Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

O controle de atos políticos via ADPF: a (in)congruência dos julgados do STF

Exibindo página 1 de 3
Agenda 20/11/2019 às 16:26

A ADPF é apresentada como importante via de tutela dos preceitos fundamentais violados ou ameaçados de violação por atos do Poder Público. O STF, todavia, ainda se nega a admitir a importância do controle judicial dos atos políticos.

Resumo: Neste estudo, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é apresentada como importante ação constitucional que se presta à tutela dos preceitos fundamentais violados ou ameaçados de violação por atos do Poder Público. Por essa razão, será questionada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que afasta do objeto da ADPF os atos políticos, uma vez que estes também são praticados pelo Poder Público, demonstrando que a Suprema Corte tem vacilado em seu entendimento e pode estar perdendo importante oportunidade de conferir normatividade plena à Constituição Federal de 1988.

Palavras-chaves: Preceito fundamental; ato político, Supremo Tribunal Federal, ADPF.

Súmário: 1) Introdução; 2) Histórico e peculiaridades da ADPF na jurisdição constitucional; 3) Definição de preceito fundamental; 4) “Descumprimento” de preceito fundamental por ato do Poder Público; 5) Controle Judicial de Atos Políticos; 6) Conclusão, e 7) Referências.


1. INTRODUÇÃO

O Estado de Direito exige a subordinação da estrutura de desempenho do poder político-administrativo às normas constitucionais, sendo o Poder Judiciário o principal responsável pelo controle da observância da ordem constitucional.

O modelo de Estado subordinado às normas jurídicas, herança do constitucionalismo moderno, não trouxe respostas claras acerca do limite de controle dos atos do Poder Público por meio de decisões judiciais.

O advento do neoconstitucionalismo, em resposta aos terrores da segunda guerra mundial e à consequente aniquilação de direitos fundamentais com o aval do Estado de Direito nazista e fascista, ressaltou a importância de proteção de diretos tidos como essências e estruturantes da própria sociedade, dentre os quais têm especial destaque os direitos fundamentais. Esse período tem como consequências, a consolidação da supremacia da constituição e a concepção da eficácia expansiva dos valores constitucionais, que se irradiam por todo o sistema jurídico.

A partir desse momento, a jurisdição constitucional ganha especial relevância, passando a ser composta por importantes ações de tutela das normas constitucionais, tratando-se de verdadeiro sistema de proteção e garantia da supremacia da constituição.

No Brasil da Constituição Federal de 1988, dentre as ações constitucionais integrantes do mencionado sistema, destaca-se a arguição de descumprimento de preceito fundamental - ADPF, uma vez que tem por finalidade a proteção do que há de mais nobre e importante em uma Lei Fundamental, aquilo que diz respeito à própria essência, ao espírito da ordem constitucional, nada mais que os preceitos fundamentais, em face dos atos do Poder Público.

A posição de supremacia da constituição traz consigo o questionamento sobre os limites de proteção das normas constitucionais em face do desempenho das atribuições do Estado. Deveras, em algumas situações, princípios prevalecerão perante outros também constitucionais, e regras constitucionais deixarão de ser aplicadas em privilégio de outras de hierarquia semelhante. No entanto, quando o ato do Poder Público estiver em rota de colisão com as normas mais essenciais da ordem constitucional, resta o questionamento de como deve proceder a atuação do Poder Judiciário.

A busca de uma resposta para a mencionada indagação deve perpassar por dois questionamentos, quais sejam, o tipo de ato praticado pelo Estado e se este pode ou não ser objeto do controle jurisdicional.

Os atos essenciais praticados pelo Poder Público são inerentes às funções dos Poderes constituídos, sendo estas: função de legislar, função de julgar, função administrativa, função de governo e função de fiscalização e controle. Embora cada um dos Poderes tenha sua função típica, também desenvolvem de forma atípica quase todas as demais. Por essa razão, os atos do Poder Público denominados políticos podem ser identificados na atuação de cada um dos Poderes constituídos, mas sobretudo na função de governo. Esses atos são alguns dos quais, atualmente, o Supremo Tribunal Federal consolidou jurisprudência contrária à apreciação pelo Poder Judiciário.

A análise acerca da possibilidade de superar esse entendimento passa, indubitavelmente, pelo instrumento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, sendo importante propor um estudo que atenda aos seguintes propósitos: 1) traçar o histórico e apresentar algumas peculiaridades da ADPF; 2) entender a concepção de preceitos fundamentais; 3) compreender em que consiste o “descumprimento” de preceito fundamental por ato do Poder Público, e 4) examinar os atos políticos como possíveis objetos do controle judicial.


2. HISTÓRICO E PECULIARIDADES DA ADPF NA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

A arguição de descumprimento de preceito fundamental trata-se de uma ação introduzida no direito pátrio na Constituição Federal de 1988, sem precedentes na história constitucional do Brasil.

A previsão desta nova e importantíssima ação do controle concentrado de constitucionalidade coube, inicialmente, ao parágrafo único do art. 102, da Constituição Federal, que deu lugar a dois parágrafos em decorrência da Emenda Constitucional nº. 03/93, passando a ação a ser prevista no §1º, do mencionado artigo[2].

A matiz constitucional deixou claro que a ADPF compõe o controle concentrado de constitucionalidade, ao prever expressamente a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar. Já a finalidade da ação também pode ser antevista em sua nomenclatura, qual seja, a defesa do ordenamento jurídico em face do descumprimento dos preceitos fundamentais.  

Ocorre que o texto constitucional deixou a cargo da norma infraconstitucional a disciplina deste importante instituto do controle de constitucionalidade, ao estabelecer que sua apreciação se daria “na forma da lei”. Por esta razão, o STF firmou entendimento de que a aplicação da ADPF dependeria de norma regulamentadora, pois foi prevista por uma norma constitucional de eficácia limitada[3].

Esse posicionamento do Supremo causou estranheza, uma vez que, sem qualquer lei específica, a Corte aplicava a ADIN, a ADO e a ADC, valendo-se apenas de seu Regimento Interno e de sua própria jurisprudência, entendimento que não estendeu à ADPF, razão pela qual o instituto só foi aplicado após a publicação da Lei nº. 9.882, de 03 de dezembro de 1999.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

O referido estatuto legal regulamentou o processo e o julgamento da ADPF, delimitando as diretrizes de uma ação passível de atacar quaisquer atos e omissões praticados pelos entes federados (União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios), seja no controle concentrado-principal ou no controle concentrado-incidental.

Ademais, a Lei nº. 9.882/99 permitiu a superação de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto à apreciação de normas pré-constitucionais no controle concentrado, uma vez que a análise acerca da recepção ou revogação destas apenas era instada por meio de recurso extraordinário.

A norma regulamentadora da ADPF também inovou quanto à possibilidade de manejar a ação em face de atos concretos do poder público, bem como de atos praticados pela administração municipal, sejam estes de caráter normativo ou não, e ainda quanto à possibilidade de controle dos atos normativos secundários, ou seja, aqueles que não regulamentam diretamente uma disposição constitucional.

No entanto, com o objetivo de determinar a esfera de aplicação desse importante instituto, a norma regulamentadora (Lei nº. 9.882/99) estabelece que o manejo da ADPF somente pode ser realizado na ausência de outra ação cabível para evitar ou sanar a lesão a preceito fundamental, sendo esta característica chamada de caráter subsidiário. Cabe registrar que o princípio da subsidiariedade aplicável à ADPF (Lei n. 9.882/99, art. 4°, § 1°) não está circunscrito às ações do controle concentrado de constitucionalidade, mas remete a qualquer outra medida judicial apta a sanar, de maneira eficaz, a situação de lesividade, conforme reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal (Informativo STF, n. 243[4]).

A ADPF não tem paralelo no direito comparado, aproximando-se do writ of certiorari (norte-americano), Popularklage (direito bávaro), Beschwerde (direito austríaco), recurso constitucional espanhol e Verfassungsbeschwerde (direito alemão).

Dentre os fatores que diferenciam a ADPF das mencionadas ações do direito alienígena pode-se mencionar, o fato de se tratar de um instituto com legitimados numerus clausus previstos no art. 103, da Constituição Federal, não podendo ser manejada por qualquer cidadão, bem como pelo fato de não ter como requisito a atuação anterior em processos administrativos ou judiciais.

Existem dois ritos distintos para o manejo da arguição de descumprimento de preceito fundamental, dando origem a duas espécies distintas da ação: Arguição Autônoma e Arguição Incidental.

A chamada arguição autônoma é uma ação do controle concentrado-principal proposta perante o STF, independentemente da existência de controvérsia judicial, com o objetivo de defender, exclusivamente, os preceitos fundamentais ameaçados ou violados por qualquer ato do Poder Público, tendo, assim, finalidade exclusivamente abstrata, tal qual as demais ações do controle concentrado-abstrato. A arguição autônoma está disciplinada no art. 1º, caput, da Lei nº. 9.882/99[5].

Já a arguição incidental, cujo processo também é ajuizado diretamente perante o STF, é uma ação do controle concentrado-incidental manejada em virtude de controvérsia constitucional relevante, em discussão perante qualquer juízo ou tribunal, sobre a aplicação de lei ou ato do Poder Público questionado em face de um preceito fundamental. A arguição incidental está prevista no inciso I, do parágrafo único, do art. 1º, da Lei nº. 9.882/99[6].

Observa-se que este procedimento é chamado de concentrado-incidental porque a ADPF decorre de controvérsia constitucional relevante, ou seja, de um caso concreto em que é suscitada violação ou ameaça de violação a preceito fundamental, tratando-se de situação controvertida e de grande relevância constitucional.

Assim, a arguição incidental possibilita a resolução antecipada de controvérsias constitucionais relevantes evidenciadas em qualquer processo judicial concreto, evitando que se postergue por muitos anos a sua resolução.

As principais diferenças entre os dois procedimentos estão, certamente, no caráter adstrato da arguição autônoma e concreto da arguição incidental, e o fato desta última ter como pressuposto de admissibilidade a comprovação de controvérsia constitucional relevante.

Apresentadas as principais características da ADPF, cabe tratar mais detidamente da finalidade dessa importante ação do controle concentrado, qual seja, a proteção dos preceitos fundamentais constantes da Constituição em face de atos do Poder Público.

O estudo da finalidade da ADPF, nota indispensável para a devida compreensão deste trabalho, apresenta os seguintes pontos que devem ser esclarecidos: i) definição de preceito fundamental; ii) compreensão do que deve ser considerado descumprimento de preceito fundamental, e iii) em que consiste um ato do Poder Público.


3. DEFINIÇÃO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

A arguição de descumprimento de preceito fundamental tem um parâmetro de controle próprio e singular, qual seja, os preceitos fundamentais.

Na lição de Dirley da Cunha Jr., a ADPF não foi a primeira ação do controle concentrado de constitucionalidade a prever sua aplicação apenas a determinadas normas constitucionais, uma vez que já na Constituição brasileira de 1934 foi prevista uma ação específica para a proteção dos princípios constitucionais sensíveis, denominada de representação para fins de intervenção (representação interventiva), atualmente denominada de ação direta de inconstitucionalidade interventiva, com previsão no art. 36, III, e princípios tutelados no art. 34, VII, da Magna Carta de 1988[7].

Ocorre que, em contraposição à representação interventiva, ADPF não se aplica a um rol taxativo de princípios constitucionais, portanto, faz-se necessário indagar quais seriam os preceitos fundamentais que merecem a especial proteção desta ação constitucional.

Em princípio, é importante saber o que é “preceito”, para poder delimitar o âmbito de abrangência da ADPF. Em sentido gramatical, a nomenclatura é sinônimo de “1. Regra de Proceder, norma; 2. Ensinamento, doutrina; 3. Ordem, determinação, prescrição”[8], em sentido jurídico remonta a ideia de “conduta juridicamente desejável”, portanto, o mesmo conceito atribuível às normas jurídicas. Assim, a conclusão lógica é que “preceito” e “norma” são o mesmo instituto, como pontua com propriedade Dirley da Cunha Jr:

Ora, se juridicamente a noção de preceito está relacionada à ideia de “comando”, de “mandamento” de “ordem”; e se inexiste, no plano científico, a modalidade autônoma preceito, ao lado da modalidade norma, a conclusão a que se chega é que preceito e norma são categorias sinônimas[9].  

A conclusão de que preceito e norma são o mesmo instituto faz com que tenhamos duas espécies de preceitos, quais sejam: princípios e regras.

A partir de então, indaga-se sobre o conteúdo do preceito. O adjetivo “fundamental” que se segue ao preceito não responde ao questionamento, uma vez que remete apenas ao caráter constitucional da norma. Ocorre que as normas da constituição, por encontrarem-se ungidas pelo princípio da unidade, não podem ter hierarquias diferentes.

Embora, em aspecto formal, a Carta Constitucional deva ser considerada em sua unicidade, não se deve desconsiderar a ordem de valores jurídicos que suas normas têm na sociedade. Assim, as normas essencialmente constitucionais, quais sejam, as que versam sobre: i) organização do Estado (forma federativa de Estado e competência dos entes políticos, por exemplo); ii) estrutura política (atribuições do Presidente da República e do Congresso Nacional, exemplificativamente), e iii) direitos deveres e garantias da pessoa (direitos e garantias individuais e direitos sociais, por exemplo), têm inevitavelmente, maior relevância que outras normas dispersas na constituição, que foram inseridas por questões de conveniência do legislador constituinte[10].

Ocorre que, mesmo entre as mencionadas normas essenciais, também conhecidas como materialmente constitucionais, existem algumas cunhadas com o caráter de indisponibilidade, ou seja, normas que são indispensáveis à manutenção do Estado conforme consolidado na Constituição. Neste sentido importante trazer à baila os ensinamentos de Dirley da Cunha Jr:

Nesse contexto, pode-se conceituar preceito fundamental como toda norma constitucional – norma-princípio e norma-regra – que serve de fundamento básico de conformação e preservação da ordem jurídica e política do Estado. São as normas que veiculam os valores supremos de uma sociedade, sem os quais a mesma tende a desagregar-se, por lhe faltarem os pressupostos jurídicos e políticos essenciais. Enfim, é aquilo de mais relevante em uma Constituição, aferível por sua nota de indisponibilidade. É o seu núcleo central, a sua alma, o seu espírito, um conjunto de elementos que lhe dão vida e identidade, sem o qual não a falar em Constituição[11].

Os preceitos fundamentais agregam os valores mais importantes de uma sociedade, contemplando normas essenciais à conservação do Estado conforme concebido pela Carta Magna.

Reconhecer o caráter indisponível dos preceitos fundamentais não é o suficiente para se estabelecer de forma hermética quais as normas da constituição são preceitos fundamentais. Uma vez que a constituição estabelece normas com caráter dinâmico de valoração, cabendo a hierarquia axiológica ao momento por que passa à sociedade e a composição ideológica do tribunal ao qual, em último grau, compete à interpretação da Constituição. Esses fatores permitem a mudança na valoração de uma norma e, portanto, a possibilidade de alteração de seu status para ser ou deixar de ser considerado um preceito fundamental.

Essa é a razão pela qual laborou bem o legislador constituinte originário e o legislador infraconstitucional, ao deixar de estabelecer um rol taxativo de normas que deveriam ser consideradas como preceitos fundamentais, diferentemente do que foi feito com os princípios constitucionais sensíveis objetos da ação direta de inconstitucionalidade interventiva.

Neste sentido pontifica Zeno Veloso:

Não nos parecia que o legislador ordinário pudesse indicar os preceitos fundamentais decorrentes da Constituição, cujo descumprimento possibilitaria a argüição. Significaria dar prerrogativa ao Congresso Nacional de eleger, dentro dos princípios, quais os que são fundamentais, vale dizer, essenciais, preponderantes, superiores. Ora, isto é atribuição do constituinte originário, ou do Supremo Tribunal Federal, guardião principal e intérprete máximo do Texto Magno. Além do mais, não poderia o legislador apresentar um elenco definitivo, um painel pronto e acabado dos preceitos fundamentais, pois a Constituição, apesar do ideal de estabilidade, é um documento histórico-cultural do povo. Embora lentas, as transformações são inevitáveis, ditando, como disse Krüger, uma mudança de natureza das normas constitucionais. O que hoje se pode considerar preceito fundamental, dada a dinamicidade do ordenamento jurídico, pode ter a sua densidade normativa diminuída no decorrer do tempo. (...) Estes são princípios reitores, regras nucleares, linhas mestras ou vigas-mestras da organização política e social brasileira, sem olvidar que há preceitos fundamentais que deles decorrem, havendo necessidade, para descobri-los de ser feita uma inferência, um desenvolvimento por parte do intérprete[12].  

A ausência de uma previsão expressa fez com que a doutrina se dedicasse a esse mister, com o objetivo de viabilizar o manejo da arguição de descumprimento de preceito fundamental e garantir maior segurança jurídica. Por essa razão, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Nery passaram a defender que:

São fundamentais, entre outros, os preceitos constitucionais relativos: ao estado democrático de direito (CF 1.º caput); b) à soberania nacional (CF 1.º I); c) à cidadania (CF 1.º II); d) à dignidade da pessoa humana (CF 1. º III); e) aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (CF 1.º IV); f) ao pluralismo político (CF 1.º V); g) aos direitos e garantias fundamentais (CF 5º); h) aos direitos sociais (CF 6.º a 9.º); i) à forma federativa do estado brasileiro; j) à separação e independência dos poderes; l) ao voto universal, secreto, direto e periódico[13].

A doutrina passa a trazer importante contribuição, tendo em conta que a constituição é instrumento jurídico aberto à interpretação, daí também outra nota de seu dinamismo. Ocorre que, ao fim e ao cabo, o mais importante interprete da Constituição é o próprio Supremo Tribunal Federal, razão pela qual André Ramos Tavares assevera que:

(...) é preciso insistir que o correto dimensionamento de cada um dos preceitos fundamentais dar-se-á por obra do Tribunal Constitucional, identificando, em cada caso a ele submetido, a ocorrência ou não de violação a determinado preceito fundamental, com o que acabará, inexoravelmente, apontando e construindo, pouco a pouco, o conteúdo dos preceitos fundamentais[14].

As lições de André Ramos Tavares foram confirmadas por meio das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ADPF. A mais importante nesse sentido foi a ADPF 33, de relatoria do ministro Gilmar Ferreira Mandes, em que restaram apresentadas algumas das normas constitucionais que atualmente são consideradas preceitos fundamentais[15]. No mesmo sentido, no julgamento da ADPF 45, o Relator, Ministro Celso de Melo também procurou definir a extensão dos preceitos fundamentais[16].

Assim, pode-se afirmar com segurança que o Supremo Tribunal Federal, atualmente, entende ser preceito fundamental, as seguintes normas constitucionais:

  1. Os princípios do título I da Constituição Federal, que fixam as estruturas básicas de configuração política do Estado (art. 1º ao 4º, da CF/88);
  2. Os direitos e garantias fundamentais (título II e demais dispositivos dispersos na CF/88 e os decorrentes da abertura proporcionada pelo § 3º, do art. 5º, da CF/88);
  3. Os princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII, CF/88);
  4. As cláusulas pétreas (diretas – art. 60, §4ª ou indiretas – forma de poder constituinte), e
  5. As normas de proteção da Administração Pública previstas no art. 37 e seguintes da constituição.

Repise-se que os preceitos fundamentais apresentados não são numerus clausus, razão pela qual estão dispersos em todo o texto constitucional. Esta característica de rol exemplificativo das decisões do Supremo presta homenagem ao caráter dinâmico da constituição.

Neste quadro de maior clareza de identificação dos preceitos fundamentais, ainda cabe destacar que ADPF também pode ser manejada na defesa de normas constitucionais implícitas.

Isso porque as normas que podem ser extraídas da interpretação lógica do texto constitucional, embora não explicitas, também estão albergadas na proteção oferecida pela arguição de descumprimento de preceito fundamental, como se verifica na impossibilidade de modificação do procedimento especial de emenda constitucional (art. 60, §2º, da CF/88), bem como a vedação de alteração dos títulos considerados cláusulas pétreas (art. 60, §4ª, da CF/88).

Por fim, mas não menos importante, cabe questionar se os preceitos fundamentais de que trata o §1º, do art. 102, da Constituição Federal de 1988,  apenas se referem às normas constantes do texto constitucional, ou se abrange outras normas não previstas na atual Constituição brasileira.

A resposta para esta indagação é que todas as normas infraconstitucionais, mesmos as supranacionais, não ensejam o ajuizamento da ADPF. No entanto, resta ainda os preceitos constantes de constituições anteriores.

Ora, o Supremo Tribunal Federal ainda mantém o entendimento segundo o qual o controle de constitucionalidade de uma lei ou ato normativo apenas pode ser realizado a partir da Constituição em vigor no momento de sua edição ou promulgação, daí se extrai que os preceitos fundamentais de constituições anteriores ainda servem de parâmetro, essencialmente, para o controle difuso de constitucionalidade. Já no controle concentrado, os preceitos fundamentais de constituições anteriores têm especial relevância na ADPF, uma vez que antes de verificar a violação dos preceitos fundamentais da Constituição atual, o Supremo examina a validade da norma em relação ao ordenamento constitucional anterior.

Eis, portanto, apresentadas as notas essenciais que devem ser tratadas acerca dos preceitos fundamentais, de modo que se possa compreender porque as limitações impostas pela jurisprudência da Suprema Corte à ADPF fazem com que não consiga realizar com exação o seu objetivo de salvaguarda dos preceitos fundamentais.

Sobre o autor
Felipe Jacques Silva

Mestre e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia - UFBA, Especialista em Direito Civil pela UFBA. Professor Substituto da Faculdade de Direito da UFBA, da Pós-graduação da UNIFACS e de outras faculdades. Sócio-fundador do Escritório Antônio Bastos & Felipe Jacques Advocacia Especializada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Felipe Jacques. O controle de atos políticos via ADPF: a (in)congruência dos julgados do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5985, 20 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77886. Acesso em: 2 nov. 2024.

Mais informações

Elaborado como trabalho de conclusão da disciplina Teoria Constitucional do Processo no Doutorado em Direito do PPGD/UFBA.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!