimento.

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Uma leitura do artigo 6º da Medida Provisória permite compreender porque o “legislador” fez questão de referir, em seu art. 4º, que os direitos previstos na Constituição restam mantidos. Trata-se, na verdade, de mais um ardil para, de forma indireta, suprimir os direitos dos trabalhadores. E, dessa vez, inclusive, os direitos constitucionalmente assegurados.

O artigo 6º da Medida Provisória prevê o fracionamento do pagamento do 13º salário e das férias em períodos mensais ou inferiores, conforme ajustado entre empregado e empregador. Dessa forma, o trabalhador que receber o salário mensal de R$ 1.497,00 (teto salarial da nova modalidade contratual) receberá todo mês um acréscimo salarial de R$ 124,75 a título de 13º salário e outro de R$ 165,92 a título de férias com o acréscimo de 1/3. Ou seja, o seu salário mensal será de, no máximo, R$ 1.787,67, valor inferior a dois salários mínimos e, no final do ano, o trabalhador não terá direito à renda extra representada pelo 13º salário, tampouco receberá a remuneração com o acréscimo de 1/3 quando (e se) puder gozar suas férias. Para trabalhadores que percebem menos de R$ 1.500,00 por mês, o acréscimo de R$ 290,67 será certamente diluído nas despesas diárias com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, que o salário mínimo deveria ser capaz de atender, conforme dispõe expressamente o texto constitucional.

Para que, efetivamente, fosse garantido o salário mínimo assegurado na Constituição – e nem falamos aqui dos demais direitos, como faz referência o artigo 4º da Medida Provisória – o seu valor deveria ser de R$ 4.214,62, conforme aponta o DIEESE 6. Ou seja, mesmo com a perda do direito à décima terceira remuneração no final do ano e a perda da remuneração das férias com o acréscimo constitucional de 1/3 quando o trabalhador efetivamente as gozar, o salário máximo do novo programa governamental de “criação de empregos” não garante nem mesmo a metade do mínimo que um trabalhador deveria receber no Brasil para suprir as suas necessidades vitais básicas e às de sua família.

Assim como o 13º salário e as férias com 1/3, o FGTS também deverá ser diluído no salário mensal do trabalhador, sofrendo, ainda, uma redução de 75% de seu valor. O trabalhador que, até então tinha direito a depósitos mensais R$ 119,76 a título de FGTS, de modo a corresponder ao valor aproximado de uma remuneração por ano de trabalho, a partir de agora receberá apenas R$ 29,94 por mês, valor que tendencialmente desaparecerá no conjunto das parcelas salariais. E ainda se tem a desfaçatez de falar na garantia dos direitos constitucionalmente previstos.

O programa simplesmente acaba com a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa prevista no Artigo 10, inciso I, do ADCT. Isso porque, o seu pagamento também passa a se dar mês a mês, diluído nas demais parcelas que compõem o salário, “independentemente do motivo de demissão do empregado, mesmo que por justa causa” (sic.). Além disso, o valor passa a ser reduzido pela metade. Dito de forma clara, com o contrato de trabalho verde e amarelo, a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa assegurada na Constituição Federal de 1988 não mais se destina a proteger qualquer forma de despedida e se reduz a R$ 5,98 (cinco reais e noventa e oito centavos), no máximo!

Passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição Federal, a promessa da proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, estabelecida no inciso I do seu Artigo 7º, não apenas não foi efetivada, pela ausência da edição da Lei Complementar a que o texto faz referência, mas acaba sendo esvaziada de qualquer efetividade pela Medida Provisória em análise.

Nesse ponto, salta aos olhos a inconstitucionalidade da medida. Ainda que se entenda que a proteção estabelecida no inciso I do artigo 7º, da Constituição Federal configure como norma de eficácia limitada, não se pode olvidar que, conforme a lição de José Afonso da Silva, mesmo essas normas têm certo grau de eficácia 7. Com efeito, além de revogar a legislação infraconstitucional em contrário, estabelecem um dever ao legislador e aos entes públicos de legislarem no sentido de regulamentá-las e, especialmente, impedem a edição de leis infraconstitucionais em sentido contrário. Sendo assim, a Medida Provisória apresenta-se duplamente inconstitucional, no particular: não apenas esvazia uma garantia constitucional, legislando no sentido contrário ao determinado pela norma fundamental, mas ainda faz por Medida Provisória o que nem mesmo uma Lei Ordinária poderia fazer, haja vista a necessidade de Lei Complementar para regular a matéria.

Sabe-se que lei não cria emprego, salvo postos de trabalho junto ao Poder Público. O que gera emprego é produção e o que gera produção é consumo. Este, por sua vez, decorre da “renda”, cuja maior parte provem dos salários. Assim, retirando direitos e reduzindo salários, justamente da parcela da população que mais consome, como já referido, se está retirando dinheiro do mercado, agravando ainda mais a crise econômica que assola o país.

Em seus discursos de campanha eleitoral, o atual Presidente da República bradava que os brasileiros deveriam escolher entre direitos sem emprego, ou emprego sem direitos, deixando clara a linha diretriz de sua política econômica. Uma vez eleito, passou imediatamente a cumprir as suas “promessas” de campanha. Como primeiro ato, editou, em 1º de Janeiro de 2019, a Medida Provisória nº 870, convertida na Lei nº 13.844/2019, não apenas extinguindo o Ministério do Trabalho, mas também o esquartejando e o distribuindo entre o Ministério da Economia, para onde foi a maior parte de suas atribuições, e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, fazendo com que, o movimento sindical voltasse a ser tratado como uma questão de polícia.

E assim, como se entrássemos em uma engenhosa máquina do tempo, somos novamente lançados ao ano de 1926, quando o último presidente da República Velha, Washington Luís, assumia o comando do país defendendo que a questão social era uma questão de polícia! 8

O retorno ao passado nos remete ao início do presente texto. A anta fez escola. Os ideais do verde-amarelismo de 1926 parecem encontrar terreno fértil no verde-amarelismo de 2019. Assim como movimento literário de outrora, o programa do atual governo parece acreditar que apenas pelo conservadorismo se conseguirá a renovação. Assim como lá, propõe-se aqui um retorno ao passado. Um passado em que os trabalhadores praticamente não tinham direitos e que a maior parte da população, “com sua índole pacífica”, era considerada os braços operários do país, “a serem guiados pelas elites”.

E é assim, retirando-lhes os direitos mais básicos, que o governo pretende “beneficiar” os jovens, abrindo-lhes as portas para o mercado de trabalho. Como já havia feito o Manifesto do verde-amarelismo há quase cem anos, o governo convida a nova geração a produzir sem discutir. Bem ou mal (com o sem direitos), mas produzir. E, como uma reinvenção malfeita do passado, a regra fundamental da “nova economia” brasileira volta a ser “a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser... mas acima de tudo, como puder.


Notas

1 SILVA, Marina Cabral da. "O Modernismo no Brasil "; Brasil Escola. Disponível em https://brasilescola.uol.com.br/literatura/o-modernismo-no-brasil.htm. Acesso em 12 de novembro de 2019.

2 A Era Vargas: dos anos 20 a 1945. Disponível em https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos20/ArteECultura. Acesso em 12 de novembro de 2019.

3 ANTUNES, Leda. Mais mudanças no emprego: nova CLT completa 2 anos sem cumprir promessa de gerar vagas e prestes a ser reformada de novo. Disponível em <https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/reforma-trabalhista-completa-dois-anos-/>. Acesso em: 12 de novembro de 2019.

4 Consideradas como classes D e E as pessoas com renda familiar de até um salário mínimo e meio somam 95 milhões de pessoas, quase metade da população brasileira de 190.755.799 de habitantes, segundo o último Censo realizado no ano de 2010. https://jornalggn.com.br/brasilianas-org/o-perfil-das-classes-c-e-d/. Acesso em 12 de novembro de 2019. São pessoas pobres, que “consomem tudo o que ganham”, como disse recentemente, em tom de crítica, o atual ministro da economia, Paulo Guedes. https://www.diariodocentrodomundo.com.br/paulo-guedes-diz-que-pobre-nao-poupa-dinheiro-e-gasta-tudo-o-que-ganha/. Acesso em 12 de novembro de 2019.

5 Neste sentido, nem uma, nem duas críticas feitas pelo Jurista Jorge Souto Maior, disponíveis em <https://www.jorgesoutomaior.com/futebol.html>. Acesso em 12 de novembro de 2019.

6 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/07/04/salario-minimo-ideal-dieese.htm. Acesso em 12 de novembro de 2019.

7 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 127.

8 De acordo com a historiadora Angela de Castro Gomes, quando do lançamento oficial de sua candidatura, Washington Luiz, que foi presidente do Brasil de 1926 a 1930, teria afirmado que “a chamada questão social é um problema que interessa mais à ordem pública que à ordem social”. GOMES, Angela de Castro. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil (1917-1937). 2. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p. 127. Muito embora não tivesse falado em questão de polícia, “ordem pública”, tanto naquela época, quanto hoje, pode se entender por repressão policial.

Sobre os autores
Almiro Eduardo de Almeida

Juiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Professor de Graduação no Centro Universitário Metodista - IPA. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidad de la República Oriental del Uruguay. Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Doutorando em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo – USP. Membro-pesquisador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo. Membro-pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Teoria e Prática da Greve no Direito Sindical Brasileiro Contemporâneo. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito do Trabalho do Centro Universitário Metodista – IPA.

Oscar Krost

Juiz do Trabalho vinculado ao Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, Professor, Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Regional de Blumenau (PPGDR/FURB), Membro do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA), autor do blog e da obra “O lado avesso da reestruturação produtiva: a 'terceirização' de serviços por 'facções”. Blumenau: Nova Letra, 2016, colaborador de sites, revistas e obras jurídicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Almiro Eduardo; KROST, Oscar. Verde-amarelismo jurídico: movimento por um trabalho sem direitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5978, 13 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77806. Acesso em: 22 dez. 2024.

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