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A importância da prova para a desconsideração da personalidade jurídica à luz da lei da liberdade econômica

Agenda 14/11/2020 às 16:00

A desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do CC, com a redação que lhe foi dada pela lei da liberdade econômica, exige a prova específica do abuso da personalidade jurídica, a partir de uma das suas espécies legais.

A Desconsideração da Personalidade Jurídica consiste no afastamento momentâneo da personalidade jurídica de uma sociedade, para o fim de alcançar diretamente os bens particulares de seus sócios ou administradores, uma vez constatada a insuficiência de ativos no patrimônio da pessoa jurídica face às suas obrigações.

A sua aplicação pelos tribunais brasileiros, consoante o entendimento da doutrina nacional, tem observado duas correntes que passaram a ser denominadas teoria maior e teoria menor, e que são apenas duas formas de interpretação e aplicação distintas da mesma Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.

A chamada teoria maior, baseada no art. 50 do Código Civil, e adotada no âmbito do Direito Privado (Direito Civil e Direito Empresarial), exige a prova específica do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Por outro lado, a sua vertente mais simplista, denominada teoria menor, e tradicionalmente adotada no âmbito trabalhista, consumerista e ambiental, dispensa a prova específica do abuso da personalidade jurídica, bastando que se constate a insuficiência patrimonial da pessoa jurídica face às obrigações exigidas judicialmente, para que seja aplicada.

Independentemente da área do Direito em que a desconsideração da personalidade jurídica seja aplicada, exige-se, atualmente, o contraditório e a ampla defesa, nos termos dos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, que disciplina o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, e do art. 855-A da Consolidação das Leis do Trabalho, que aplica o referido procedimento também ao processo do trabalho.

No âmbito do Direito Privado, como regra, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 do Código Civil, exige a prova específica do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

O referido dispositivo, a partir da redação que lhe foi atribuída pela Lei 13.874/2019 (“Lei da Liberdade Econômica”), incorporou em seu caput e §§ 1º e 2º, a interpretação que vinha sendo aplicada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ao referido dispositivo, de modo a definir e delimitar a extensão da expressão abuso da personalidade jurídica, a partir das suas duas espécies: a) desvio de finalidade, e, b) confusão patrimonial. Assim:

“Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. 

§ 1º  Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: 

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; 

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e 

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (...) “ (grifos nossos)

Desse modo, na sistemática vigente, o abuso da personalidade jurídica é requisito essencial para a desconsideração da personalidade jurídica no Direito Privado e necessitará de prova específica de uma das suas espécies legais (desvio de finalidade ou confusão patrimonial) por parte do requerente da desconsideração.

Nesse sentido, o a) desvio de finalidade é modalidade que denota o dolo e se caracteriza pela fraude e pela intenção manifesta dos sócios em lesarem credores e terceiros que se relacionem negocialmente com a sociedade. Já a b) confusão patrimonial é modalidade que exige culpa e se caracteriza pela manifesta prática administrativa e gerencial negligente, imprudente ou imperita e que se enquadre especificamente nas hipóteses tipificadas nos incisos do art. 50, § 2º.

Ressalte-se ademais que, indícios de encerramento irregular, como a inaptidão cadastral perante órgãos fiscais, ou, ainda, a mera insuficiência patrimonial, não configuram, por si só, qualquer abuso da personalidade jurídica, na medida em que, nos termos do art. 50, referido elemento necessita de prova específica da “utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”.

Convém ainda observar que, da mesma forma, assim como é necessária a prova do abuso da personalidade jurídica, o credor interessado em obter o atingimento dos sócios mediante a desconsideração da personalidade da sociedade devedora, necessita, também, demonstrar que os sócios se beneficiaram, direta ou indiretamente, do suposto abuso praticado, a teor do disposto no art. 50 caput, parte final.

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Nesse sentido é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça a respeito:

STJ - AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS AUSENTES. DISSOLUÇÃO IRREGULAR E AUSÊNCIA DE BENS PENHORÁVEIS. INSUFICIÊNCIA. IMPUGNAÇÃO. ARTIGO 1.021, § 1º, DO CPC. SÚMULA N. 182/STJ. NÃO CONHECIMENTO. 1. Esta Corte Superior firmou seu posicionamento no sentido de que a existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica, eis que se trata de medida excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. 2. Nos termos do art. 1021, § 1º, do Código de Processo Civil/2015 e da Súmula 182/STJ, é inviável o agravo interno que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada. 3. Agravo interno não conhecido.” AgInt no Agravo em REsp nº 1.351.748 – PR – Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTI – Julgamento: 23/04/2019. (grifos nossos)

Nesse mesmo sentido também é o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo:

TJ-SP - Incidente de desconsideração de personalidade jurídica. Decisão agravada que indeferiu seu processamento, pois necessária a caracterização de alguma das hipóteses previstas no artigo 50 do Código Civil. Entendeu-se, ainda, que o simples fato de não haverem sido encontrados bens penhoráveis suficientes não autoriza o deferimento da medida e, portanto, do incidente. Inconformismo da exequente. Pretensão de reforma da decisão. Sem razão. Inexistência de fato revelador de má-fé dos sócios ou de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Ausência de preenchimento dos requisitos estabelecidos no artigo 50 do Código Civil. Medida de exceção que implica na demonstração de indevida utilização da personalidade jurídica da sociedade com a finalidade de fraudar credores ou praticar abuso de direito. Precedentes do E. Superior Tribunal de Justiça. Recurso não provido. Agravo de Instrumento nº 2202962-80.2020.8.26.0000 – Rel. Des. ROBERTO MAIA – Julgamento: 21/09/2020. (grifos nossos)

Em um país onde, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[1], a cada 10 (dez) empresas que iniciam as suas atividades, infelizmente 06 (seis) fecham as portas antes de completarem 05 (cinco) anos de existência, não é de admirar-se que a insolvência seja uma ameaça grave e constante, e esteja sempre rondando as empresas no mercado. E, nesse contexto, conforme o entendimento atual da jurisprudência, é importante distinguir a insolvência do abuso da personalidade jurídica, para fins de decretação da desconsideração da personalidade jurídica societária.

Ressalte-se, ainda, que a solução prevista no ordenamento jurídico para a insolvência empresarial não é a desconsideração da personalidade jurídica, e sim, a Falência da sociedade devedora, no curso da qual, inclusive, poderá ser realizada a apuração da responsabilidade dos sócios, consoante o disposto na Lei 11.101/2005.

Assim, no âmbito do Direito Privado, a desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 do Código Civil, com a redação que lhe foi dada pela Lei da Liberdade Econômica, exige a prova específica do abuso da personalidade jurídica, a partir de uma das suas espécies legais (desvio de finalidade ou confusão patrimonial), pelo interessado em obter a sua aplicação e a subsequente responsabilização patrimonial dos sócios.


Nota

[1] https://veja.abril.com.br/economia/seis-em-cada-dez-empresas-fecham-em-cinco-anos-de-atividade-aponta-ibge/

Sobre o autor
Fábio Bellote Gomes

Advogado de Empresas em São Paulo. Bacharel, Mestre e Doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. Professor de Direito Empresarial. Autor de "Manual de Direito Empresarial", 8ª edição, Editora Juspodivum. Site Oficial: www.professorbellote.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Fábio Bellote. A importância da prova para a desconsideração da personalidade jurídica à luz da lei da liberdade econômica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6345, 14 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86624. Acesso em: 22 dez. 2024.

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