Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A covid-19 e a onerosidade excessiva nos contratos diante da força maior

Exibindo página 1 de 2
Agenda 08/04/2020 às 12:40

Reflexões sobre a questão da onerosidade excessiva com relação aos contratos em momento de grave crise de saúde pública.

I – O FATO

Informou o site do Estadão que, no dia 31 de março do corrente ano, a Raízen, empresa de combustíveis da Cosan e da Shell, declarou força maior em relação aos contratos assinados com seus fornecedores, por conta da epidemia do novo coronavírus. Assim, poderia rever os volumes de compra de etanol, originalmente programados. Com a maioria da população em casa, a venda de combustível caiu em até 80% em algumas cidades.

Já o Grupo Autostar, rede de 16 concessionárias de carros importados, como BMWLand RoverVolvoJeep e Harley-Davidson, ganhou na Justiça o direito de suspensão do pagamento de aluguéis por quatro meses. Os valores só serão pagos nos 12 meses seguintes, sem mora. Em seu despacho, a juíza Flávia Poyares Miranda, do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirmou que "a pandemia mundial acarretou a paralisação de diversas atividades, causando profundo impacto na vida das pessoas" e classificou a situação como um caso de "força maior", o que, no seu parecer, justifica a intervenção do Judiciário.

Os principais bancos do País anunciaram que vão prorrogar o pagamento de dívidas das pessoas físicas, além das micro e pequenas empresas por 60 dias.

A ideia das instituições bancárias é ajudar a economia brasileira neste início de casos envolvendo o coronavírus no País e foi anunciada em conjunto pelo Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Itaú Unibanco e Santander.


II – CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR

Estamos diante do que a doutrina chama de força maior.

Determina o Código Civil de 2002:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

A matéria foi objeto de previsão no artigo 1.058 do Código Civil de 1916 e ainda do Anteprojeto do Código das Obrigações, artigo 921, e Projeto no artigo 860.

Ali se dizia no Código Civil de 1916:

Art. 1.058. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito, ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado, exceto nos casos dos arts. 955, 956 e 957.

Consagrando o direito civil brasileiro o princípio da exoneração pela inimputabilidade, enunciou-se a tese da responsabilidade civil do devedor pelos prejuízos, quando resultem de caso fortuito ou força maior. Já não distinguia a lei a vis maior do casus.

No ensinamento de Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de direito civil, volume II, 1976, pág. 299), costuma-se dizer que o caso fortuito é o acontecimento natural, ou o evento derivado da força na natureza, ou o fato das coisas, como o raio do céu, a inundação, o terremoto. Por sua vez, conceitua-se a força maior como o damnu fatale originado do fato de outrem, como a invasão de território, a guerra ou a revolução, o ato emanado da autoridade, chamado de factum principis, a desapropriação, o furto etc.

Por sua vez, Roberto de Ruggiero (Instituições de direito civil, volume III, 3ª edição, tradução Dr. Ary dos Santos, pág. 99) aduziu que “quando a imputabilidade cessa, por não ser o fato danoso dependente da vontade do agente, estamos em frente do que se chama o caso fortuito e, por consequência, da exoneração de qualquer responsabilidade. É, pois, “caso”(fortuito) qualquer evento não imputável, isto é, qualquer fato independente da vontade humana e mais precisamente – quando o caso se considera em relação com o não cumprimento da obrigação – qualquer fato que a torne impossível sem culpa do obrigado”. Esse o pensamento trazido na doutrina: Exner, Gert, Biermann, Baron, dentre outros, na Alemanha, e na Itália com Coviello, De Medio (Caso fortito e forza maggiore in dir. romano), dentre outros.

Assim como no artigo 1058 do Código Civil de 1916 e o artigo 393 do Código Civil de 2002, houve-se por bem reunir como uma causa idêntica de exoneração do devedor e a resolução absoluta da obrigação.

Ainda, Caio Mário da Silva Pereira (obra citada, pág. 300) conceituou-os em conjunto como o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir, conceito que se ajusta à noção doutrinária abrangente de todo evento não imputável, que obsta no cumprimento da obrigação, sem culpa do devedor, como revelou Aurelio Candian(Nuovo digesto italiano, Caso fortuito). A doutrina, por outro lado, sustentou que o legislador filiou-se ao conceito objetivista.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

São esses os requisitos genéricos para tal: a) necessariedade, pois não e qualquer acontecimento grave e ponderável, bastante para liberar o devedor, porém aquele que impossibilita o cumprimento da obrigação. Se o devedor não pode prestar por uma razão pessoal, ainda que relevante, nem por isso fica exonerado, de vez que estava adstrito ao cumprimento e tinha de tudo para prever e a tudo prover, para realizar a prestação. Se esta se dificulta ou se torna expressamente onerosa, não há força maior ou caso fortuito; b) inevitabilidade, que requer ainda que não haja meios de evitar ou de impedir os seus efeitos, e estes interfiram com a execução do obrigado.

Na lição de Arnoldo Medeiros da Fonseca (Caso fortuito e teoria da imprevisão, ns. 69 e seguintes), às vezes, a imprevisibilidade determina a inevitabilidade, e, então, compõe a etiologia desta.

De toda sorte, trata-se de um conceito meramente negativo, uma vez, como ele exprime apenas uma negação da culpa, se afirma que o campo próprio do caso fortuito começa onde a culpa acaba. Mas isso, como explicou Ruggiero, é também a única coisa possível e adequada, visto que uma determinação positiva do caso supõe que o evento tenha caracteres intrínsecos e objetivos, reconhecíveis e absolutos, quando um tal evento pode considerar-se fortuito com respeito a uma dada relação jurídica e não fortuito com relação a outra. Quando, na verdade, se recorre, para determinação positiva do conceito, à ideia da imprevisibilidade e da inevitabilidade do evento, não se enuncia uma qualidade intrínseca e objetiva do mesmo; a imprevisibilidade e a inevitabilidade são em si essencialmente relativas e apenas se podem avaliar quando se considerem em face de dada relação, do dever da previsão que nela tinha o obrigado, da possibilidade que este tinha de evitar a eventualidade. Disse ainda Ruggiero que há caso fortuito, quando, em dada relação concreta, cessa a necessidade da previsão e a obrigação de um cuidado especial para o evitar, donde resulta que a sua determinação apenas pode ser negativa.

E concluiu Ruggiero (obra citada, pág. 161):

“Ora, porque no caso fortuito(como na força maior) não há imputabilidade, o devedor que não cumpre a obrigação por ter sido causa de não cumprimento o caso fortuito, fica desde logo liberto. Dispõe, finalmente, o art. 1.226 do Código Italiano de 1865: “O devedor não é obrigado a qualquer indenização por danos, quando por virtude de uma força maior ou de um caso fortuito foi impedido de dar ou de fazer aquilo a que se obrigou, ou fez aquilo que lhe era proibido”(ver art. 1218 do Código Civil Italiano de 1942). A obrigação também se dissolve e o devedor se liberta todas as vezes que uma causa estranha o impediu de prestar, ou porque a coisa devida se destruiu ou deixou de ser comerciável, ou porque a pessoa do devedor não pode já dispender a atividade necessária para produzir o resultado esperado, ou porque já não está na sua mão aquela omissão que constituía o interesse do credor etc, mas deve tratar-se de não cumprimento absoluto, que origine uma impossibilidade objetiva de prestar; uma impossibilidade meramente relativa e subjetiva, uma simples dificuldade, posto que grave, de prestar e que seja particular do devedor, não poderia nem liberá-lo, nem exonera-lo da responsabilidade pelos danos, em virtude do princípio fundamental, que exige que a todo custo se cumpra a obrigação e se satisfaça o interesse do credor”.

A doutrina alerta que cada hipótese deve ser ponderada segundo as circunstâncias que lhe são peculiares, e em cada uma ter-se-á de examinar a ocorrência do obstáculo necessário e inevitável à execução do devido. Disse Caio Mário da Silva Pereira(obra citada, pág. 301) que “pode acontecer que o mesmo evento, que facultou a um devedor o cumprimento, para outro já se erija com aquelas características de impedir a prestação. Não vemos aí a instituição de um novo requisito na etiologia da vis maior, senão a determinação de que os seus elementos sejam apurados sem subordinação a um critério inflexível. Ao revés, elástico deve ser. Se a inevitabilidade fosse absoluta, então o fortuito não precisaria de apuração. Por ser relativa, e por admitir que o que um devedor tem força para vencer outro não domina, é que o critério da apuração dos requisitos obedece a um confronto com as circunstâncias especiais de cada caso”.

Mas permite-se que as partes possam ajustar que o devedor responda pelo cumprimento, ainda no caso de força maior ou caso fortuito, que prevalecerá em face da declaração expressa, já que não é de se presumir um agravamento da responsabilidade. Mas estando o devedor em mora, cujo efeito é perpetuar a obrigação e sujeitar o devedor às consequências do inadimplemento, ocorre a responsabilidade pelo casus ou vis maior, salvo se demonstrar que não teve culpa no atraso ou que o dano sobreviria, mesmo se a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

Anote-se que, no caso de ter o mandatário, contra a proibição formal do mandante, substabelecido os poderes em um terceiro, responde pelo dano causado sob a gerência deste, mesmo decorrente de fortuito, salvo provando que o dano teria sobrevindo ainda que não tivesse realizado a substituição do representante, como já registrava o artigo 1300 do Código Civil de 1916.

Observo, outrossim, o mesmo entendimento, na gestão de negócios, quando o gestor fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesses deste por amor aos seus. Observe-se ainda, no caso da tradição de coisas que se vendem, contando, marcando ou assinalando, quando já postas à disposição do comprador.

Mas, se o acontecimento extraordinário não trouxer a impossibilidade total da prestação, eximir-se-á o devedor da parte atingida ou se forrará da mora, se apenas tiver como consequência o atraso na sua execução. Mas, não poderá invocar o prejuízo para exoneração absoluta, beneficiando-se fora das marcas.


III – A ONEROSIDADE EXCESSIVA DIANTE DA CRISE GERADA PELO COVID-19

Estima-se um intenso desemprego diante de uma recessão como consequências nefastas trazidas pelo coronavírus.

Como noticiou o Estadão, a gestão João Doria (PSDB) cogita aumentar ainda mais as restrições de acordo com a evolução da epidemia. "Existe uma gradação. O que estamos fazendo não é um isolamento. É um distanciamento social. O próximo passo, se houver necessidade, é um isolamento domiciliar ou social. E, se houve necessidade ainda de apertar mais esse cinto, aí seria o lockdown. E a característica, aí, é o uso da força policial para manter as pessoas em casa", afirmou Germann. "Não estamos nesta situação ainda, mas não sei se estaremos ou não”. Tal medida seria tomada no plano do exercício de  um poder de polícia, mediante medidas autoexecutórias que objetivam, de forma proporcional e razoável, o bem estar da população, à luz do interesse público.

Há o que se chama de onerosidade excessiva.

Os agentes econômicos ficam sem recursos para o adimplemento de suas obrigações contratuais. Isso porque chegarão ao estado de insolvência. Seus salários poderão ser suspensivos por dois meses(antes se cogitava em quatro meses) e o com um auxílio-desemprego a ser concedida pelo Estado, mal terão condições de pagar os seus compromissos contratuais.

O caráter extraordinário e imprevisível da pandemia é inquestionável.

Fala-se, é certo, no princípio da autonomia da vontade, mas que sofre restrições, oriundas do dirigismo contratual, que, ao invocar a supremacia do interesse público, ínsita a um Estado Social, obriga o Estado a intervir na economia, intervêm no curso das relações contratuais, que não podem ser vistas como mero instrumento do Estado Burguês.

Não se trata de intervencionismo estatal, mas de promoção permitida dentro de um Código Civil de 2002, de índole liberal-social, de medida extraordinária em prol de uma parte devedora nitidamente alcançada por fatos imprevisíveis.

Aplicam-se os artigos 478 e 480 do Código Civil de 2002.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Assim, a onerosidade excessiva, oriunda de evento extraordinário e imprevisível, que dificulta extremamente o adimplemento da obrigação de uma das partes, é motivo de resolução contratual, por se considerar subentendida a cláusula rebus sic stantibus, que corresponde à fórmula de que, nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório ficará subordinado, a todo tempo, ao estado de fato vigente à época de sua estipulação. A parte lesada no contrato por estes acontecimentos supervenientes, extraordinários e imprevisíveis, que alterem profundamente a economia contratual, desequilibrando as prestações recíprocas, poderá, para evitar enriquecimento sem causa ou abuso de direito por desvio de finalidade econômico-social, sob a falsa aparência de legalidade, desligar-se de sua obrigação, pedindo a rescisão do contrato ou o até ajustar o contrato a valores possíveis diante de força maior.

Para Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro, volume III, 24ª edição, pág. 164) a onerosidade excessiva está adstrita à resolução e não à revisão contratual, mas nada obsta a que o interessado(réu da ação de resolução do contrato) se ofereça, ante o princípio da conservação do negócio jurídico, na contestação ou na transação judicial para modificar a prestação, evitando a rescisão do contrato, a teor do disposto nos artigos 317 com o 479, e restabelecendo o equilíbrio contratual.

A rescindibilidade do negócio jurídico prescinde de qualquer vício do consentimento ou de incapacidade da pessoa, sendo o seu pressuposto uma lesão.

Por lesão, como ensinou Roberto de Ruggiero (Instituições de direito civil, v. I, 3. ed., tradução de Ary dos Santos, p. 276), deve entender-se não a violação comum e genérica da esfera jurídica alheia, mas uma tão grave desproporção entre a prestação dada ou prometida e a contraprestação recebida ou prometida que origine um iníquo depauperamento de um e o injustificado e desproporcionado enriquecimento do outro. No sentido técnico, existe a lesão nos chamados contratos comutativos, quando a prestação de uma parte corresponde a uma prestação de outra tão gravemente desproporcionada que exceda quaisquer limites toleráveis da livre avaliação dessas partes acerca da vantagem ou do ônus que cada uma promete ou espera no contrato.

Ainda, Maria Helena Diniz(obra citada, pág. 164) ensinou que devem ser vistos os seguintes requisitos: a) vigência de um contrato comutativo de execução continuada que não poderá ser aleatório, porque o risco é de sua própria natureza, e, em regra, uma só das partes assume deveres; b) alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, em confronto com as do instante de sua formação; c) onerosidade excessiva para um dos contratantes e benefício exagerado para o outro; d) imprevisibilidade e extraordinariedade daquela modificação, pois é necessário que as partes, quando celebraram o contrato, não possam ter previsto esse evento anormal, isto é, que está fora do curso habitual das coisas, pois não se poderá admitir a rebus sic stantibus se o risco advindo for normal do contrato, como se lê do artigo 478 do Código Civil.

Se o judiciário conceder ganho de causa, julgando procedente o pedido ou ainda que parcialmente, ter-se-á a liberação do devedor ou a redução da importância, ou melhor, das prestações ajustadas, e as que, porventura, foram dadas ou recebidas na pendência da lide estarão sujeitas a modificação na execução da sentença. A sentença terá caráter aqui meramente declaratório, daí porque irá retroagir ex tunc à data da citação(artigo 478 do CC).

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A covid-19 e a onerosidade excessiva nos contratos diante da força maior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6125, 8 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80869. Acesso em: 22 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!