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A peste do covid-19 e algumas reflexões sobre a cultura brasileira

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Agenda 22/04/2020 às 10:15

O povo brasileiro carece de uma identidade. A realidade de separação e distanciamento de ideologias foi gerada por uma classe política mediana, economia fraca, baixa escolaridade e elementos culturais não identificados de forma precisa.

Em dezembro de 2019, em uma localidade da China, surgiram os primeiros casos da doença global, o novo coronavírus (o Covid-19), que gerou inúmeros problemas aos sistemas de saúde, às economias e as sociedades.  Em muitos países e cidades houve a imposição do isolamento social de milhares de pessoas para evitar a propagação do vírus. O efeito em cascata começou na China e, em janeiro e fevereiro de 2020, outros países como Espanha, Itália, França, Estados Unidos e o Brasil, passaram a enfrentar as consequências da contaminação.

Os governos locais adotaram políticas sanitárias pontuais para tentar controlar a situação, uma vez que o vírus possui uma forma de contágio muito rápida e se dissemina pelo contato com pessoas contaminadas. Dentre as políticas adotadas estão a quarentena e o isolamento de parte da população, restrições na circulação de pessoas, limites ao modo de funcionamento de estabelecimentos comerciais, entre outros. Tais medidas adotadas repercutiram na economia de forma drástica, ante a emergência com que elas foram adotadas, gerando desemprego, retração econômica, demissões, inadimplementos contratuais, paralisações de obras e assim por diante. A economia, então, passou a ter outra dinâmica para gerar riquezas,  fatos estes sem precedentes para a própria economia e para a sociedade moderna[3].

A globalização e seu invento, a internet, responsáveis pela proliferação irrestrita das informações e notícias relacionadas ao Covid-19, obrigam os Governos a adotarem políticas sociais, econômicas e de saúde que sejam rápidas e que visem a proteger a vida humana acima de tudo. A desinformação deixou de ser uma desculpa.

Ponto incontroverso é notar que as relações humanas, assim como as esferas sociais e econômicas, foram impactadas de um momento para o outro, provocando enormes desdobramentos. Um exemplo é a previsão de retração econômica em torno de 10% do PIB brasileiro no segundo trimestre deste ano, em comparação ao mesmo período do ano de 2019[4], sendo que os crescimentos e retomadas econômicas deverão acontecer gradualmente nos próximos anos[5].

Este crescimento será possível por ausência de destruição da capacidade produtiva global, pois o que os países vivem é o congelamento da economia, sem a destruição de sua planta produtiva ou de suas atividades, ou seja, há uma curva econômica, na qual o ponto baixo desta está ligado ao período de elevada contaminação. A retomada ocorrerá em cada país ou região com velocidade relativa, conforme os fatores particulares de cada um.

Mas há a impressão de que no Brasil o governo (federal e outros locais) não vislumbra este fato e tenta se aproveitar da situação de caos social e sanitário para obter vantagem política. Vejamos:

A sociedade brasileira, há tempos, tem vivido movimentos de segregação política, social e econômica movidos por ideologias antagônicas que geram impasse e desentendimento entre o povo brasileiro. Ocorre que nos últimos anos este cenário tem se agravado com a bipolarização política.

É fato notório que o povo brasileiro carece de uma identidade. Esta realidade de separação e distanciamento de ideologias foi gerada por uma classe política mediana, por uma economia fraca, por baixa escolaridade e por elementos culturais não identificados de forma precisa. Estes problemas são crônicos e estão postos desde a chegada dos portugueses ao Brasil, passando pela abolição da escravidão e pela busca de direitos, como estampados na Constituição Federal de 1988, muitos ainda não garantidos ou estruturados na sociedade.

Este cenário serviu para acentuar  um conflito social real existente no Brasil, ante o problema apresentado pelo COVID-19, qual seja: um grupo de pessoas, lideradas politicamente, que defendem a não paralisação do país para que a economia não sofra um impacto tão expressivo, ignorando assim as consequências de um número elevado de mortes por contaminação pelo vírus, alegando serem maiores os transtornos econômicos do que as milhares de vidas que sucumbiriam. De outro lado, o grupo de pessoas acompanhadas por cientistas e médicos que defendem a quarentena e o isolamento social por alguns meses, compreendendo os impactos na economia, mas valorizando, de fato, as vidas humanas resguardadas pela diminuição da proliferação do vírus, como já vem ocorrendo em outros países.

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Os choques ideológicos são expressivos, pois de um lado temos o Presidente da República, que lidera um grupo radical a favor da economia em pleno funcionamento e, de outro, governadores de estados e médicos que lideram outro grupo a favor da vida. Mas o que está por trás de tudo isso não é um debate social, de saúde ou econômico, e sim, de natureza ética, revelando um problema cultural crônico: a falta de identidade cultural do povo brasileiro e uma crise de racionalidade e ponderação. Afinal, o que deve prevalecer: a vida humana ou a economia aquecida?

A paralização da economia e o isolamento social são fatos que a ciência evidenciou serem meios para resolver o problema do coronavírus até aparecer um remédio ou uma vacina. Inclusive, enquanto este artigo é escrito, a China retoma suas atividades em ritmo crescente e os casos de contaminação são pífios após quase quatro meses de isolamento social. Vale ressaltar que não se tem estatísticas sobre pessoas que “morreram de fome” pela economia fraca neste período (em que pese sabermos que podem ter existido casos), mas sim, de pessoas que morrem pelo contágio do vírus. Ou seja, houve impacto econômico, mas isso não gerou desordem civil ou morte de milhares de pessoas por não terem o que comer. Obviamente este exemplo pode ser usado para outros países afetados, evidenciando mais uma vez que o debate entre vida versus economia é falso.

E por que uma parcela da população brasileira defende o aquecimento econômico mesmo em detrimento da vida humana? A resposta não é simples e passa por uma reflexão profunda acerca dos aspectos sociais e culturais que que influenciam diretamente esses sujeitos.

Vamos a algumas constatações. O Brasil é um país muito grande, em território e população. Somos um povo constituído por muitas culturas e divididos em classes sociais, cada qual com suas características. Há uma classe social que busca a todo custo se promover e se emancipar economicamente, uma classe que deseja ser rica, mais rica que os demais e que tem a ascensão econômica como único objetivo de suas vidas. E não estamos aqui tratando da ambição, já que numa sociedade capitalista ela é muito necessária e saudável. Ocorre que a ambição deve andar de mãos dadas com a ética, seja no âmbito racional ou legal, para a manutenção da civilidade e da essência humana. Por isso a cultura de uma nação é essencial.

Claude Lévi-Strauss[6], ao se debruçar sobre a antropologia social, demonstrou que o elemento cultural é fruto de uma ‘produção’ (construção) que, no caso  brasileiro, pode ser bem resumida por Darcy Ribeiro[7] que retratou os povos que geraram a etnia brasileira e destacou que somos vítimas de um processo de violência física, moral ou psicológica, e (por nossa conta) esta violência se apresenta até hoje deixando marcas sociais profundas, como situações reais de misoginia, de discriminação, intolerância, pobreza,  de radicalismos e, sobretudo, de agressão físicas ou morais a outros indivíduos, simplesmente porque pensam ou agem de forma diferente, ou seja, a produção cultural foi e é falha, desorganizada e, as vezes, parece incipiente.

Bem, este povo que ainda não construiu uma identidade, que foi cunhado na base da violência e que busca a ascensão pessoal a todo custo, agora caminha lado a lado na sociedade global, uma vez que o nível educacional é baixo e a aristocracia e a classe política nacional são limitadoras[8], sendo que a bipolarização política enfraquece ainda mais o processo emancipatório, tornando o povo mais alienado e mais limítrofe.

Com efeito - e insisto - a dicotomia apresentada neste texto e no dilema social atual, qual seja, “ou a vida humana ou a economia sobrevivem ao COVID-19”, é uma dicotomia falsa, pois a economia não é um fim em si; não há mercado econômico sem atividade e sem seres humanos, não há consumo sem consumidor e os exemplos de outros países demonstram que a economia sobrevive sim, que a atividade econômica pode ser reinventada e reaquecida. A fome ou a miséria não são elementos únicos e exclusivos deste sistema de pandemia, já existiam em índices alarmantes no Brasil e foram tratados por governos anteriores, como por exemplo, os governos dos presidentes Fernando Henrique ou Lula através da criação de programas sociais de distribuição de renda e ajuda aos necessitados. Este, aliás, um eixo da Constituição Federal por meio da Seguridade Social (sendo assim um programa de estado e não de governo), ademais este é o mesmo programa adotado atualmente para a distribuição de renda no momento do COVID-19.

Ao que tudo indica, os princípios jurídicos e fáticos da ‘vida’, da ‘saúde’ e da ‘dignidade da pessoa humana’ se sobrepõem ao princípio da ‘livre iniciativa’ e da ‘ampla liberdade econômica’, e isso ocorre há tempos, quando se tem um estado que tributa, um estado que controla a atividade privada em alguns setores, limita o desenvolvimento econômico e que gera a distribuição de riquezas amparando classes mais pobres da sociedade, como temos no Brasil.

Portanto, a discussão apresentada pela pandemia do Covid-19 não é principiológica, e sim, de pura ideologia. Está impregnada na “psique do povo brasileiro” que ainda está em  busca de uma “construção de sua identidade”, e, dentre estas ideologias (que são inúmeras), há aquela típica de um sistema capitalista rudimentar, qual seja: “eu tenho ‘x’ e para manter ou aumentar este ‘x’ preciso manter a produção econômica como está sob pena de eu ficar mais pobre em relação a outra pessoa, nem que para isso eu tenha que obrigar as pessoas a trabalharem e a serem contaminadas pelo vírus, correndo até risco de perderem suas vidas, mas o negócio não pode parar”. Esta é uma ideologia primária e sem fundamento estrutural, pois os fins nunca justificam os meios.

E mais. Este discurso de que a economia deve prevalecer e que a atividade econômica nacional precisa ser retomada a qualquer custo é capitaneada por três grandes grupos que precisam ser identificados, sob pena de generalização. São eles:

  1. um grupo das pessoas mais pobres economicamente e que vislumbravam no trabalho a possibilidade de ascensão econômica e manutenção de sua sobrevivência, acreditando em ausência de liberdades públicas e até mesmo em ditaduras como meios de salvação;
  2. um grupo de pessoas com poder de renda médio na sociedade, que não querem perder mordomias e condições econômicas que possuem, que querem ascender economicamente, mas não querem a ascensão da classe mais baixa ou a equivalência de renda e que acreditam no autoritarismo do estado;
  3. e outro grupo dos ricos que querem continuar ricos e mais ricos, reunindo os elementos anteriores, somados a conivência com a opressão e controle dos mais pobres para manutenção do status e do poder.

Em todos os grupos acima há mais um traço em comum: a busca desenfreada por melhoria das condições de vida com o acúmulo de riquezas a qualquer custo. Mas será que eles estão certos? Já vimos que a premissa e o debate econômico não são válidos, já que os fins não justificam os meios.  

É nítido para o observador que aquele que conseguiu sua ascensão econômica e profissional não aceita regredir (e é óbvio que isto não deve acontecer) mas daí utilizar o discurso de que a economia deve preponderar e que vidas humanas podem ser perdidas para que o “status quo” econômico seja mantido é uma ausência de sensibilidade absurda, é falta de empatia e de princípios para viver em sociedade e viver pacificamente enquanto sujeito (ser social). Por isso, ratifica-se que nossa cultura ainda está em formação e ou “produção” (como afirmou Claude Lévi-strauss).

Ora, todos os seres humanos, em diferentes proporções, demonstram medo do vírus e da morte, e isso é natural. Ocorre que, para alguns, o medo coletivo é deixado de lado, pois há certo risco assumido, qual seja, se houver a morte, ela está contabilizada e a vida um dia terminaria. Então, por que a preocupação? E este é o ponto central da falta de identidade cultural brasileira que ainda está em processo de construção, a “ausência de preocupação com o outro”, pois o indivíduo capitalista inserido em um destes grupos quer somente a proteção de seu núcleo familiar mais restrito. Aos demais, vale a “teoria do risco” e o preço a ser pago. Ou seja, a vida do outro possui uma taxação que o sistema incorpora para se manter vivo e estável, não importando quem seja o outro.

Zygmunt Bauman já nos alertou sobre as relações fluidas, líquidas, nada duradouras. O presente debate apresentado neste artigo vem ratificar a tese do autor, já que os questionamentos são intermináveis sob este prisma: até que ponto a vida do outro pode ser sacrificada em prol de uma pseudo manutenção da atividade econômica?  Quanto vale a vida humana? Estaria o homem tão irracional a ponto de acreditar que a vida do outro é menos importante que a dele?

Ora, há ainda mais um ponto relevante. O mundo está paralisado agora. O problema assumiu uma dimensão global. O Brasil não está sozinho na luta pela vida. A retomada do crescimento e a manutenção da economia global será gradativa após o pico da doença, observando as particularidades de cada setor. A economia brasileira não vai naufragar, o mundo está em recessão. Basta observarmos os índices das bolsas de valores para termos um exemplo.

A responsabilidade não está nas mãos de um representante político, internacional ou local. São um conjunto de condutas de alguns líderes políticos que farão a diferença na promoção da vida. E estas vidas continuarão consumindo, trabalhando e movimentando a economia.

O ser humano precisa mais do que nunca ser imbuído pela empatia, pelo amor ao próximo, fortalecer as relações, aprender a viver na diversidade, com respeito, tolerância e, sobretudo, a valorizar a vida humana, aprendendo com a história e lembrando que precisa viver em sociedade. Somente assim conseguirá contribuir de forma singular com a construção e a evolução de sua cultura e da cultura de seu povo.

Hannah Arendt afirmou que “quanto mais superficial alguém for, mais provável será que ele ceda ao mal”.[9].

A frase da autora é perfeita. Diante de todos os pontos já levantados, é possível notar que o processo de alienação de massa continua e está presente cada vez mais, quer pelo uso da mídia (clássica ou digital/internet), quer pelo uso da retórica do medo, retardando o processo de construção cultural. A violência social pregada pelos grupos que defendem a manutenção da atividade econômica a todo custo sob pena da fome e da miséria serem disseminadas ocasiona uma ruptura de valores com a atual e com as futuras gerações. É como se o pacto social e de civilidade estivesse sendo rompido pelo debate puramente econômico[10].

Certo que a essência humana ‘é a vida com razão’, à qual Jean Paul Sartre indicou em seu existencialismo. Ou melhor, no pensamento do autor a ‘existência precede a essência’ (por isso a vida vem antes da razão). Assim, a vida humana precede a tudo. Nada pode sobrepô-la.

A conclusão que se chega é que, além de um problema cultural crônico do homem brasileiro que defende a manutenção econômica a todo custo[11], há nele uma ausência de empatia com uma angústia generalizada, com medo exponencial e desespero de se perder o “status quo” econômico e social.  Enfim, ‘há uma pobreza de caráter social’ nestes grupos[12].

Enfim, ratifico que a vida humana não tem preço. O papel do Estado é intervir na economia para fazê-la sobreviver. O debate economia versus vida humana é falso, as premissas são perfunctórias e falsas e as conclusões daqueles que defendem a economia a todo custo são falaciosas e provocadas pela ausência de elementos culturais sólidos. 

Recordo uma entrevista de Stephen Hawking, em 2016, que respondeu ao jornalista Larry King que as mudanças climáticas eram irreversíveis e que apesar de tudo o que a humanidade vive, nós, os seres humanos,  “não nos tornamos menos gananciosos ou menos estúpidos”. Fato. E aqui encerro o debate citando Mia Couto[13]: “Agora é preciso coragem para ter esperança”.

Sobre o autor
Aarão Ghidoni do Prado Miranda

Advogado sócio do escritório Miranda advogados, professor de cursos de graduação e pós-graduação, especialista e mestre em direito. Autor de diversos artigos e livros jurídicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Aarão Ghidoni Prado Miranda. A peste do covid-19 e algumas reflexões sobre a cultura brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6139, 22 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81203. Acesso em: 23 dez. 2024.

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