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Imunidade penal no acordo de leniência antitruste

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Agenda 05/03/2020 às 16:10

3. Política legislativa sobre a Imunidade penal Antitruste

A política legislativa no começo do século XXI é claramente direcionada a uma exacerbação da resposta penal ao fenômeno da delinquência econômica, daí decorrendo uma tendência mundial pela adoção da imunidade penal antitruste. Vejamos.

Isso se deve a um entendimento cada vez mais sólido da necessidade de resguardar com a devida proporcionalidade a ordem econômica e os valores sociais da livre concorrência. Sobre a imensa importância da concorrência para o desenvolvimento da sociedade, vale a leitura dos argutos ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz Júnior: “(...) a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada." (FERRAZ JÚNIOR apud GRAU, 2010, p. 212).

Essa exacerbação da resposta penal desemboca principalmente num quadro de aumento do tempo máximo de reclusão para o crime de cartel e de combate à impunidade através de instrumentos processuais como a imunidade penal para delatores, revertendo uma histórica conivência do Estado para com aqueles que perpetram ações lesivas à ordem econômica. Tal situação de complacência estatal - que se pretende superar - é política e sociologicamente compreensiva, na medida em que se percebe ao longo da história, em muitos casos, um comprometimento da legislatura (oficial ou clandestino) com a elite econômica, responsável em maior grau por práticas anticoncorrenciais.

Ora, os monopólios e as agressões em geral à livre concorrência são tão antigos quanto o próprio comércio humano, mas somente em 1889 no Canadá foi editada a primeira [6] legislação antitruste do mundo (Act for the Prevention and Suppression of Combinations Formed in the Restraint of Trade), que previa multa e prisão por no máximo dois anos para o crime de cartel.

Pouco depois exsurge o Sherman Act, a lei antitruste dos EUA, de 2 de julho de 1890, complementada posteriormente pelo Clayton Act, de 1914, e pela lei que criou, no mesmo ano, a Federal Trade Comission, a agência antitruste estadunidense, na qual o nosso CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) se inspirou (RAMOS, 2014). O Sherman Act foi o efetivo precursor das leis antitruste hoje vigentes, inclusive a brasileira, e previa, em 1890, uma pena de até três anos de prisão para o infrator, além de multa. Em 1990, a lei dos EUA era a única do mundo a prever imunidade completa para a primeira corporação que relatasse seu envolvimento no cartel (LYNCH, P. 1). O Canadá também seguiu esse caminho, garantindo em sua legislação semelhante imunidade.

Assim como a legislação antitruste estadunidense, a canadense sofreu várias alterações ao longo do tempo, que são em geral elogiáveis. Uma das mudanças mais notáveis da lei canadiana está justamente na exacerbação da pena de prisão do crime de cartel, que atualmente poderá ser de até quatorze anos [7]. Já a legislação estadunidense agora prevê até dez anos de prisão (JONES, 2015, p. 2) como pena para a prática de cartel. Isso nos mostra uma clara tendência nos países mais desenvolvidos do norte da América em se agravar a punição da delinquência econômica.

Do outro lado do Oceano Atlântico, vários países europeus de notável tradição jurídica também criminalizaram a prática de cartel com penas de prisão e pesadas multas, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, consolidando uma repressão penal que parece ser um caminho sem volta (BORREL; JIMÉNEZ; LUNA, 2015, p. 135).

A ideia que ilumina essa agravação penal nos EUA, no Canadá e em boa parte da Europa reside basicamente no fato de que, em geral, atos lesivos ao corpo social são de grande potencial ofensivo, capazes de causar graves danos à coletividade, não podendo, assim, por óbvio, ser tratados como meras contravenções ou crimes de menor potencial ofensivo. Nesse sentido, excerto de acórdão do Plenário do STF:

“Os crimes do colarinho branco, em essência, são condutas puníveis na esfera penal, e não apenas civilmente irregulares; são proibições relevantíssimas para o seio social, e não apenas restrições formais e circunstanciais. Cuida-se, nas palavras de Abanto Vásquez, da proteção dos bens jurídicos mais importantes contra as ações perigosas mais graves em uma sociedade, motivo pelo qual a tendência da legislação e da doutrina penal dominante é a de recrudescer o tratamento penal conferido a condutas que afetem negativamente interesses sociais econômicos (ABANTO VÁSQUEZ, Manuel A. Derecho Penal Económico – consideraciones jurídicas y económicas. Lima: IDEMSA, 1997. p. 37).

O desafio na seara dos crimes do colarinho branco é alcançar a plena efetividade da tutela penal dos bens jurídicos não individuais. Tendo em conta que se trata de delitos cometidos sem violência, incruentos, não atraem para si a mesma repulsa social dos “crimes do colarinho azul” (Go directly to jail: white collar sentencing after the Sarbanes-Oxley Act. In: Harvard Law Review, vol. 122, 2008-2009. p. 1742 e ss.). A inoperância das instituições causa um nefasto efeito sistêmico, que, fomentado pela impunidade, causa pobreza atrás de pobreza, para o enriquecimento indevido de alguns poucos.” (BRASIL, 2013, Folha 53111).

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Não há nada de novo nesse discurso de que condutas lesivas a bens jurídicos supraindividuais merecem uma considerável resposta penal, senão vejamos trecho da obra (escrita no séc. XVIII) de Cesare Beccaria, considerado um dos pais do Direito Penal Moderno:

“Supondo-se a necessidade da reunião dos homens em sociedade, mediante convenções estabelecidas pelos interesses opostos de cada particular, achar-se-á uma progressão de crimes, dos quais o maior será aquele que tende à destruição da própria sociedade. Os menores delitos serão as pequenas ofensas feitas aos particulares. Entre esses dois extremos estarão compreendidos todos os atos opostos ao bem público, desde o mais criminoso até ao menos passível de culpa.

Se os cálculos exatos pudessem aplicar-se a todas as combinações obscuras que fazem os homens agir, seria mister procurar e fixar uma progressão de penas correspondente à progressão dos crimes. O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada nação.

Bastará, contudo, que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das penas proporcionadas aos delitos e que, sobretudo, não aplique os menores castigos aos maiores crimes.” (BECCARIA, 1764).

E para citar um jurista europeu contemporâneo ciente da importância da repressão penal das condutas cartelizantes, tem-se a preleção de Bruce Wardhaugh, “Professor Sênior” de Direito Concorrencial da University of Manchester: “A justificativa para o encarceramento é que a atividade de cartéis hard-core (cartéis clássicos) tem um efeito ‘nocivo’ sobre os consumidores. Se não fosse controlada dessa maneira, se tornaria mais difundida, causando danos ainda maiores ao público. Embora qualquer estimativa da extensão da conduta de cartel seja necessariamente imprecisa, é claro que os cartéis agridem interesses difusos. Na Europa, Neelie Kroes, então Comissário de Concorrência da União Européia (UE), vinculou a atividade de cartel ao furto, alegando que os cartéis ‘arrancavam o couro dos consumidores’.” [8].

Ponto de vista semelhante sobre a gravidade das condutas cartelizantes é expresso pela Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos EUA: “Fixação de preços, manipulação de propostas em licitação e alocação de mercado são crimes econômicos com efeitos potencialmente devastadores na economia dos EUA. Esses crimes pilham os compradores, contribuem para a inflação, destroem a confiança pública na economia e minam nosso sistema de livre iniciativa.” [9].

Acompanhando essa tendência de recrudescer o tratamento penal para a delinquência econômica, destaca-se também e justamente a imunidade penal para colaboradores que delatem os cartéis. Essa imunidade para o colaborador não deve ser vista como um paradoxo ou uma incoerência, pois se afigura um ônus inevitável para a persecução penal de outros envolvidos no cartel, conforme já se explicou acima. A imunidade conferida ao delator, assim, apenas confirma a tendência mundial de dar uma resposta penal mais efetiva e proporcional para esse tipo de delinquência. Repita-se: é o “preço” que o Estado paga para evitar a impunidade numa escala ainda maior.

Nesse sentido, a International Competition Network (2010) estipulou cinco grandes metas para serem cumpridas mundialmente na política de concorrência: I) aumento de sanções; II) melhoria da capacidade investigativa das autoridades; III) revisões de definições sobre o que constitui uma prática anticompetitiva; IV) introdução de programas de leniência; V) melhoria na percepção sobre a importância da atividade anticartel (BORREL; JIMÉNEZ; LUNA, 2015, p. 129).

Essas pautas vindas de organismos internacionais certamente influenciaram na criminalização da prática de cartel e/ou na positivação da imunidade penal correlata na legislação de vários Estados, tais como Reino Unido, Áustria e Eslováquia (JONES, 2015, p. 3). Inclusive, em países como a Irlanda, a pressão da União Europeia e do FMI foi decisiva para que a pena máxima do crime de cartel saltasse de 5 para até 10 anos de prisão (JONES, 2015, p. 4).

Compulsando-se a legislação penal brasileira, não se encontra a mesma evolução legiferante vista nos EUA, Canadá e Irlanda, no que se refere especificamente à área sancionatória.

No que tange à imunidade penal e à seara administrativa, porém, a legislação brasileira teve um significativo avanço com a edição da Lei no 12.529/11, que prevê o acordo de leniência, dentre outros relevantes instrumentos investigativos e sancionatórios cíveis e administrativos, alguns deles já analisados supra.

No entanto, há esperanças de que a legislação penal antitruste brasileira seja alterada em breve, pois tramita na Câmara um Projeto de Lei de autoria do deputado federal Fausto Pinato que recrudesce a pena do crime de formação de cartel dos atuais dois a cinco anos de reclusão para quatro a oito anos. Em caso de reincidência, o estabelecimento empresarial também estaria sujeito à perda do alvará de funcionamento. Vejamos qual é sua justificação anexa ao Projeto de Lei:

“A formação de cartel, crime contra a ordem econômica, é o acordo entre empresas com o objetivo de fixar artificialmente os preços ou quantidades dos produtos e serviços, de controlar um mercado, limitando a concorrência. A prática de cartel, por aumentar os preços artificialmente e por restringir a oferta de produtos ou serviços ou, até mesmo, inviabilizar a sua aquisição, causa profundos prejuízos aos consumidores brasileiros.

Apesar da prática de formação cartel já ser uma figura típica em nosso sistema jurídico penal, tem-se visto a proliferação dessa prática odiosa que afeta toda a população brasileira, que acaba por pagar preços exorbitantes por produtos e serviços. Exemplo clássico dessa situação que assola nossa sociedade é a prática de cartel dos postos de gasolinas, que onera indevidamente não apenas os donos de automóveis, mas, sim, toda uma cadeia produtiva, que necessita do transporte terrestre para escoar a produção, além dos cidadãos brasileiros que dependem do transporte público.

Dessa forma, proponho o aumento do tempo de reclusão dos atuais dois a cinco anos para quatro a oitos anos. Também, em caso de reincidência, sugiro que seja revogada a licença ou alvará de funcionamento do estabelecimento.

Amparado em tais argumentos, solicito o apoio dos meus Pares para a aprovação deste projeto, que tanto contribuirá para o bem-estar social dos cidadãos brasileiros.” (BRASIL, 2018).

Todavia, insta registrar que essa tendência de agravamento das penas do delito de formação de cartel não é um entendimento unânime entre os juristas. Inclusive, há aqueles que defendem a descriminalização do crime de formação de cartel. É o caso de André Luiz Santa Cruz Ramos: “(...) o que motivou a criação da lei antitruste americana — e o que sustenta todas as leis antitruste até os dias atuais — foi o protecionismo e o intervencionismo. É interessante para o governo ter, como moeda de troca, a possibilidade de fustigar empresas que estejam incomodando os "amigos do rei". E muitas empresas, principalmente aquelas menos eficientes, também gostam de saber que podem contar com a ajuda do governo na hora de atacar concorrentes mais eficientes.” (RAMOS, 2014).

Como visto, André Luiz Santa Cruz Ramos deixa transparecer em sua obra uma visão eminentemente liberal - que se reputa aqui, data venia, extremamente otimista - sobre a capacidade do mercado de se autorregular.

Ressalte-se, por fim, que os esforços administrativos mencionados acima envidados pela Superintendência-Geral do Cade e Procuradoria da República em São Paulo para evitar a impunidade dos crimes econômicos são dignos de encômios, pois, além de feitos com respeito à Lei, também estão em consonância com os ditames do Direito Penal Contemporâneo, que intenta dar uma proporcional e efetiva resposta penal àqueles que agridam importantíssimos bens jurídicos supraindividuais. Assim, se por um lado o Estado confere um inevitável tratamento lenitivo e despenalizador ao delator do cartel, por outro obviamente não pode ser conivente com a gravíssima delinquência econômica. 

Sobre o autor
Renato de Souza Matos Filho

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. É autor do livro "Crimes associativos: Sociedades e organizações criminosas".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATOS FILHO, Renato Souza. Imunidade penal no acordo de leniência antitruste. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6091, 5 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79535. Acesso em: 22 nov. 2024.

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