O Brasil exige a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar, em detalhes, a tragédia da covid-19 que matou centena de milhares de brasileiros.
Os erros do governos federal, estadual e municipais precisam ser decifrados.
Para não abrir tal investigação, a situação alega que os trabalhos de uma CPI poderiam atrapalhar o combate ao coronavírus. O argumento trazido não deixa de ser contraditório. Ora, esta CPI foi requerida exatamente para investigar a ineficiência desse mesmo combate. Esse argumento, se na voz de parlamentares, nega a essência da própria Casa e não contribui para a democracia. Independência entre os Poderes não significa falta de controle. Evidente que os negacionistas serão os primeiros a combater a instalação da CPI da Pandemia.
A instalação de uma CPI não é apenas um direito constitucional da minoria, da oposição ao governo. É um direito da Nação.
Não se concebe o presidente do Senado, recém empossado, com apoio da situação e de elementos da oposição, colocar “numa prateleira” tão urgente e importantíssima matéria.
Para muitos, Rodrigo Pacheco, como presidente do Senado, se omite. Viola o artigo 58, § 3º, da Constituição, que prescreve a instalação de CPI a partir da assinatura de 1/3 dos membros da casa, e desafia precedente do STF quando da CPI do Apagão Aéreo. O Brasil é epicentro mundial da pandemia por seus próprios méritos, mas o presidente do Senado parece não desejar CPI.
O Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o voto do ministro Eros Grau já entendeu que a criação de CPIs depende apenas do requerimento de um terço dos membros das casas legislativas e que esse dispositivo assegura um direito legítimo das minorias legislativas.
A decisão dos ministros do STF foi tomada durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.619, proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT), contra artigos do Regimento Interno da Assembleia Legislativa de São Paulo que condicionam a criação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à aprovação do respectivo requerimento em plenário.
Segundo o Congresso em Foco, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) publicou uma carta aberta em que diz que, embora uma moção de apelo por ajuda internacional esteja sendo elaborada pela Comissão de Relações Exteriores do Senado, é preciso estabelecer outros mecanismos de cobrança e fiscalização das ações do governo em relação à pandemia.
Ao contrário disso, em afronta à lógica e ao papel do Senado, como órgão legislativo e fiscalizador, o atual presidente do Senado se presta a ser órgão executivo. Participa de uma comissão multidisciplinar como órgão de coordenação dos governadores no combate a gravíssima doença, uma pandemia, que assola o país. Ora, esse papel é do executivo, não do legislativo, e deturpa a mensagem que a Constituição deu ao papel do Senado Federal.
O papel do Senado está inserido no artigo 52 da Constituição Federal, que, dentro de um sistema presidencialista, lhe dá funções exclusivas, não cabendo delas se extrapolar:
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;
II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade;
III - aprovar previamente, por voto secreto, após arguição pública, a escolha de:
a) magistrados, nos casos estabelecidos nesta Constituição;
b) Ministros do Tribunal de Contas da União indicados pelo Presidente da República;
c) Governador de Território;
d) presidente e diretores do Banco Central;
e) Procurador-Geral da República;
f) titulares de outros cargos que a lei determinar;
IV - aprovar previamente, por voto secreto, após argüição em sessão secreta, a escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente;
V - autorizar operações externas de natureza financeira, de interesse da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios;
VI - fixar, por proposta do Presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
VII - dispor sobre limites globais e condições para as operações de crédito externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de suas autarquias e demais entidades controladas pelo poder público federal;
VIII - dispor sobre limites e condições para a concessão de garantia da União em operações de crédito externo e interno;
IX - estabelecer limites globais e condições para o montante da dívida mobiliária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;
XI - aprovar, por maioria absoluta e por voto secreto, a exoneração, de ofício, do Procurador-Geral da República antes do término de seu mandato;
XII - elaborar seu regimento interno;
XIII - dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias;
XIV - eleger membros do Conselho da República, nos termos do art. 89, VII.
XV - avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios.
Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se à condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.
Observe-se que o atual presidente do Senado extrapola de sua missão constitucional, de legislar, fiscalizar, para atuar em funções executivas, que seriam próprias do Ministério da Saúde, da Casa Civil do Governo.
Ele abdica de abrir uma CPI. Parece torcer por um julgamento futuro. Mas, o julgamento há de ser presente e a história, no futuro, o reprovará.
O exercício da política, em prol da sociedade, exige coragem.
O episódio que ocorre nessa República sul-americana, que, salvo raros momentos de parlamentaismo (no Império, na República, de 1961 a 1963), adotou o presidencialismo, é ímpar por trazer um desvirtuamento entre o sistema jurídico real e os fatos que deixam apreensivos os estudiosos do direito.
Mas parece uma experiência, à brasileira, sem forma e cogitação constitucional, de um parlamentarismo.
O que é o parlamentarismo?
É um sistema de governo de caráter representativo, no qual a direção dos negócios públicos é atribuída a um gabinete ministerial formado no cerne do parlamento, a cujo voto de confiança ou desconfiança é submetido. O chefe de Estado entrega a pessoa de confiança do parlamento uma tarefa executiva, de governo.
Ora, no presidencialismo, o presidente governa com auxílio de ministros por ele nomeados e empossados. Esses ministros são órgãos do poder executivo e não de outro poder, como o legislativo.
O presidente da República se permite, por um decreto, partilhar funções executivas com o chefe do Congresso Nacional, o presidente do Senado, que deveria estar a abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre os fatos que deveria apurar, mas quer ajudar a resolver.
Mas, tudo isso é cogitação.
Cabe voltar à realidade e esperar um pronunciamento do STF sobre a matéria.
A matéria foi objeto do mandado de segurança, MS 37760, cujo relator é o ministro Roberto Barroso, onde se lê o seguinte despacho:
“1. Trata-se de mandado de segurança, com pedido liminar, impetrado contra omissão do Presidente do Senado Federal em instalar Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), cujo objeto seria “apurar as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados”. 2. Os impetrantes, Senadores da República que subscreveram o requerimento da CPI, aduzem que foram coletadas as assinaturas necessárias e que o documento teria sido protocolado em 15 de janeiro de 2021. Alegam que a instalação da Comissão constitui direito líquido e certo, nos termos do art. 58, § 3º, da Constituição e da jurisprudência do STF. Sustentam que, preenchidos os requisitos, é dever do Presidente da Casa Legislativa criar a CPI. Defendem ser a investigação um direito da minoria, não se submetendo a outros parâmetros além dos previstos no texto constitucional. Pedem, em caráter liminar, a adoção das providências para a instalação da CPI, nos termos do Requerimento nº SF/21139.59425-24, protocolado perante a Mesa Diretora do Senado em 15 de janeiro de 2021. 3. O pedido liminar será analisado após as informações, em razão da excepcionalidade da apreciação de medidas de urgência sem a oitiva da parte contrária. 4. Notifique-se a autoridade impetrada para prestar informações. Intime-se o órgão de representação judicial da respectiva pessoa jurídica para, querendo, ingressar no feito (Lei nº 12.016/2009, art. 7º, I e II). 5. Decorrido o prazo legal, com ou sem as informações, voltem os autos conclusos para apreciação do pedido liminar. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 11 de março de 2021. Ministro Luís Roberto Barroso Relator.”
Acompanhemos os fatos e suas consequências.