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A vacinação compulsória e o Estado de Direito

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Agenda 04/11/2020 às 22:00

O artigo discute sobre a questão da vacinação obrigatória à luz do direito comparado e do direito brasileiro.

I – A SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO

A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperem.

As ações e serviços de saúde são de relevância pública, por isso ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público, nos termos da lei, a que cabe executá-los diretamente ou por terceiros, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.

Na lição de José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª edição, pág. 696), se a Constituição atribui ao Poder Público o controle das ações e serviços de saúde, significa que sobre tais ações e serviços tem ele integral poder de dominação que é o sentido do termo controle, mormente quando aparece ao lado da palavra fiscalização.

Responsável pelas ações e serviços de saúde é o Poder Público, na medida em que a Constituição fala em ações e serviços públicos de saúde, para distinguir a assistência à saúde pela iniciativa privada, que ela também admite.


II – A EXPERIÊNCIA PORTUGUESA E AS MEDIDAS DE EXCEÇÃO

Muitos consideram que a vacinação obrigatória é algo de exceção.

Consideram assim que o Brasil não tem um dispositivo próprio na matéria como a tem a Constituição de Portugal.

Dir-se-á que a nossa Constituição não tem o mesmo dispositivo da Constituição Portuguesa, quando no seu art. 19; 134 d;  136, 3 ,b, 161; 165, b; 164, e; 172, 1; 179, f, 275, t e 289,  fala de estado de emergência em caso de calamidade pública, o mesmo podendo se dizer da Constituição Alemã, quando prevê no art. 35, item 2, o estado de necessidade interno, do que daí decorre a possibilidade de limitações a alguns direitos fundamentais, tudo com base em termos claros e precisos da própria Constituição.

São estados de anormalidade constitucional que só são acionados como forma de proteger a própria sociedade, que se vê sob algum risco ou calamidade, como é a situação atual. No nosso caso  o problema é que o nosso sistema de crise institucional só se preocupou com alguma razão de Estado, e não em defesa da sociedade, como seria o caso.

Para uma vacinação compulsória, segundo estudiosos, teria de se definir um estado de necessidade, tal e qual se prevê na Constituição de Portugal de 1976.

Para J.J.Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 1.063), o direito de necessidade só é compatível com um Estado de Direito democrático, constitucionalmente conformado, quando na própria lei fundamental se fixarem os pressupostos, as competências, os instrumentos, os procedimentos e consequências jurídicas da “Constituição de exceção”.

Seria o caso, por exemplo, da calamidade pública.

Por calamidade pública entendem-se as catástrofes naturais (epidemias, como exemplo), acidentes graves, por exemplo.

Como disse J.J.Gomes Canotilho (obra citada, pág. 1066), o âmbito normativo da “calamidade pública” é muito mais fácil de precisar do que o de “grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática”.

Seria um direito diante de uma situação de crise, compatível com os princípios estruturantes do Estado de direito democrático.

Com a vacinação compulsória não se está diante de um conceito de “grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática”, que levanta mais dificuldades. Por outro lado, suscitam-se a esse respeito os mesmos problemas revelados pela história do regime de exceção constitucional: a) transformação do estado de sítio ou do estado de emergência em instrumentos políticos de combate a qualquer situação de conflituosidade social, econômica e política; b) utilização das forças armadas contra os cidadãos. Por isso, ainda, Gomes Canotilho(obra citada, pág. 1066) é extremamente claudicante a caracterização dos pressupostos de “grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática”. Necessário será densificar o conceito em referência. Os elementos a considerar são fundamentalmente dois, como espelha ainda Canotilho: a) em primeiro lugar, o objeto da proteção é a ordem constitucional democrática e não qualquer apriorística e monolítica “ ordem pública e segurança pública”.  

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III  - A VACINAÇÃO COMPULSÓRIA NÃO É SUSPENSÃO COLETIVA DE DIREITOS

Com a vacinação compulsória estaremos longe de um estado de emergência ou ainda de estados de exceção de natureza civil, que envolvam grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou calamidade pública.

A vacinação obrigatória, na medida em que instalada dentro do Estado de Direito, é medida que se aplica de forma compulsória a bem do interesse da sociedade.

Não falo na chamada vacinação obrigatória na suspensão coletiva de direitos, liberdades e garantias em casos de declaração de um estado de emergência, obedecendo aos princípios da generalidade e da publicidade.

De toda sorte, há:

  1. Proibição absoluta da suspensão de alguns direitos, liberdades e garantias e de alguns princípios constitucionais;
  2. Exigência da especificação de direitos, liberdades e garantias afetados pela declaração de emergência ou estado de sítio;
  3. Proibição do excesso, devendo observar-se os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, relativamente a eventuais medidas restritivas.

Pois bem.

A vacinação obrigatória deve ser vista dentro de um direito impositivo à saúde que é dever do Estado.

Como tal não há de falar na vacinação obrigatória como medida de exceção.

A Constituição Cidadã prevê diversos direitos assegurados a todos os cidadãos, para a garantia de uma vida digna, apta a proporcionar ao ser humano tudo o que ele precisa para sobreviver. São garantias direcionadas ao direito à vida e, não menos importante, o direito saúde. Havendo, ainda, uma proteção específica para a educação, segurança, liberdade, bem-estar, entre outros meios de interesse tanto individual como coletivo.

No campo da Bioética, salienta-se a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005, que no rol dos seus princípios traz a Responsabilidade Social e Saúde, componente de extrema relevância para a discussão em comento, uma vez que o ato de se vacinar, para a além da discussão em tela, trata-se também de um ato de responsabilidade coletiva.

A Lei 6.259/1975 é regulamentada pelo Decreto 78.231/1976, o qual, em seu artigo 27 e seguintes, torna obrigatórias conforme definidas pelo Ministério da Saúde contra as doenças imunopreveníveis e estabelece o dever, de todo cidadão, de submeter a si e aos menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade à vacinação obrigatória. Ademais, o próprio decreto, no parágrafo único do artigo 29, prevê a dispensa do dever de vacinação obrigatória na hipótese de o indivíduo apresentar atestado médico de contraindicação da aplicação da vacina.

Por derradeiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 14, parágrafo primeiro, reafirma a vacinação obrigatória de todas as crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

As medidas tomadas a partir da edição da Lei nº 13.979/2020, serão aplicadas no contexto do poder de polícia. Portanto, não são meras medidas indicativas ou educativas, mas impositivas. 

São elas: 

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020) 

...

vacinação e outras medidas profiláticas; 


IV – A CORRETA INTERPRETAÇÃO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

Trago aqui importante decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. Ali se disse na APELAÇÃO Nº 1003284-83.2017.8.26.0428.

“O interesse coletivo é observado em tais normas, identificando-se na vacinação obrigatória não só a tutela individual de crianças, mas, também, uma tutela indireta de toda a coletividade, especialmente quanto à diminuição da exposição a risco de outras pessoas, crianças ou não, que eventualmente e por conta de impedimentos de ordem médica, não sejam vacinadas. Afinal, a existência de uma população majoritariamente imune a determinadas doenças ensejará a cessação da circulação dos vírus que causam as doenças e, consequentemente, mesmo indivíduos não imunizados não estariam expostos à contaminação. Bem por isto, a doutrina penal classifica a conduta do agente que, de qualquer forma, dificulta determinação do poder público para impedir a introdução ou proliferação de determinada doença contagiosa e a vacinação obrigatória se enquadra perfeitamente no conceito como crime de perigo abstrato, tendo por fim a tutela da incolumidade pública.

No dizer de CEZAR ROBERTO BITENCOURT (Código penal comentado, 9ª ed, São Paulo: Saraiva, 2015, p. 1.144), “O bem jurídico protegido é a incolumidade pública, particularmente em relação á saúde pública. A proteção que o legislador penal oferece à saúde pública, pela tipificação do crime de infração de medida sanitária preventiva, está estritamente vinculada ao dever assumido pelo Estado de atuar, mediante políticas públicas e ações concretas, para a redução do risco de doenças, de acordo com o art. 196 da Constituição Federal de 1988. Sob essa perspectiva, a criminilização de condutas infratores, descrita no art. 268, apresenta-se como um instrumento a mais de proteção da saúde, enquanto bem jurídico coletivo”. Tudo isto para se concluir que a recusa de se proceder à vacinação obrigatória, seja do sujeito em si, seja das crianças e adolescentes que estejam sob sua responsabilidade, não caracteriza o exercício legítimo de um direito perante o Estado, mas, em verdade, ato ilícito, por ofensa a normas específicas de tutela individual da saúde da criança e da incolumidade pública. Trata-se de conduta imposta ao sujeito por força de norma legal de interesse coletivo, atendendo, de forma suficiente, o princípio da legalidade (art. 5º, CF). Se a conduta de recusa à vacinação obrigatória é uma conduta ilícita, considerando as normas legais atinentes à espécie, constitui exercício irregular do poder familiar a decisão deliberada dos genitores de recusar a vacinação e de expor a criança a risco quanto à sua saúde e incolumidade física. Trata-se de exposição a risco injustificada.

É que o limite do exercício de tais direitos individuais e de organização familiar esbarram na ofensa a normas de ordem pública e, no caso, nos efeitos de tais escolhas sobre pessoa diversa daquele que as exerceu. No caso, quem sofrerá eventual escolha dos pais pela não vacinação será a criança que, por conta da pouca idade, nada pode escolher. Prevalece, nestes casos, a tutela de ordem pública sobre a saúde, ensejando, em casos extremos, até a suspensão ou destituição do poder familiar, consubstanciado no descumprimento de obrigações decorrentes do poder familiar. E, por conta disto, é possível se reconhecer na conduta da negativa injustificada à vacinação da criança a infração administrativa do art. 249, do Estado da Criança e do Adolescente, embora tal reconhecimento e sanção não sejam objeto direto do presente recurso, mas sim de imposição de obrigação de fazer, sob pena de incidência da norma sancionatória. Por técnica processual, não se pode reconhecer, desde logo, a incidência da norma sancionadora, mas apenas a fixação de suas balizas fáticas, dependendo a sua aplicação de apuração concreta. Limita-se este feito a reconhecer a obrigatoriedade da vacinação e à imposição, aos genitores, da obrigação de regularizar a vacinação da criança O., no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena não só de incidência futura do disposto no art. 265, do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas, principalmente, de realização do ato por força estatal, através da busca e apreensão da criança, a ser cumprida pelo Conselho Tutelar, a fim de proceder tal regularização.

A recusa de se proceder à vacinação obrigatória, seja do sujeito em si, seja das crianças e adolescentes que estejam sob sua responsabilidade, não caracteriza o exercício legítimo de um direito perante o Estado, mas, em verdade, ato ilícito, por ofensa a normas específicas de tutela individual da saúde da criança e da incolumidade pública.”


V – A SAÚDE COMO UM DIREITO SOCIAL

Estamos diante de direitos sociais.

Disseram bem Gisele Leite e Denise Heuseler (Aspectos jurídicos sobre a obrigatoriedade da vacinação no Brasil):

“Sarlet afirma que nos caso de direitos sociais, embora em causa esteja a preocupação com indivíduo como pessoa, assume importância a condição da pessoa na sua relação com a comunidade, ao passo que, nos direitos coletivos, ressalta-se é o conceito de grupo social ou entidade, sendo que a coletividade em si é quem assume a posição de titular de direito, isto é, a posição de sujeito do direito fundamental.

Sarlet ainda discorre que os direitos fundamentais sociais se referem, ab initio, à pessoa individualmente considerada e, é a pessoa, embora socialmente vinculada e responsiva, o titular desse direito. Apesar de atenderem às necessidades individuais do ser humano, tais direitos possuem nítido caráter social, pois, uma vez não atendidas as necessidades de cada um, seus efeitos recaem sobre toda a sociedade.”


VI – O PODER DE POLÍCIA

Nesse âmbito de argumentação tem-se que cumpre ao Estado proteger a coletividade de pessoas.

Estamos no âmbito do exercício de um poder de polícia, fundado na autoexecutoriedade dos atos do Poder Público, no sentido da obrigação do Estado quanto ao bem estar da cidadania. Aceita-se a privação de direitos, mas sujeitos a responsabilidade civil do Estado.

A atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade, ajustando-se aos interesses coletivos, designa-se “poder de polícia”.

Daí Jean Rivero (Droit administratif, 1965, pág. 368) definiu-a como “o conjunto de intervenção da Administração que tende a impor à livre ação dos particulares a disciplina exigida pela vida em sociedade”.

Aliás, na Itália, as conceituações, de modo geral, ressaltavam a ideia de que o poder de polícia se destina a impedir um dano para a coletividade, que poderia resultar do exercício da liberdade e da propriedade.

O poder de polícia se exerce, pois, em nome da supremacia geral, que é a supremacia das leis em geral concretizada através de atos da Administração.

Enquanto a vacinação obrigatória visa cumprir a dimensão positiva de todos, ao promovera saúde pública, ela também limita a dimensão negativa do direito fundamental à saúde. Eis o fundamento do problema: a colisão entre os aspectos positivos e negativos de um mesmo direito.

Ingo Sarlet (Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Salvador, n.11. p.1-17. set./out, /nov. 2007.) ao analisar o direito à saúde, entende que ele pode ser considerado como norma jusfundamental que constitui, além do clássico direito prestacional que impõe ao Estado a realização de políticas públicas, um direito de defesa, que afasta intervenções estatais indevidas na integridade psicofísica do indivíduo.

Não se pode obrigar ninguém a ser submetido a determinado procedimento médico. Porém, a opção individual não poderia sacrificar o direito coletivo à saúde, previsto na Constituição Federal. Portanto, quem não quiser tomar vacina, não poderia colocar em risco o restante da população.

Ora, onde estaria essa intervenção indevida?

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A vacinação compulsória e o Estado de Direito . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6335, 4 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86482. Acesso em: 21 nov. 2024.

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