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Delação premiada: aspectos relevantes no contexto processual penal português e brasileiro

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3.  Implicações Práticas

3.1. Delação premiada e valoração da prova

A aplicação e validade da delação premiada é tema controverso na doutrina e jurisprudência, seja pelo argumento de reprovabilidade moral existente em se delatar alguém, seja pelo risco de denúncias irresponsáveis existentes nessa prática. No entanto, tema de suma importância e que também gera certa celeuma é o que trata da valoração das palavras do colaborador.

O valor da palavra do delator como meio probatório é assunto controverso porque o criminoso que delata não presta o compromisso de falar a verdade em seu interrogatório e está na condição de beneficiário pelo que tem a falar[103].

Visando coibir a possibilidade de falsidade nas delações realizadas por investigados é que a Lei 12.580 buscou reduzir esse risco disciplinando a situação no parágrafo 14.º do artigo 4.º que determina que o colaborador «estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade» e tipificou o crime de «delação caluniosa[104]», aplicável àquele que imputa falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, prática de crime a terceiros.

Justamente pelas dificuldades em criar mecanismos para garantir a seriedade e veracidade das delações é que a Lei 12.580 prevê no parágrafo 16 do art. 4º que «nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador». Quer dizer, portanto, que não bastam para fundamentar um decreto condenatório somente as imputações feitas pelo colaborador, é necessário, pois, que as alegações sejam corroboradas por outras provas.

Eduardo Araujo da Silva[105] assinala que tal zelo «se deve ao grau de vulnerabilidade das palavras do colaborador, antes a previsibilidade de que pode lançar falsas informações apenas com o fim de beneficiar-se com as vantagens do acordo». Mesmo diante de todos os cuidados previstos em Lei as palavras do delator devem sempre serem tomadas com cautela já que não se pode descartar  a possibilidade de o delator incriminar pessoas para alcançar benefícios processuais penais.

Nesse mesmo caminho o Superior Tribunal de Justiça decidiu em sede de Recurso Especial de relatoria do Ministro Arnaldo Esteves Lima autuado sob o n.º 1113882/SP[106] julgado em 08/09/2009 que «para que haja condenação do corréu delatado é necessário que o lastro probatório demonstre ter este participado da empreitada delituosa, sendo insuficiente a simples palavra do comparsa».

Para Cezar Roberto Bitencourt e Paulo César Busato[107] «a colaboração premiada não pode simplesmente ser desconsiderada (...) porém, deve situar-se, isso sim, em um patamar de mero indício probatório, o qual não sendo reforçado por outros elementos de convicção, não pode gerar, ele somente, qualquer classe de sustentáculo para a condenação».

Assim, para que qualquer delação tenha o máximo de credibilidade e proveito processual é necessário sempre invocar o princípio da proporcionalidade, verificando a ocorrência da adequação, necessidade e a proporcionalidade da produção desse tipo de prova uma vez que é meio probante menor que as demais[108].

3.2.  Delação premiada no contexto processual penal português

Conforme já abordado anteriormente a delação premiada não é criação brasileira e tampouco é recente, no entanto, a operação lava jato[109] deflagrada pela Polícia Federal levou evidência ao instituto e ao país como referência legislativa no combate ao crime organizado.

Tanto é assim que o magistrado português Carlos Manuel Lopes Alexandre[110] disse ser «a favor desse instituto, até porque se viesse a ser adotado em Portugal, se calhar as pessoas que hoje em dia ficam um pouco alheadas da possibilidade de contribuir decisivamente para o esclarecimento de variados dossiês em Portugal, talvez se sentissem mais incentivadas a participar da administração da justiça».

De lado oposto o Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, António Jaime Martins afirma que «tem muita dificuldade em aceitar, enquanto cidadão e enquanto profissional do foro que uma democracia com mais de 40 anos de existência, possa pensar em consagrar em termos semelhantes ao Brasil o sistema de delação premiada[111]».

Assim, tendo em vista que muitos juristas e doutrinadores portugueses utilizam-se do Brasil como paradigma para a busca de implantação do instituto no ordenamento português e em contraponto aos anseios do juiz Carlos Alexandre com a instituição da colaboração premiada, Renato Marcão[112] assinala que «o desespero, a simples intenção de se beneficiar, ou ambos, constitui o mote da delação. Não há qualquer interesse primário em colaborar cm a Justiça; não há qualquer conversão do espírito e do caráter para o bem; não há preocupação com o que é realmente justo e verdadeiro; não há, enfim, motivo de relevante valor moral para a conduta egoísta».

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Inobstante tais críticas é inegável que a delação é um dos instrumentos através dos quais o Estado se utiliza para a busca da verdade real visando alcançar a paz social, razão pela qual é necessário transcorrer, ainda que superficialmente acerca do contexto na delação no processo penal português.

Ainda que não haja Lei que trate diretamente do direito premial o Código Penal Português prevê formas de delações premiadas, como, por exemplo, aquela disposta no art. 368.º-A, que trata da punição do crime de branqueamento e que no n.º 9 prevê atenuação da pena «se o agente auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens».

De forma semelhante o n.º 2, alínea a) do art. 374-B, que também prevê atenuação da pena ao crime de corrupção quando o agente «até o encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, auxiliar concretamente na obtenção ou produção das provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis».

Há também outras formas de atenuação da pena como recompensa pela colaboração processual nas leis esparsas portuguesas, como a prevista na Lei 52/2003, de 22 de agosto[113], que combate o terrorismo e que prevê o benefício para aquele que «auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis».

Ainda, há no artigo 31.º do Decreto Lei 15/93, de 22 de janeiro[114], que trata do combate às drogas previsão legal de atenuação de pena para aquele que colabora na identificação de outros responsáveis.

De se destacar que houve recentemente alteração na lei denominada da corrupção no fenómeno desportivo em que há previsão legal de algo próximo à delação premiada uma vez que consta do texto da lei 13/2017, de 2 de maio[115] a previsão de que as penas podem ser atenuadas «se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisiva para a identificação ou a captura de outros responsáveis».

Nesse sentido, enquanto no Brasil a delação premiada não pode ser utilizada como único meio de prova para condenação do imputado, em Portugal, nos casos já previstos em lei e que se assemelham muito à delação premiada, o Tribunal tem a liberdade para valorar a delação segundo as regras da experiência e a livre convicção, não havendo para tal prova um valor pré-estabelecido, conforme preceitua no artigo 127º do Código de Processo Penal[116].

Se de um lado a legislação nacional portuguesa prevê alguns institutos em que a colaboração do arguido é premiada com atenuação da pena, de outro, não há tipificação específica do assunto no ordenamento jurídico.

Isso porque, também seguindo uma tendência mundial no que tange à questões éticas e morais, alegações de afronta a princípios constitucionais e a falta de liberdade do arguido em delatar o corréu (já que pressionado a ser processado caso não delate) há ainda significativa dissonância entre as autoridades políticas e jurídicas que instigam discussões judiciais e doutrinárias acerca da constitucionalidade da inserção do instituto no ordenamento jurídico português[117].

Não obstante as discussões acerca de autoridades sobre o tema, e, também seguindo a tendência mundial, há uma forma de pressão popular exercida em Portugal para que deputados promovam uma legislação sobre delação premiada. Nesse sentido veio a tona uma petição de cidadãos com mais de quatro mil assinaturas que pedem a convocação de um referendo sobre o assunto, qual seja, se a Assembléia da República deve legislar novos diplomas sobre o assunto[118]. A pressão popular ganhou força especialmente porque o tema ficou fora do Pacto de Justiça[119].

Nesse mesmo caminho a Ordem dos Advogados prepara também uma proposta de lei em relação ao assunto de forma a respeitar os ditames da Constituição e com adaptações ao texto normativo português[120], no entanto o tema ainda segue em acirrados debates jurídicos e políticos acerca da conveniência, legalidade e proveito do instituto para o fins de aplicação penal em busca da pacificação social.

Parece-nos que a instituição da delação premiada no ordenamento português é iminente. No mesmo sentido há o sentimento de que legisladores, juristas e doutrinadores estudiosos do processo penal e Constitucional agem com a cautela e diligencias inerentes e necessárias antes de dar o passo final e efetivar a instituição da delação premiada no direito português, sob pena de se repetir a afoita inserção do referido instituto no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido Diogo Willian Likes Pastre o legisladir brasileiro agiu «contagiado pela euforia trazida pela operação italiana mani pulite (mãos limpas), como se fosse resolver toda a problemática de nossa criminalidade em apenas um lampejo de ideias mal traduzidas».


Conclusão

O presente relatório evidenciou que o instituto da delação premiada não é novo e remonta seu conceito básico desde a idade média onde os arguidos eram submetidos à tortura para confessar seus crimes e delatar outras pessoas.

Constatou-se que a inquisição na fase medieval da humanidade, foi utilizada tanto pela igreja quanto pelo estado, como ferramenta de controle, de forma autoritária e até mesmo cruel, contudo, o processo de humanização com o curso do tempo, possibilitou significativas mudanças no processo penal, contudo, ainda se faz presente nos dias atuais significativa mentalidade de cunha inquisitiva.

No que diz respeito ao processo penal de cunho acusatório, apregoado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como garantia individual inafastavel, na prática, as principais garantias democráticas relacionadas ao processo penal tem sido imprudentemente afastadas, com a elaboração de leis incompatíveis com o teor democrático processual inserto no texto constitucional.

Constatou-se a inclinação do Poder Judiciário brasileiro em face da atual realidade econômica, política e social do país, bem como da atuação dos integrantes dos poderes estatais (policia judiciária, Ministério Público e Poder Judiciário) no cenário persecutório penal de recepcionar de forma positiva a utilização do instituto da delação premiada no combate aos delitos de ordem econômica.

Diante do exposto, tem-se a impropriedade da exclusiva adoção de uma política criminal, de caráter claramente inquisitivo, para efeito de solução dos problemas da criminalidade econômica, como resultado de acusações sem o devido fornecimento de garantias e mecanismos de defesa e enfrentamento de forma igualitária e humana.

Em relativa evolução, o instituto volta a ocupar cenário de destaque mundial como um dos principais meios de combate aos danos ocasionados pelo crime organizado, notadamente ao crime de corrupção. É também fator preponderante o destaque de que o tema ganha os resultados da recente operação mãos limpas na Itália e também em decorrência da operação Lava Jato deflagrada pela Polícia Federal brasileira, que com a utilização da delação premiada vem desmantelando grandes esquemas de corrupção.

No entanto, mesmo com a forte pressão popular e também mesmo com os resultados obtidos no Brasil, juristas portugueses ainda recebem com reservas os ideais da delação premiada, seja pelos métodos pouco usuais para obtenção desse meio de prova, seja pela colisão de princípios constitucionais, em especial o principio da lealdade, seja, ainda, por ferir, em tese, princípios éticos.

O certo é que a inclusão do instituto da delação premiada, seja em qual nação for, deve ser objeto de profunda reflexão, debates e análises de todas as variáveis possíveis pela adoção desse meio de prova que, se de um lado vem contribuindo para desmantelar organizações criminosas, de outro, é utilizado por muitos arguidos como meio de difamação e imputação de crimes àqueles que seriam seus adversários ou inimigos, tendo o direito que se ocupar da análise de todas as garantias coletivas e individuais envolvidas.

Sobre os autores
César Godoy

Advogado na empresa Cesar Godoy Advocacia Mestrando em Ciências Jurídico-Criminais na Universidade Autônoma de Lisboa Especialista em Direito Processual Penal e Direito Penal na UNICURITIBA - Centro Universitário Curitiba Especialista em Direito Civil e Empresarial na PUC-PR Graduado em Direito na Univille - Universidade da Região de Joinville

Adriano Tavares

Advogado, sócio da Tavares Advogados Associados, mestrando em Ciências Jurídicas na Universidade Autônoma de Lisboa.

Carla Cristina Martins

Advogada e mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa.

Thiago Schutz

Advogado e mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, César; TAVARES, Adriano et al. Delação premiada: aspectos relevantes no contexto processual penal português e brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6366, 5 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78456. Acesso em: 19 dez. 2024.

Mais informações

Relatório produzido na Disciplina de Penal Econômico para obtenção do título de Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa.

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