A verdadeira liberdade é um ato puramente interior, como a verdadeira solidão: devemos aprender a sentir-nos livres até num cárcere, e a estar sozinhos até no meio da multidão.
(Massimo Bontempelli)
RESUMO. O presente texto tem por finalidade principal analisar, sem pretensão exauriente, os incidentes de liberdade nas diversas modalidade de prisões processuais existentes no direito pátrio, com abordagens preliminares acerca das ações de impugnações na prisão em flagrante, prisões preventiva e temporária por meio do relaxamento ou revogação da prisão, e abordagem sucinta acerca da ação de habeas corpus como instrumento de impugnação de prisões ilegais. Visa a, ainda, apresentar as inovações introduzidas no Código de processo penal, com advento da Lei nº 13.964, de 2019, que criou o chamado Pacote Anticrime no Brasil.
Palavras-chave. Prisão; modalidades; incidentes de liberdade.
INTRODUÇÃO.
Na parte exordial deste texto, mister se faz a citação do artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que consigna, expressamente, norma transcendental no sentido de que todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
E assim, teme-se que o tema prisão e liberdade provisória sempre chamou a atenção da sociedade brasileira em seus múltiplos estratos, lançando holofotes de luzes incandescentes, noutras vezes raios de trevas num contraste de lamentações, tristeza, aparecimento de agentes públicos e, assim, corriqueiramente se irradia na atividade acadêmica, midiática, social e econômica.
No mundo jurídico em especial para quem se dedica nas funções penal e processual, claramente perceptível nas suas atividades diárias, se apresentando em grande volume no expediente forense e nas atividades de polícia. Assim, quando o assunto é prisão ou liberdade provisória, o tema passa a ocupar os noticiários das redes sociais, notadamente quando se refere ao envolvimento de personalidades ou autoridades públicas, ou ainda quando se deparam com fatos gravíssimos que mexem com o sentimento da sociedade, e, portanto, também ocupam os espaços sociais, passando a merecer destaque nessa seara.
Outrossim, pode-se afirmar que a prisão mexe com a economia de um país, região ou cidade, considerando que os fatos criminosos afetam as atividades turísticas de determinada região, podendo deixar de atrair o turismo para aquela localidade, afastando as pessoas em razão da violência registrada.
Nesse contexto, importante afirmar que nos países considerados democráticos, tendo o estado de direito relevância significativa, a liberdade sempre foi a regra dessa sociedade, deixando a prisão como exceção, com rigorosa observância dos princípios da excepcionalidade e proporcionalidade, e há quem afirme que a prisão seria a extrema ratio da última ratio.
Para melhor desenvolvimento do tema proposto, serão mencionadas as modalidades de prisão processual existentes no ordenamento jurídico pátrio e as respectivas ações de impugnações de acordo com suas hipóteses de cabimento.
1. DAS MODALIDADES DE PRISÕES NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Para fins acadêmicos, a doutrina brasileira, com espeque no direito positivo, classifica a prisão como sendo penal e processual. A primeira é aquela prisão definitiva, que houve esgotamento de todas as instâncias recursais, qual seja, é aquela prisão em que se formou o título executivo e passa agora para a fase da pretensão executória do estado. Em últimas palavras, é aquela que não tem mais cabimento de recursos, aquela que transitou em julgado.
As demais modalidades de prisão na esfera penal são chamadas de prisões processuais. Assim, a prisão em flagrante, a prisão preventiva e a prisão temporária são rotuladas de prisões processuais ou provisórias, também conhecidas por prisões cautelares, por serem aquelas que ocorrem no processo penal antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Desta forma, é possível sintetizar tudo isso, com a citação da fórmula geral do artigo 5º, inciso LXI da Constituição da República de 1988, segundo o qual ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
1.1 DA PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO
O instituto da prisão em flagrante é previsto na Constituição Federal de 1988, artigo 5º, inciso LXI, e detalhado no artigo 302 ao artigo 310 do Código de Processo penal. Destarte, logo no artigo 302 do CPP, a prisão em flagrante é considerada a quem:
I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
A doutrina classifica os incisos I e II, como modalidades de flagrante próprio, sendo o inciso III, etiquetado como flagrante impróprio e o inciso IV, como flagrante presumido. A prisão em flagrante deve ser efetuada com o rigoroso cumprimento das normas constitucionais e processuais em vigor, sob pena de ser invalidada por meio das ações próprias.
Assim, apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.
Resultando das respostas fundada suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.
O Código de Processo penal passa a fornecer uma sequência lógica para a formalização da prisão em flagrante, e, no tocante às testemunhas, prevê que a falta de testemunhas da infração não impedirá o auto de prisão em flagrante; mas, nesse caso, com o condutor, deverão assiná-lo pelo menos duas pessoas que hajam testemunhado a apresentação do preso à autoridade. Da lavratura do auto de prisão em flagrante deverá constar a informação sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência, e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa.
Outras formalidades processuais importantes são extraídas a partir do artigo 306 do CPP, o qual prevê que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.
No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas. Quando o fato for praticado em presença da autoridade, ou contra esta, no exercício de suas funções, constarão do auto a narração deste fato, a voz de prisão, as declarações que fizer o preso e os depoimentos das testemunhas, sendo tudo assinado pela autoridade, pelo preso e pelas testemunhas e remetido imediatamente ao juiz a quem couber tomar conhecimento do fato delituoso, se não o for a autoridade que houver presidido o auto.
Um aspecto importante de controle da prisão em flagrante encontra-se previsto no artigo 310 do CPP, com modificações processadas pelo Pacote Anticrime, que, segundo comando normativo imperativo, após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover a audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 do Código de Processo Penal, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato em qualquer das condições acobertadas pelas excludentes de ilicitudes, artigo 23 do Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revogação.
Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.
A autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo de 24 horas responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão.
Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido para a realização da audiência de custódia, a não realização dessa audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva.
Outras formalidades atinentes à prisão em flagrante devem ser observadas, obrigatoriamente, dado o seu rótulo de direitos fundamentais, elencados no rol do artigo 5º da Carta Magna, a saber:
LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.
1.2 DO RELAXAMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE
Como se percebe claramente no tópico anterior, a prisão em flagrante poderá ser relaxada caso se apresente ilegal. Os casos de ilegalidade podem ser retratados em falta de cumprimento das formalidades legais, inexistência de situação flagrancional, atipicidade do fato e excesso de prazo para conclusão da medida extrema.
Portanto, a prisão legal deverá ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária, conforme previsto no artigo 5º, inciso LXV c/c artigo 310, inciso I, do Código de Processo penal, devendo ser instrumentalizada ao Juiz de direito em casos de ilegalidade praticada pelo Delegado de Polícia, ou ao mesmo Juiz, autor da ilegalidade ou ainda à Instância superior, caso a ilegalidade seja praticada pela Autoridade judiciária.
1.3 APLICAÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO
Analisando o artigo 310, I, II e III, do CPP, percebe-se que o juiz, ao receber a comunicação da prisão em flagrante, deverá analisar a observância da legalidade da prisão e sendo o caso, poderá relaxar a prisão. Não sendo caso de relaxamento, considerando então que a prisão foi legal, o magistrado passa a analisar a presença dos pressupostos objetivos e subjetivos da prisão preventiva, artigo 311 e SS do CPP, e, diante da ausência poderá colocar o investigado em liberdade provisória sem aplicação de nenhuma medida cautelar.
Como bem sintetiza NICOLITTI, se presentes os pressupostos e os fundamentos das medidas cautelares, o juiz, aí sim, poderá colocar o indiciado em liberdade, porém, com aplicação de medidas cautelares (art. 319 do CPP), neste caso, não estaremos diante da liberdade plena, e, sim, liberdade provisória.[1]
Em síntese, sendo legal a prisão, ausentes os pressupostos para o decreto da prisão preventiva, poderá o juiz aplicar as medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, a saber:
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;
V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;
VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;
VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
IX - monitoração eletrônica
1.4 DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE OU OFENSA AO ESTATUTO DA CRIANÇA OU ADOLESCENTE
Durante mais de cinquenta anos esteve em vigor no Brasil a Lei nº 4898/65, recentemente revogada pela Lei nº 13.869/2019, que criou inúmeras condutas criminosas em caso de violação das normas sobre a prisão.
Senão vejamos:
Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:
I - relaxar a prisão manifestamente ilegal;
II - substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;
III - deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.
Art. 12. Deixar injustificadamente de comunicar prisão em flagrante à autoridade judiciária no prazo legal:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem:
I - deixa de comunicar, imediatamente, a execução de prisão temporária ou preventiva à autoridade judiciária que a decretou;
II - deixa de comunicar, imediatamente, a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontra à sua família ou à pessoa por ela indicada.
Por sua vez, a Lei nº 8.069/90, que define o Estatuto da Criança e do Adolescente, criou condutas criminosas em casos de violação das medidas de legalidade durante a privação de liberdade das crianças e adolescentes.
Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais.
Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Art. 231. Deixar a autoridade policial responsável pela apreensão de criança ou adolescente de fazer imediata comunicação à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Art. 234. Deixar a autoridade competente, sem justa causa, de ordenar a imediata liberação de criança ou adolescente, tão logo tenha conhecimento da ilegalidade da apreensão:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Art. 235. Descumprir, injustificadamente, prazo fixado nesta Lei em benefício de adolescente privado de liberdade: