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O instituto da limitação administrativa na perspectiva da responsabilidade civil estatal

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Agenda 18/07/2020 às 11:00

 IV – A RESPONSABILIDADE CIVIL ESTATAL

Os fundamentos da responsabilidade civil são, de um lado, a culpa (subjetiva), quando haverá necessidade de perquirir a culpa, em sentido lato, na conduta estatal geradora do dano, e, de outro, o risco (objetiva) quando independe da demonstração da culpa para fins de reconhecimento do direito ao ressarcimento, competindo tão somente à comprovação dos seguintes elementos: a) conduta estatal; b) dano; e c) nexo causal.

Enquanto no direito privado a responsabilidade civil é, em regra, subjetiva, e tem como base um ato ilícito, no âmbito do direito público, a regra é a aplicação da responsabilidade objetiva, podendo decorrer de uma conduta ilícita ou lícita nos termos do art. 37, §6º da CF[14].

Assim, quando caracterizado o nexo causal entre a conduta comissiva estatal, no exercício da função administrativa, e o dano ocasionado, haverá o dever de indenizar com base na responsabilidade objetiva, havendo divergência com relação à conduta omissiva, visto que boa parte da doutrina entende, nesse caso, pela aplicação da responsabilidade com base na culpa anônima, na qual será da vítima o ônus de comprovar a falha na prestação do serviço: serviço não funcionou, funcionou mal ou funcionou tardiamente. 

Diferente do exercício da função administrativa, em que a responsabilidade objetiva é a regra quando ocasionado danos a terceiros, o exercício das funções legislativas e judiciais não ensejam, como regra, a responsabilidade civil, enumerando a doutrina as situações excepcionais em que haverá o dever de indenizar tendo por causa o exercício dessas atividades.

No caso da função legislativa, reportamo-nos aos ensinamentos de GASPARINI[15]:

A lei e a sentença, atos típicos, respectivamente, do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, dificilmente poderão causar dano reparável (certo, especial, anormal, referente a uma situação protegida pelo Direito e de valor economicamente apreciável). Com efeito, a lei age de forma geral, abstrata e impessoal e suas determinações constituem ônus generalizados impostos a toda a coletividade. Nesse particular, o que já se viu foi a declaração de responsabilidade patrimonial do Estado por ato baseado em lei declarada, posteriormente, como inconstitucional (RDA, 20:42, 189:305, 191:175). Assim, a edição de lei inconstitucional pode obrigar o Estado a reparar os prejuízos dela decorrentes. Fora dessa hipótese, o que se tem é a não-obrigação de indenizar. Não obstante a prevalência dessa doutrina, decidiu o então Tribunal de Alçada de São Paulo que é devida indenização a empresa que, por lei, fora proibida de explorar a extração de madeira (RDA, 109:172).

Da mesma forma, CARVALHO FILHO[16] após expor o entendimento de que o ato legislativo não gera responsabilidade civil estatal, quando a lei é produzida em conformidade com os mandamentos constitucionais, reconhece a excepcionalidade da indenização, vide entendimento:

Cumpre reconhecer, entretanto, que moderna doutrina tem reconhecido, em situações excepcionais, a obrigação do Estado de indenizar, ainda que a lei produza um dano jurídico lícito. Isso ocorre particularmente quando a lei atinge direitos de determinado grupo de indivíduos (p. ex.: o de propriedade), à custa de algum outro benefício conferido a um universo maior de destinatários. Trata-se aqui de dano lícito indenizável, sujeito, no entanto, a que seja (a) economicamente mensurável, (b) especial e (c) anormal. De qualquer modo, sempre será necessária certa precaução no que tange à análise de tais situações, em ordem a evitar que lei contrária a meros interesses possa gerar pretensões reparatórias despidas de fundamento jurídico.

Em sequência, o consagrado administrativista indicam as situações excepcionais em que o exercício da função legislativa poderá ensejar reparação patrimonial: a) leis inconstitucionais; b) leis de efeitos concretos; e c) omissão legislativa.

Resta saber se a excepcionalidade da indenização proveniente da instituição de limitação administrativa se enquadraria em uma dessas hipóteses ou se seria uma quarta hipótese de responsabilidade civil estatal com fundamento na função legislativa.


V – A RESPONSABILIDADE CIVIL ESTATAL EM CASOS DE LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS

A discussão aqui deve ser iniciada a partir de um marco divisório, visto que não se reconhece direito à indenização nas situações em que a limitação administrativa é preexistente ao direito de propriedade e/ou ao exercício da atividade privada[17], razão pela qual só há de se cogitar a excepcionalidade da responsabilidade civil estatal quando a limitação administrativa for superveniente ao exercício dos poderes da propriedade e/ou ao exercício da atividade privada.

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Quando a limitação administrativa é preexistente ao direito de propriedade e/ou da atividade privada, não há embasamento para reclamar indenização e, dessa forma, caso alguém compre um terreno em uma localidade na qual há limitação administrativa já instituída por lei municipal, no que se refere ao direito de construir, tal proprietário não poderá reclamar indenização do Município, caso não consiga realizar a construção na forma que, anteriormente, planejava.

O Supremo Tribunal Federal[18] já enfrentou o tema, conforme o seguinte julgado:

Se a restrição ao direito de construir advinda da limitação administrativa causa aniquilamento da propriedade privada, resulta, em favor do proprietário, o direito à indenização. Todavia, o direito de edificar é relativo, dado que condicionado à função social da propriedade. Se as restrições decorrentes da limitação administrativa preexistiam à aquisição do terreno, assim já do conhecimento dos adquirentes, não podem estes com base em tais restrições, pedir indenização ao poder público. (STF – RE 140.436, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª T. DJ 06/08/1999)     

A discussão, portanto, se refere à instituição de limitação administrativa que atinge a propriedade já existente e/ou atividade privada já exercida ou que esteja na iminência de ser exercida, situação esta em que haverá a frustração de uma expectativa legítima[19].

 A responsabilidade civil estatal em relação à função legislativa é excepcionalmente reconhecida pela doutrina em três situações: a) leis inconstitucionais; b) leis de efeitos concretos; e c) omissão legislativa.

Em nosso ordenamento jurídico a lei presume-se constitucional e, dessa forma, a sua existência, por si só, não é capaz de causar danos; lado outro, doutrina e jurisprudência reconhecem que a lei inconstitucional é uma das hipóteses excepcionais que enseja a responsabilidade civil estatal pelo exercício da função legislativa. Assim, caso a lei veiculadora da limitação administrativa seja declarada inconstitucional, será possível ao eventual prejudicado que tenha sido impedido de exercer normalmente uma atividade privada ou usufruir economicamente da propriedade pleitear indenização.

A Súmula Vinculante de nº 49 estabelece que “Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área”, cujos precedentes que deram origem ao referido enunciado envolveram, por exemplo, a distância mínima entre farmácias e, dessa forma, a edição lei municipal estabelecendo uma distância mínima para a instalação de novos estabelecimentos farmacêuticos é evidentemente inconstitucional, o que poderá gerar, em tese, reparação econômica para eventuais prejudicados que foram obstados de iniciar o funcionamento de seu estabelecimento. 

Lado outro, e se a lei instituidora da limitação administrativa for constitucional, poderia, mesmo assim, gerar direito à indenização? Tratando-se de lei constitucional, não se pode invocar a ilicitude do ato normativo instituidor da limitação administrativa, ou seja, a conduta estatal é lícita. Embora a lei seja dotada de generalidade e abstração, a sua aplicação concreta em situações específicas poderá acarretar o esvaziamento do conteúdo econômico da propriedade ou o total impedimento do exercício de atividade privada.

A lei não deixa de ser genérica e abstrata, no entanto, em sua aplicação serão identificadas situações geradoras de um dano indireto, não se confundindo, portanto, com a lei de efeitos concretos, a qual já nasce direcionada a uma situação específica e individualizada, a saber, voltada para determinado sujeito, objeto ou relação jurídica, cuja reparação econômica tem como suporte, portanto, um dano direto.

DI PIETRO[20] ao explanar sobre a responsabilidade extracontratual estatal assim nos ensina:

Com relação às leis de efeitos concretos (também chamadas de leis materialmente administrativas), que atingem pessoas determinadas, incide a responsabilidade do Estado, porque, como elas fogem às características da generalidade e abstração inerentes aos atos normativos, acabam por acarretar ônus não suportado pelos demais membros da coletividade. GRIFO NOSSO

Não desconsidera que na limitação administrativa, para ensejar a responsabilidade civil estatal, deverá ser demonstrado o impacto desproporcional sobre a propriedade e/ou atividade privada, quando comparado a situações semelhantes, o que não será perceptível somente com a leitura da lei, dependendo da análise da realidade concreta, o que reforça a distinção entre a lei, genérica e abstrata, da lei de efeitos concretos, para fins de reconhecer direito à indenização em vista da ação legislativa, uma vez que na lei de efeitos concretos, a partir da leitura já se identifica quem será atingido pela medida estatal.  

Para MEIRELES[21] “...as limitações administrativas há de corresponder às justas exigências do interesse público que as motiva sem produzir um total aniquilamento da propriedade ou das atividades reguladas”. Tal aniquilamento, para alguns, caracterizaria verdadeira desapropriação indireta, não obstante a jurisprudência já enfrentou o tema, podendo destacar os seguintes marcos diferenciadores: a) só caracteriza desapropriação indireta quando há efetivo apossamento físico do bem[22], o que não ocorre na limitação administrativa, a não ser que haja deturpação desse instituto que acarrete a aniquilação total da propriedade ou do exercício da atividade privada; b) enquanto na desapropriação indireta viola-se um direito real, a limitação administrativa envolve direito pessoal.

Tal distinção é importante porque vai refletir no prazo prescricional de eventual ação indenizatória, visto que, em relação à desapropriação indireta, o entendimento majoritário é pela aplicação do prazo de 10 (dez) anos, enquanto que na limitação administrativa, o prazo prescricional para que se busque eventual direito indenizatório é de 05 (cinco) anos[23], conforme se infere do seguinte julgado:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA - USINA DE NOVA PONTE - PRESCRIÇÃO QUINQUENAL - PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 10 DO DECRETO 3.365/41 - ENTENDIMENTO PACIFICADO NO STJ. É quinquenal a prescrição em relação ao pedido de indenização decorrente da limitação administrativa ao uso da propriedade imposta pela criação do lago artificial da Usina de Nova Ponte, por força do parágrafo único do art. 10 do Decreto-lei n.º 3.365/41, consoante entendimento pacificado do Superior Tribunal de Justiça.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0498.10.002500-2/001, Relator(a): Des.(a) Habib Felippe Jabour (JD Convocado) , 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 12/11/2019, publicação da súmula em 21/11/2019)

Por fim, a outra situação em que se admite a responsabilidade civil estatal com base na função legislativa seria a omissão legislativa, hipótese, de pronto, descartada para fundamentar eventual pleito indenizatório em virtude da limitação administrativa, a qual depende, para sua instituição de ato legislativo, caracterizando, portanto, uma conduta comissiva.

A conclusão que se chega é que o fundamento da indenização com base na limitação administrativa fundamenta-se na responsabilidade civil estatal e tem suporte próprio, não se enquadrando nas hipóteses excepcionais em que se admite a responsabilidade civil com relação ao exercício da função legislativa, quais sejam: a) lei inconstitucional; b) lei de efeitos concretos; e c) omissões legislativas.

O exercício da função legislativa é uma conduta lícita e, em consequência, a limitação administrativa somente gera responsabilidade civil quando ocasione um dano anormal, específico e mensurável economicamente, cujo fundamento será a isonomia visto que eventual e pontual prejuízo deverá ser diluído na sociedade.

Em MOREIRA[24] identificamos o que vem a ser dano anormal e específico:

No Brasil, é frequente a ocorrência de intervenção na propriedade sem prévio processo, sob a forma de limitação administrativa, que, não raro, transborda os limites razoáveis desse instituto, resultando em severas restrições de direitos e interesses individuais. Convencionou-se que a limitação administrativa, como ato lícito da administração, não dá ensejo a indenização, salvo se acarreta dano anormal e especial, exigindo-se a presença dos dois requisitos, simultaneamente. Dano anormal é o que atinge significativamente a utilidade ou o valor do bem. Especial é a restrição imposta a proprietários específicos dentro de um conjunto maior de beneficiados pela medida. Mas a administração dificilmente reconhece essa situação, que, de fato, muitas vezes mostra-se ambígua, restando ao particular a única possibilidade de ingressar com posterior ação de indenização.  

A indenização fundamentada em restrição decorrente de limitação administrativa tem como fundamento a responsabilidade civil estatal, nos termos do art. 37, §6º da Constituição Federal, não obstante referida indenização não se mostra como regra, partindo do paradigma que o exercício da função legislativa não gera, por si só, danos indenizáveis.

A viabilidade de indenização com fundamento no esvaziamento do conteúdo econômico da propriedade e/ou da atividade privada, tendo por causa a instituição de limitação administrativa, portanto, pressupõe um dano anormal, específico e mensurável economicamente, verificável a partir dos reflexos do ato geral normativo à realidade concreta, gerador de um ônus desproporcional a pessoa ou grupo determinável.

Sobre o autor
Fabiano Batista Correa

Advogado, Professor de Direito Administrativo, Gestão Pública, Direito Constitucional e Direito Tributário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREA, Fabiano Batista. O instituto da limitação administrativa na perspectiva da responsabilidade civil estatal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6226, 18 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83768. Acesso em: 21 nov. 2024.

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