4. Implementação das Convenções Contra a Corrupção no Brasil: Procedimentos da Lei 12.846/13.
A Lei 12.846/13 é uma novidade que surgiu no ordenamento jurídico brasileiro para dar cumprimento aos dispositivos de responsabilização de pessoas jurídicas das convenções internacionais sobre a corrupção. Por meio dela, foi criada uma categoria de ilícito cível e administrativo, consubstanciado pela prática de ato lesivo contra a administração pública (seja nacional, seja estrangeira), imputável a tais entidades.[36] Desta forma, o Brasil obteve as ferramentas necessárias para que pudesse adotar um posicionamento mais proativo no regime internacional de combate à corrupção, regulando os atos de um dos maiores expoentes da transnacionalização da corrupção: as empresas multinacionais.[37]
Conforme tal lei, considera-se ato lesivo contra as administrações públicas nacional e estrangeiras as seguintes condutas: suborno de agente público (nacional e estrangeiro);[38] fraude e condutas indevidas em licitações e contratos;[39] bem como as condutas conexas de obstrução de justiça[40] e financiamento, custeio, patrocínio ou subvenção de ilícitos da Lei Anticorrupção.[41] Por um lado, a lei vai além das convenções internacionais, abarcando também a fraude em licitações e contratos e a obstrução de justiça – este último, previsto apenas na UNCAC.[42] Por outro, cabe mencionar que tal rol não inclui os crimes de suborno e desvio de propriedade privados, bem como ocultação e lavagem de dinheiro, todos previstos na UNCAC.[43] Não obstante, quanto a este último ponto, a única lacuna apontada em relatório de implementação da ONU foi a não responsabilização de pessoas jurídicas por lavagem de dinheiro.[44] Desta forma, verifica-se que a Lei 12.846/13 é bem sucedida na implementação das convenções internacionais contra a corrupção, principalmente quando se considera que a lavagem de dinheiro não se trata de um crime de corrupção per se, mas de um crime conexo.[45]
A partir deste marco legal, criaram-se as condições para a maior integração do sistema jurídico brasileiro à Rede Transnacional de Combate à Corrupção. O que se deve notar aqui é que, antes de sua promulgação, outros países já contavam com aparatos legais que permitiam o exercício de jurisdição sobre casos de suborno transnacionais – dentre os quais, os EUA com o FCPA (Foreign Corrupt Practices Act), e o Reino Unido com o UKBA (United Kingdom Bribery Act). Como consequência, alguns casos envolvendo o Brasil podiam sujeitar-se à jurisdição estrangeira, mas não à interna, por não haver procedimento correspondente. Este é o caso do esquema de corrupção envolvendo a empresa brasileira Universal Leaf Tabacos LTDA, subsidiária da americana Universal Corporation. Conforme acordo firmado com o Departamento de Justiça americano em 2010, o caso envolveu atos praticados tanto no Brasil como nos Estados Unidos em esquema de suborno de funcionários da empresa pública tailandesa Thailand Tobacco Monopoly ("TTM"). Houvesse sido a Lei Anticorrupção criada antes disso, o caso poderia se sujeitar à jurisdição brasileira.
Não obstante, a análise do papel da Lei 12.846/13 na Rede Transnacional de Combate à Corrupção depende também do estudo prático de sua aplicação. Isto porque uma das características dessa rede é justamente a sobreposição de jurisdições, de forma que é comum, especialmente quando se trata de responsabilização de empresas, que mais de um Estado possa julgar um mesmo caso. Em um tal sistema, conforme explicado no capítulo anterior, as autoridades de um dado país podem se mostrar mais ou menos atuantes, ou até mesmo permitirem-se atrofiar, relegando os casos transnacionais, ou aspectos de sua investigação, a autoridades estrangeiras. Desta forma, é necessário que se olhe não apenas para a lei, mas também para a atividade desempenhada pelas autoridades que a operam.
Neste sentido, Maira Rocha Machado estabelece um parâmetro de estudo para avaliar a performance do sistema de justiça em casos de corrupção, o qual, apesar de ter como escopo a responsabilização de pessoas físicas, pode servir à avaliação proposta no parágrafo anterior.[46] O que propõe a autora é a utilização de duas técnicas, em conjunto, para criar um quadro analítico do sistema de justiça: a discussão das informações e dados estatísticos institucionais; e o estudo de caso, para observar com detalhes alguns aspectos da atuação desse sistema. Considerando sua estrutura genérica de comparação de dados quantitativos e qualitativos, é certo que essa abordagem pode ser aplicada a qualquer âmbito da justiça, dentre os quais, os procedimentos da Lei Anticorrupção.
No entanto, é necessário que se faça algumas considerações sobre a avaliação do papel Lei 12.846/13 na Rede Transnacional de Combate à Corrupção. Primeiramente, no que tange à proatividade das autoridades brasileiras no cenário internacional – na linha do problema da credibilidade proposto por Hock –, este estudo se beneficiaria da avaliação quantitativa e qualitativa dos procedimentos relativos à atos lesivos à administração pública estrangeira. Além disso, quanto à atuação das instituições estrangeiras perante às locais – na linha da questão proposta por Davis de que isso poderia se dar complementar ou substitutivamente –, cabe avaliar quantitativamente a responsabilização de empresas estrangeiras por atos lesivos à administração pública nacional, e qualitativamente os procedimentos onde há cooperação com autoridades estrangeiras. Com todas reunidas, será possível alcançar um quadro analítico capaz de responder à questão proposta.
Todavia, algumas características da Lei 12.846/13 tornam difícil essa avaliação. Isto porque, primeiramente, trata-se de uma lei que confere atribuição para processar a uma multiplicidade de autoridades, tanto no âmbito judicial quanto administrativo. Além disso, conforme apontado até em relatório da ONU sobre a implementação da UNCAC, “o Brasil tem apenas dados estatísticos fragmentados sobre como aspectos anticorrupção são lidados”.[47] Desta forma, a análise do papel que a Lei Anticorrupção exerce na Rede Transgovernamental anticorrupção acaba tendo, em seu caminho, dois grandes desafios: a diversidade de âmbitos em que deverá ser feita a análise qualitativa, bem como o trabalho de compilação de dados em uma variedade de âmbitos diferentes.
4.a. Lei 12.846/13: Procedimentos e Entes com Atribuição Legal em casos Transnacionais
O sistema de responsabilização de pessoas jurídicas por atos de corrupção criado pela Lei 12.846/13 envolve duas vertentes processuais: a administrativa e a judicial, nenhuma das quais possui uma regra específica definidora de competência ou legitimidade ativa em casos transnacionais. Diversamente, a definição das autoridades que irão promover e/ou julgar esses processos se dá, em grande parte, em termos genéricos, mais ligados ao ente ou órgão público lesado que à questão internacional. Dessa forma, a compreensão de como a Lei lida com estes casos dependerá, primeiramente, da identificação dos casos que possam ser considerados transnacionais, para, em seguida, verificar o modo em que são cobertos no sistema jurídico brasileiro.
Para os propósitos desse trabalho, e no escopo da Lei 12.846/13, será considerada corrupção transnacional o ato lesivo praticado por uma empresa (nacional ou estrangeira) contra a administração pública de outro país (incluindo, neste conceito, as organizações internacionais públicas).[48] Isto porque a definição de delito criada por esta lei considera o critério subjetivo da nacionalidade tanto em relação ao ente lesado quanto à pessoa que pratica este ato.[49] Nesse sentido, é possível se identificar três situações diversas em que há cobertura pela jurisdição brasileira: ato de empresa brasileira contra a administração pública estrangeira; ato de empresa estrangeira contra a administração pública brasileira; ato de empresa estrangeira contra a administração pública de um terceiro país. Todavia, deve-se observar que os atos de empresas estrangeiras estão sujeitos ao critério da territorialidade, tendo em vista que se estabelece jurisdição extraterritorial apenas em relação a empresas brasileiras,[50] bem como que se consideram somente as empresas estrangeiras com “sede, filial ou representação no território brasileiro”.[51]
Cada uma dessas situações, por sua vez, pode sujeitar-se a ambos os procedimentos administrativo e judicial, o que insere mais um nível de complexidade na sistemática da Lei 12.846/13. Isto porque, primeiramente, esses procedimentos possuem diferentes regras definidoras de competência e/ou legitimidade ativa. Além disso, algumas dessas regras envolvem tratamento diverso a depender do ente lesado. Dessa forma, a atribuição para processar e julgar os casos transnacionais distribui-se em um extenso rol de órgãos e entidades.
No que tange ao procedimento administrativo duas são as possibilidades de atribuição de competência: quando o ato é praticado contra a administração pública nacional, ou quando o é contra a estrangeira. No primeiro caso, independentemente de o ato partir de empresas brasileiras ou estrangeiras, o processo irá se desenvolver no âmbito do órgão da administração direta ou entidade da administração indireta (autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas e sociedades de economia mista) que sofreu o dano.[52] Tratando-se de lesão a órgão ou ente do poder executivo federal, a Controladoria-Geral da União (CGU) possuirá competência concorrente.[53] Por outro lado, no segundo caso, isto é, de atos praticados contra a administração pública estrangeira, concentra-se na CGU a competência para julgá-los.[54]
Já no que tange ao procedimento judicial, a Lei 12.846/13 adota o rito da Ação Civil Pública, e confere legitimidade ativa ao Ministério Público e aos órgãos de Advocacia Pública, representação judicial ou equivalentes.[55]A competência para julgar esse procedimento, por sua vez, é determinada conforme a sistemática constitucional de definição de competência,[56] cabendo à justiça federal os temas que lhe são reservados pelo art. 109, e à estadual, as demais circunstâncias.[57] Frente a isso, serão de competência da justiça federal os casos em que haja atos lesivos à União e suas entidades autárquicas e empresas públicas;[58] e à justiça estadual, os atos lesivos aos demais entes da administração direta e indireta, a saber: Estados, Distrito Federal, Municípios, entes da administração indireta dos Estados e Sociedades de Economia Mista federais.[59] Tais regras aplicam-se tanto nos casos de ato de empresa nacional, quanto estrangeira, contra a administração pública nacional, haja visto que a Lei Anticorrupção não fez distinção neste tratamento.
Resta esclarecer, no entanto, como se dá a distribuição de competência dos procedimentos judiciais no caso de atos lesivos à administração pública estrangeira. Por um lado, o art. 109 da Constituição Federal atribui competência à justiça federal para julgar “II - as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País”, “III - as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional” e “V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”. Por outro lado, os estados estrangeiros ou organismos internacionais, diferentemente do que determina o inciso II, não seriam partes nas Ações Civis Públicas em questão. Além disso, os procedimentos aqui tratados não têm por fundamento tratado internacional diretamente, apesar de a lei aplicável vir para dar cumprimento a convenções internacionais. Por fim, apesar do caráter sancionatório da Lei 12.846/13, a legislação não caracteriza seus ilícitos como crime. Desta forma, não está claro se o processo judicial de responsabilização de atos lesivos à administração pública estrangeira se enquadra na competência reservada à justiça federal, ou resta à competência residual dos estados.
Por fim, a Lei 12.846/13 permite também a celebração de acordos de leniência, instrumento esse que ainda gera bastante discussão quanto à atribuição para promovê-lo. Por um lado, o histórico de instrumentalização deste mecanismo demonstra sua utilização tanto por autoridades legitimadas para o processo judicial,[60] quanto para o administrativo,[61] inclusive sobre uma mesma empresa e contexto.[62] Por outro lado, há jurisprudência, da 3ª turma do TRF-4, em que é apontado vício em acordo de leniência firmado pelo MPF com a empresa Odebrecht, por não englobar o órgão competente para firmá-lo, que seria a Controladoria-Geral da União.[63] Além disso, há a discussão suscitada a partir do recente Acordo de Cooperação Técnica firmado entre MPF, CGU, AGU, TCU e MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública), em que foi afirmada a competência de todos, dentre outros órgãos e entes, para figurar em acordo de leniência no âmbito do poder executivo federal, mas sob a condução da CGU e AGU.[64] Este acordo, por sua vez, veio a ser questionado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, em sua nota técnica nº 02/2020, onde argumentou que se trataria de uma “inconstitucional limitação do papel atribuído ao MPF na temática”.[65] Desta forma, verifica-se que a multiplicidade de autoridades com atribuição para promover e/ou julgar os procedimentos judiciais e administrativos é refletida no campo dos acordos de leniência, por mais que haja um esforço para melhor organizar essa sistemática.
O que se percebe, portanto, é que a responsabilização de empresas por atos de corrupção transnacionais tipificados pela Lei 12.846/13 se dá, virtualmente, em todos os âmbitos dos processos administrativos e judicial. Certamente, quando se considera apenas os atos lesivos à administração pública estrangeira, há uma maior limitação no âmbito administrativo, em que a competência é da CGU, apesar de não estar evidente se ela se concentra na esfera federal, quanto ao processo judicial. Por outro lado, a responsabilização de empresas estrangeiras por atos contra a administração pública nacional pode ocorrer por meio de processos administrativos e judiciais, ou acordos de leniência, em face dos diversos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, além das justiças estaduais e federal. Desta forma, o levantamento dos procedimentos da Lei 12.846/13 com pertinência transnacional deve considerar essa gama de instituições.
4.b. O Cadastro Nacional de Empresas Punidas e outros meios de Publicidade
A Lei Anticorrupção, além de disciplinar os procedimentos de responsabilização de pessoa jurídica por atos lesivos à administração pública, traz também dispositivos voltados à transparência desse sistema. Por meio desta Lei, foi criado o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP),[66] o qual possui o intuito de reunir e dar publicidade às sanções aplicadas com base nela. No entanto, alguns problemas em sua operacionalização põe em questão a utilidade em considerar os dados apresentados como representativos de todo o sistema. Como consequência, a quantificação e identificação dos procedimentos a serem analisados passa a depender de um esforço inicial intensivo de levantamento de dados.
Conforme verificado por Dielson Claudio dos Santos, em estudo realizado em 2017, muitas das sanções aplicadas por procedimentos da Lei Anticorrupção deixavam de ser registrados no CNEP. No referido trabalho, o autor realizou um levantamento de sanções aplicadas em processos administrativos de responsabilização entre janeiro de 29/01/2014 e 28/02/2017, havendo identificado 23 sanções passíveis de serem lançadas no CNEP.[67] Todavia, ao verificar este banco de dados, apenas 8 delas haviam sido registradas, de forma que 65,2% das sanções encontradas estavam com seus lançamentos pendentes. Torna-se evidente, portanto, que o CNEP, ao menos à época, não poderia servir à uma análise sistemática sobre a corrupção.
Atualmente, por sua vez, ainda subsistem problemas no registro de sanções neste sistema, apesar de ser evidente a evolução. Por um lado, não se pode deixar de observar que, menos de quatro anos depois da data final considerada no escopo da pesquisa de Dielson, os lançamentos no CNEP saltaram de 8 para 220, além de 14 acordos de leniência.[68] Por outro lado, mesmo quando se considera apenas o âmbito do poder executivo federal, verificam-se 93 sanções administrativas pela Lei 12.846/13 no Painel Correição em Dados da Controladoria-Geral da União[69] (dentre multas e publicações extraordinárias), enquanto no CNEP, constam apenas 53 sanções deste tipo aplicadas por entes e órgãos do poder executivo da união.[70] Desta forma, em que pese a evidente evolução, o CNEP ainda não se mostra uma ferramenta adequada para substanciar uma análise sistemática da aplicação da Lei 12.846/13.
Como alternativa, resta realizar o levantamento dos processos da Lei 12.846/13 diretamente nos entes e órgãos responsáveis por promovê-los, seja pela pesquisa em meios oficiais de publicidade, como os diários oficiais, seja pelos pedidos de informação, nos termos da Lei de Acesso à Informação.[71]Todavia, o problema, neste caso, é a multiplicidade de entes competentes para julgá-los, que incluem, essencialmente, toda a administração direta e indireta, bem como as esferas estadual e federal do poder judiciário. Mesmo quando se consideram apenas os processos administrativos no âmbito do Poder Executivo, o Brasil conta, além da União, do Distrito Federal e dos Estados, com 5.570 municípios.[72] Desta forma, qualquer análise geral da aplicação da Lei 12.846/13 no ordenamento brasileiro fica prejudicada pela falta de unidade nos dados.
Por outro lado, a despeito desse cenário de fragmentariedade, ainda há aspectos da aplicação da Lei Anticorrupção que permitem uma maior uniformidade na apresentação dos dados. Primeiramente, em relação ao processo administrativo por ato lesivo à administração pública estrangeira, a competência para promovê-lo é concentrada na Controladoria-Geral da União. Além disso, quanto aos processos judiciais, estes se concentram nas esferas federal e estadual do poder judiciário, de forma que é possível consultá-los nos respectivos diários de justiça dos respectivos tribunais. Desta forma, a dificuldade resta no levantamento de informações sobre processos administrativos de responsabilização por atos contra a administração pública nacional.