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Violência doméstica em tempos de confinamento obrigatório:

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3. LEI 14.022/2020: MEDIDAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

Como cediço, nesse período de pandemia decorrente do novo Coronavírus, desde março de 2020, foram impostas várias restrições aos cidadãos procurando coibir o alastramento do vírus em território nacional, e, dentre muitas, impostas internacionalmente ou não, está o chamado “isolamento social”. Infelizmente, conforme exposto no estudo anteriormente analisado (PONTE, 2020), por razões sociológicas e criminológicas que ainda precisam ser estudadas, verificou-se que esse confinamento social gerou um aumento no número de casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Por questões de Política Criminal, visando a coibir o constatado, foi editada a Lei nº 14.022/2020, que prevê medidas para enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres durante a pandemia da Covid-19 (BRASIL, 2020a). É uma lei excepcional[8] e veio em complementação à lei nacional da pandemia nº 13.979/2020 (também excepcional), que igualmente prevê grandes mudanças na legislação pátria (BRASIL, 2020b).

Elencando algumas mudanças legislativas, podemos citar o art. 3º da Lei nº 13.979/2020, que prevê, em seus incisos, nove medidas para enfrentamento ao Coronavírus, como, por exemplo, isolamento, quarentena, restrição excepcional e temporária da locomoção interestadual ou intermunicipal, requisição de bens e serviços, entre outros. O § 8º do mesmo artigo faz, contudo, uma ressalva, afirmando que essas medidas previstas nos incisos, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais (BRASIL, 2020b). Os serviços públicos e atividades essenciais foram listados pelo Decreto nº 10.282/2020.

A Lei nº 14.022/2020 acrescentou um novo parágrafo ao art. 3º da Lei nº 13.979/2020, afirmando que são essenciais os serviços e atividades voltados ao atendimento de:

• mulheres em situação de violência doméstica e familiar;

• crianças e adolescentes vítimas de crimes previstos no ECA ou no CP;

• pessoas idosas vítimas de crimes previstos no Estatuto do Idoso ou no CP;

• pessoas com deficiência vítimas de crimes previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência ou no CP.

Veja-se o dispositivo inserido:

Art. 3º (...)

§ 7º- C. Os serviços públicos e atividades essenciais, cujo funcionamento deverá ser resguardado quando adotadas as medidas previstas neste artigo, incluem os relacionados ao atendimento a mulheres em situação de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, a crianças, a adolescentes, a pessoas idosas e a pessoas com deficiência vítimas de crimes tipificados na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), na Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), e no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).

Para garantir que esse serviço essencial seja mantido, foi acrescentado o art. 5º-A à Lei nº 13.979/2020, prevendo que os prazos processuais, a apreciação de matérias, o atendimento às partes e a concessão de medidas protetivas devem continuar normalmente, e o registro de ocorrências relacionadas com essas infrações penais poderá ser feito por telefone ou meio eletrônico: 

Art. 5º-A Enquanto perdurar o estado de emergência de saúde internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019:

I - os prazos processuais, a apreciação de matérias, o atendimento às partes e a concessão de medidas protetivas que tenham relação com atos de violência doméstica e familiar cometidos contra mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência serão mantidos, sem suspensão;

II - o registro da ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher e de crimes cometidos contra criança, adolescente, pessoa idosa ou pessoa com deficiência poderá ser realizado por meio eletrônico ou por meio de número de telefone de emergência designado para tal fim pelos órgãos de segurança pública;

Parágrafo único. Os processos de que trata o inciso I do caput deste artigo serão considerados de natureza urgente.

É de se constatar, de forma inovadora, que o art. 3º traz o registro do Boletim de Ocorrência eletrônico para casos de violência doméstica (o que já estava sendo preconizado nas Delegacias de Polícia do Estado de São Paulo desde o início da pandemia da Covid-19); esta regulamentação trouxe uma certa segurança jurídica ao registro, um status de ato válido por ser esta lei uma diretriz nacional. A lei trouxe, também, em seu bojo, a possibilidade da vítima de, ela própria, requerer medidas protetivas por atendimento online - pode solicitar online a cautelar - ao registrar o BO eletrônico, a vítima pode fazer o pedido online, falando inclusive com suas próprias palavras, e isso, por certo, traduz com muito mais fidelidade o medo, a angústia, a situação de risco por que está passando.

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A Autoridade Policial, ao validar o Registro Digital de Ocorrência, poderá considerar provas coletadas eletronicamente ou por outros meios audiovisuais (áudios, vídeos), em momento anterior à lavratura do boletim de ocorrência e a colheita de provas que exija a presença física da ofendida, havendo ainda a possibilidade de o Poder Judiciário proceder à intimação da ofendida e do ofensor por meio eletrônico.

Importante também direcionar a análise, ainda que muito superficialmente, para a edição, no ano passado, da Lei 13.827/2019, diploma normativo que alterou a Lei nº 11.340/2006para autorizar, nas hipóteses que traz em seu bojo, a aplicação de medida protetiva de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes, e para determinar o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça:

Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:

I- pela autoridade judicial;

II- pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou

III- pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.

§1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.

§2º Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.

O diploma inovou em autorizar a concessão de medidas protetivas de urgência por Delegado de Polícia ou pelo “policial”, quando o município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. Então, o referido diploma legal autoriza que, de forma subsidiária, o afastamento do agressor seja concedido pelo policial quando o município não for sede de comarca e “não houver delegado disponível no momento da denúncia”. Contudo, a norma penal carece de um complemento, de certo que, seu aplicador poderá se questionar qual policial poderia conceder a medida protetiva, se Policial Civil, Policial Militar, Policial Rodoviário, ou mesmo o Guarda Municipal?

Partindo de uma interpretação sistemática, comunga-se com o entendimento de Sannini Neto (2019), rogando ser apenas o Policial Civil o que teria legitimidade a aplicar a medida protetiva de afastamento, mas desde que haja uma análise do Delegado de Polícia de forma remota, ou seja, nas cidades em que não houver um Delegado de Polícia de plantão in loco, o caso deverá ser apreciado pela Autoridade Policial da cidade mais próxima, em analogia com o artigo 308 do CPP[9]. Ampara este argumento o fato de que, na maioria absoluta dos casos em que se verificar violência doméstica, familiar ou afetiva contra a mulher, haverá crime, e em havendo fato típico, subsumido à norma penal incriminadora, exige-se um juízo de tipicidade, que, em sede inquisitiva, somente pode ser efetivado por autoridade com formação jurídica para tanto, ou seja, o Delegado de Polícia, o que reforça que tal atribuição não pode sair da esfera das Polícias Judiciárias, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, bacharéis em Direito.

A Lei nº 14.022/2020 prevê também que o poder público deverá adotar as medidas necessárias para que, mesmo durante a pandemia, seja mantido o atendimento presencial de mulheres, idosos, crianças ou adolescentes em situação de violência. Isso já ocorre nas Delegacias de Polícia do Estado de São Paulo, em que atendimentos emergenciais e específicos nunca foram interrompidos, mesmo durante a crise sanitária.

Importante também frisar que o §3º do artigo 3º traz a questão do exame de corpo de delito. Mesmo durante a vigência da Lei nº 13.979/2020, ou mesmo durante o estado de emergência de caráter humanitário e sanitário em território nacional, deverá ser garantida a realização prioritária do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher e violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência. Nos casos de crimes de natureza sexual, se houver a adoção de medidas pelo poder público que restrinjam a circulação de pessoas, os órgãos de segurança deverão estabelecer equipes móveis para realização do exame de corpo de delito no local em que se encontrar a vítima.

Em sendo o caso, após a concessão da medida protetiva de urgência de forma eletrônica, a autoridade competente, independentemente da autorização da ofendida, deverá:

§ 4º Na hipótese prevista no § 3º deste artigo, após a concessão da medida de urgência, a autoridade competente, independentemente da autorização da ofendida, deverá:

I - se for autoridade judicial, comunicar à unidade de polícia judiciária competente para que proceda à abertura de investigação criminal para apuração dos fatos;

II - se for delegado de polícia, comunicar imediatamente ao Ministério Público e ao Poder Judiciário da medida concedida e instaurar imediatamente inquérito policial, determinando todas as diligências cabíveis para a averiguação dos fatos;

III - se for policial, comunicar imediatamente ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e à unidade de polícia judiciária competente da medida concedida, realizar o registro de boletim de ocorrência e encaminhar os autos imediatamente à autoridade policial competente para a adoção das medidas cabíveis.

Ainda, de acordo com a lei, se for necessário, poderá haver a adaptação dos procedimentos estabelecidos na Lei nº 11.340/2006 às circunstâncias emergenciais do período de pandemia. A adaptação dos procedimentos deverá assegurar a continuidade do funcionamento habitual dos Órgãos do Poder Público, descritos na Lei nº 11.340/2006, no âmbito de sua competência, com o objetivo de garantir a manutenção dos mecanismos de prevenção e repressão à violência doméstica e familiar contra a mulher e à violência contra idosos, crianças ou adolescentes:

Art. 5º. Se, por razões de segurança sanitária, não for possível manter o atendimento presencial a todas as demandas relacionadas à violência doméstica e familiar contra a mulher e à violência contra idosos, crianças ou adolescentes, o poder público deverá, obrigatoriamente, garantir o atendimento presencial para situações que possam envolver, efetiva ou potencialmente, os ilícitos previstos:

I - no Código Penal, na modalidade consumada ou tentada:

a) feminicídio (art. 121, § 2º, VI);

b) lesão corporal de natureza grave (art. 129, § 1º);

c) lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2º);

d) lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º);

e) ameaça praticada com uso de arma de fogo (art. 147);

f) estupro (art. 213);

g) estupro de vulnerável (art. 217-A);

h) corrupção de menores (art. 218);

i) satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A);

II - na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha): o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência (art. 24-A);

III - no ECA;

IV - no Estatuto do Idoso.

De acordo com o artigo 5º, as medidas protetivas deferidas em favor da mulher serão automaticamente prorrogadas e vigorarão durante a vigência da Lei nº 13.979/2020, ou durante a declaração de estado de emergência, sendo que o juiz competente providenciará a intimação do ofensor, que poderá ser realizada por meios eletrônicos, cientificando-o da prorrogação da medida protetiva. Obviamente essas medidas poderão ser revistas ou cessadas pelo Poder Judiciário caso se entenda necessário.

O art. 6º traz a obrigação de que as informações sobre denúncias de violência recebidas na esfera federal pela Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 - e pelo serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual - Disque 100 - devem ser repassadas, com as informações de urgência, para os órgãos competentes, com prazo máximo de envio de 48 horas, salvo impedimento técnico.

Numa análise geral dessa nova lei, observa-se que há a tendência da flexibilização da prova: na hipótese em que as circunstancias dos fatos justifiquem a medida prevista, a autoridade competente poderá conceder qualquer uma das medidas protetivas de urgência previstas nos artigos 12-B, 12-C, 22, 23 e 24 da Lei nº 11.340/2006, de forma eletrônica, e poderá considerar provas coletadas eletronicamente ou por audiovisual, em momento anterior à lavratura do boletim de ocorrência e a colheita de provas que exija a presença física da ofendida – pode gravar vídeo e enviar eletronicamente, isso vai ser considerado, coletadas eletronicamente ou por outros meios audiovisuais; as intimações podem também ser feitas por meio eletrônico, também se admite como prova laudos médicos e atestados médicos, inclusive particulares.

Em todos os casos, a autoridade de segurança pública deve assegurar o atendimento ágil a todas as demandas apresentadas e que signifiquem risco de vida e a integridade da mulher, do idoso, da criança e do adolescente, com atuação focada na proteção integral.

Sobre as autoras
Amanda Tavares Borges

Escrivã de Polícia na Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Graduação em Direito pelo Centro Universitário Salesiano São Paulo. Especialista em Direito e Processo do Trabalho e Especialista em Direito Penal. Professora da Academia de Polícia de São Paulo. Professora universitária. Docente Civil na Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Francini Imene Dias Ibrahin

DELEGADA DE POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO. MESTRE EM DIREITO AMBIENTAL E POLÍTICAS PÚBLICAS PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ. ESPECIALISTA EM DIREITO ADMINISTRATIVO PELA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO/SP. AUTORA DE ARTIGOS E LIVROS TÉCNICOS E JURÍDICOS. MEMBRO FUNDADORA DA COMUNIDADE DE JURISTAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - CJLP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Amanda Tavares; IBRAHIN, Francini Imene Dias. Violência doméstica em tempos de confinamento obrigatório:: a epidemia dentro da pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6298, 28 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85555. Acesso em: 27 dez. 2024.

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