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Responsabilidade civil: A harmonia entre o desenvolvimento econômico, inovação e o direito à proteção de dados

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Agenda 05/02/2021 às 12:40

3 RESPONSABILIDADE CIVIL E TECNOLOGIA

Segundo Rosenvald (2020), a responsabilidade civil é uma das várias formas de sanção de um ato ilícito, não sendo lida apenas como reparação de danos, mas também como prevenção. Assim, pretendemos abordar, neste tópico, a evolução do conceito de responsabilidade civil, visando a identificar, no contexto da violação do direito à privacidade e da proteção de dados nos diversos meios tecnológicos, mecanismos geradores de danos, além de refletir sobre as possibilidades de reparação e prevenção desses ilícitos que atacam direitos e garantias constitucionais. Desse modo, entendemos que o instituto da responsabilidade civil pode ser um meio pelo qual o Estado poderá harmonizar as relações de privacidade e proteção de dados e os interesses econômicos e tecnológicos envolvidos nesse liame.

A responsabilização por um ato comissivo ou omissivo pode surtir efeitos jurídicos ou não, isto é, essa responsabilização ocorre no cotidiano, mesmo que não tenha relevância jurídica, dado que atos e omissões corriqueiras geram consequências sociais das mais variadas espécies. A responsabilidade que possui relevo no âmbito jurídico, contudo, é a situação que a lei prevê e que é subsumida por um indivíduo. Assim, quando há a violação de uma norma no âmbito do direito civil, gera-se uma responsabilidade civil.

Tal responsabilidade pode ser classificada em: responsabilidade contratual, prevista nos arts. 389 e ss. e 395 e ss. (Código Civil/2002), quando há uma transgressão do acordo pactuado pelas partes; e responsabilidade extracontratual ou aquiliana, prevista nos arts. 186 a 188 e 927 e ss. (CC/2002), em que há violação direta de uma norma legal. De acordo com Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2018, p. 905), na responsabilidade civil aquiliana, a culpa deve ser sempre provada pela vítima, enquanto na responsabilidade contratual, ela é, em regra, presumida.

O Código Civil (BRASIL, 2002) prevê, explicitamente, em seu art.186, que a violação do direito que causar um dano a outrem será um ato ilícito. Ainda prevê, em seu art. 927, a responsabilização do autor de tal ilicitude ou, nos termos da lei, a “obrigação de reparar o dano”. Nesse sentido, trata-se a responsabilidade civil do dever do ofensor em restituir, restaurar o patrimônio (moral ou material) do ofendido, fazendo-o voltar ao estado quo ante da ação ou omissão causadora do dano.

Assim, a natureza jurídica da responsabilidade civil repousa exatamente na imputação civil do ato lesivo (ilícito) a quem lhe deu causa, para a finalidade de indenizar o agredido, nos termos da lei ou do contrato, de forma a compensar ou reparar o dano por ele injustamente suportado (NERY JUNIOR, 2005, p. 267).

Contudo, discussões contemporâneas questionam essa possibilidade de “voltar ao estado quo ante da ação ou omissão causadora do dano”, considerando que nem todo dano é reversível e quem nem todo estado quo ante é, de fato, recuperável. Falaremos mais adiante a respeito de um novo conceito de multifuncionalidade da responsabilidade civil, no qual o instituto não se limita apenas à reparação do dano. O aspecto de reparação é considerado apenas uma das várias possibilidades de efetivamente imputar-se a responsabilidade civil, mas a prevenção ao dano pode ser um dos aspectos a serem mais explorados na sociedade. Nesse sentido, já há evolução legislativa a ser celebrada, pois, no art. 6º, VIII da LGPD, há previsão dessa atuação preventiva.

Por sua vez, o Código Civil impõe duas classificações à responsabilidade civil, definindo a conduta comissiva ou omissiva do agente agressor como responsabilidade civil subjetiva (art. 186, CC), ou o mero risco de determinada atividade gerado por ele de responsabilidade civil objetiva (art. 927, CC), sendo, neste último caso, irrelevante o dolo ou a culpa na conduta do agente causador do dano, bastando o nexo de causalidade.

O Código Civil brasileiro vigente adotou, como regra geral, a responsabilidade civil subjetiva, segundo a qual, baseada na teoria clássica, o ofensor tem o dever de reparar ou de restituir o mal causado, desde que comprovado o dano, o nexo causal e sua culpa. Portanto, como regra, faz-se necessário, na análise do caso fático, que fique comprovada a culpa, considerando-se que há vários graus dessa culpa, que devem ser balizados caso a caso. Ou seja, aplicação da culpa objetiva prevista no Código Civil exige comprovação de fato, nexo de causalidade e dano.

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É pertinente salientar que, no Código de Defesa do Consumidor (CDC), prepondera a responsabilidade objetiva, por este considerar o consumidor como parte hipossuficiente da relação. Como afirmam Peroli, Moraes e Lima (2020, p. 158), a LGPD tem uma estrutura espelhada no CDC, assim, apesar de não possuir nenhuma previsão expressa a esse respeito, pode-se inferir que há responsabilidade objetiva do controlador e do operador, que respondem solidariamente por danos relacionados aos dados pessoais do titular.

Todavia, é primordial enfatizar que, de maneira expressa, a LGPD não prevê responsabilidade objetiva, inclusive há um debate tenaz entre especialistas da área a respeito desses temas e dos impactos que podem advir de tal posicionamento. A conclusão dos autores Peroli, Moraes e Lima (2020, p. 158) se deu à medida em que há uma demasiada influência do CDC na Lei de Proteção de Dados. Conforme defende Anderson Schreiber: (2015, p. 25), 

[...] a conclusão mais razoável parece ser a de que a cláusula geral de responsabilidade objetiva dirige-se simplesmente às atividades perigosas, ou seja, às atividades que apresentam grau de risco elevado seja porque se centram sobre bens intrinsecamente danosos (como material radioativo, explosivos, armas de fogo etc.) seja porque empregam métodos de alto potencial lesivo (como o controle de recursos hídricos, manipulação de energia nuclear etc.) Irrelevante, para a incidência do dispositivo, que a atividade de risco se organize ou não sob forma empresarial ou que se tenha revertido em proveito de qualquer espécie para o responsável. (SCHREIBER, 2015, p. 25).

Tais divergências relacionadas ao tipo de responsabilidade estabelecida pela LGPD têm uma relação direta com o nosso posicionamento a respeito do papel que esta pode exercer frente à dinâmica de interesses entre proteção de dados e o avanço tecnológico e econômico. Ansiamos que a jurisprudência, após analisar os casos fáticos, fará o papel orientador e definidor de tal discordância.

Por outro lado, a evolução do conceito de responsabilidade civil é essencial para o desafiador contexto contemporâneo no qual vivemos e para a função de equilíbrio e mediação que o instituto pode exercer frente a algumas conjunturas complexas, como já indicamos. Renomados pesquisadores têm despendido grandes esforços em atualizar tal instituto para que ele se adapte à realidade tecnológica e atenda demandas futuras da sociedade. De acordo com Zampier:

O velho modelo de responsabilidade civil, calcado unicamente na ideia de ato ilícito, culpa e danos eminentemente patrimoniais, bem merecendo profunda reformulação, com o abandono de tradicionais estruturas como fundamento único da produção de deveres de reparação a uma vítima. (ZAMPIER, 2020, p. 239).

Nelson Rosenvald afirma que um conceito inovador é o de que a responsabilidade civil é um mecanismo de transferência de danos em decorrência de um ilícito ou em decorrência de um comportamento culposo. Anteriormente, a responsabilidade civil surgia quando um comportamento era a causa de um dano, ou seja, avaliava-se o nexo causal e a causa imediata, e o agente podia excluir a causalidade por fato de terceiro, força maior ou caso fortuito. Para Noronha (1999):

A responsabilidade objetiva agravada insere-se no final de uma evolução que começou quando, num primeiro momento, se reconheceu que o requisito culpa não sempre era imprescindível para o surgimento da obrigação de indenizar: o exercício de determinadas atividades, suscetíveis de causar danos a terceiros, implicava, em contrapartida aos benefícios que elas proporcionavam ao agente, o ônus de suportar os danos que eventualmente fossem causados a outrem. Foi por isso que se construiu a teoria da responsabilidade objetiva. Agora estamos entrando num segundo momento, em que se verifica haver hipóteses especiais em que se prescinde também de nexo de causalidade, para se passar a exigir unicamente que o dano acontecido possa ser considerado risco próprio da atividade em causa. (NORONHA, 1999, p. 37) 

A Teoria do Risco do Desenvolvimento[15], prevista no art. 927 do Código Civil, é um outro exemplo que demonstra que o nexo causal está sendo, aos poucos, minorado na análise da responsabilidade civil.

Segundo Marcelo Junqueira Calixto:

[...] os riscos do desenvolvimento são aqueles riscos não cognoscíveis pelo mais avançado estado da ciência e da técnica no momento da introdução do produto no mercado de consumo e que só vêm a ser descobertos após um período de uso do produto, em decorrência do avanço dos estudos científicos. (CALIXTO, apud TARTUCE, 2016, p. 532-533).

O conceito atual reconhece que um mecanismo de transferência de danos faz parte do conceito de responsabilidade civil. Contudo, como pudemos expor, não mais se limita a um ato ilícito e à culpa. Contextualizou-se o conceito para o momento dinâmico que vivemos nos dias atuais[16]. Essa transferência de danos era realizada, prioritariamente, por indenização financeira e caracterizada como dano patrimonial.

A violação do direito que causar um dano a outrem será um ato ilícito, segundo o Código Civil, em seu art. 186. Tal conceito foi aprofundado pela doutrina e, atualmente, podemos observar um duplo aspecto: ato ilícito objetivo e subjetivo. A característica objetiva da responsabilidade civil considera a legislação vigente e as ações em desconformidade com as previsões legais, ou seja, o ato ilícito nada mais é que a antijuridicidade da conduta do agente, violando um dever jurídico preestabelecido na sociedade.

Nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho (2012, p. 11): “A antijuridicidade de uma conduta é normalmente estabelecida à luz de certos valores sociais, valores que podem ser englobados na noção tradicional de bem comum”. Assim, o ilícito, no enfoque objetivo, nada mais é que a transgressão de um dever jurídico. Já a característica subjetiva implica a decisão de juízo de valor, ou seja, a reflexão humana para agir, que pode ser uma conduta dolosa, culposa ou omissiva. Na análise tradicional da responsabilidade civil, somente o ato ilícito objetivo gera o direito à indenização ao lesado. Contudo, há que se questionar se atos ilícitos subjetivos não geram, muitas vezes, danos que devem ser reparados de alguma forma.

Nessa nova análise e definição sobre o que é responsabilidade civil, faz-se essencial enfatizar que a culpa nem sempre é necessária para se configurar a responsabilidade civil: em verdade, há situações em que não é imprescindível a culpa, mas sim, um responsável pelo dano. A título de exemplo, no CDC, nota-se o ilícito objetivo qualificado pelo defeito do produto, ou seja, não há culpa, mas sim lesão da legítima expectativa dos consumidores, configurando, portanto, um ilícito subjetivo. Desse modo, o que se observa atualmente é o potencial lesivo de determinado comportamento.

Ao longo do tempo, eliminamos a culpa e o ilícito, visto que o que interessa, realmente, é o resultado de dano a terceiros e não necessariamente o comportamento contrário à lei. O dano é a figura central na nova reflexão sobre responsabilidade civil e, segundo Zampier (2020, p. 241), “é correto dizer que onde não há dano não há que se falar em responsabilidade civil”.

Outrossim, o nexo de imputação[17] reformulou a maneira como percebemos a responsabilidade civil. Não apenas se avalia a causa imediata, mas também a causa mediata do dano. Assim, hoje, o que se percebe é que não se pode mais alegar caso fortuito ou força maior, por exemplo, porque há uma internalização do fortuito.

Nelson Rosenvald (ROSENVALD, 2019, p.214) defende o uso da multifuncionalidade da responsabilidade civil, entendendo que assim as sanções passariam não só a restituir financeiramente o ofendido, mas também a ter um caráter preventivo. Desse modo, utilizando-se desse artifício ao condenar o infrator, a prática do ilícito deixará de compensar, o que importará em uma efetivação ainda maior da proteção desses bens jurídicos. Assim, nos casos em que ocorra uma violação de direitos resguardados pela LGPD, é desejável que a aplicação do instituto da responsabilidade civil seja feita por meio da utilização do viés multifuncional desse instituto, uma vez que apenas a compensação monetária da vítima não garante uma proteção efetiva de seus direitos. Busca-se, então, a efetivação de um viés preventivo da responsabilidade civil, o que faria com que a violação de tais direitos fosse algo indesejável, pois a sanção não implicaria apenas a condenação ao pagamento pelo dano causado, mesmo que majorado, mas incluiria, também, condenações de viés corretivo.

Como já vimos, a responsabilidade civil busca restaurar o estado quo ante da violação do ilícito. Ocorre que a violação de dados pessoais impossibilita ou dificulta essa restauração, pois, uma vez que determinado dado é violado, o titular perde o arbítrio sobre esse dado. Esse foi o caso do escândalo da Cambridge Analytica, no qual uma grande quantidade de dados da população norte-americana foi utilizada para segmentar e efetivar uma melhor campanha eleitoral no ano de 2016. Uma eventual condenação da empresa ao pagamento de uma indenização não restauraria o estado quo ante ao ilícito, pois a sanção remuneratória não restaura os efeitos da utilização indevida daqueles dados.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Bárbara Alves. Responsabilidade civil: A harmonia entre o desenvolvimento econômico, inovação e o direito à proteção de dados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6428, 5 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88305. Acesso em: 22 nov. 2024.

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