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Lei do abate

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Agenda 13/06/2021 às 14:30

6. O TIRO DE DESTRUIÇÃO DE AERONAVE HOSTIL IMPLICA PENA DE MORTE?

O objetivo do presente trabalho é tecer algumas considerações sobre se o tiro de destruição constitui pena morte dos tripulantes e passageiros da aeronave identificada como hostil.

Para quem defende tratar-se de pena de morte em caso não previsto na Constituição Federal, é de se questionar o que é pena?

Pena é espécie de sanção penal; “sua imposição depende do devido processo legal, através do qual se constata a autoria e a materialidade de um comportamento típico, antijurídico e culpável, não atingido por causa extintiva de punibilidade”[24].

A “lei do abate” não é pena, é segurança pública; não é processo penal, é dever do Estado. O piloto militar estará agindo em estrito cumprimento do dever legal, como executor da ordem. Fazendo-se um paralelo com a realidade das ruas, é possível imaginar que um policial tem mais liberdade de agir do que o piloto militar. Assim como um policial (que não está em um processo penal) pode disparar contra alguém que esteja praticando um crime, a fim de fazê-lo cessar, o piloto também age, e de forma menos lesiva, pela forma de abordagem e tipo de munição. Portanto, não se trata de pena a ocorrer no bojo de um processo penal, mas de garantia constitucional do dever de o Estado prestar o serviço de segurança pública. Do mesmo modo, não há que se falar em ofensa ao princípio do juiz natural, presunção de inocência, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, todos institutos aplicáveis aos processos judiciais.

Outro aspecto a ser abordado é a impropriedade semântica adotada pela imprensa ao noticiar casos regulados pelo Decreto n. 5.144/04 como “lei do abate”, pois não se trata de abate, mas de tentativa de colocar em solo uma aeronave hostil.

O próprio legislador não foi feliz ao dispor que a quarta fase de abordagem da aeronave hostil é a “medida de destruição”. O adequado seria medida de detenção. Ademais, a expressão “medida de destruição” também é contraditória, pois logo em seguida o legislador afirma que a finalidade é provocar danos, e não destruir.

Apesar disso, o desconhecimento da lei não escusa a ninguém o seu não cumprimento[25]. Assim, o § 2º do art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica previu que a aeronave classificada como hostil ficará sujeita à medida de destruição. Portanto, a partir da introdução da referida norma no ordenamento jurídico, passa a ser de conhecimento de todos a possibilidade de destruição.

No mais, a regra se dirige a um grupo muito específico de cidadãos, os pilotos de aeronaves. Se ao cidadão comum não é dado alegar o desconhecimento da lei, em menor grau é aceitável que profissionais técnicos e especializados aleguem o desconhecimento não só da lei, mas de todos os regulamentos de suas profissões.

O Comando da Aeronáutica, pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA), estabeleceu que o teor do Decreto deverá ser divulgado antes de sua vigência, por meio da Publicação de Informação Aeronáutica (AIPBrasil), destinada aos aeronavegantes e de conhecimento obrigatório para o exercício da atividade no espaço aéreo brasileiro[26]. Garante-se, assim, o conhecimento obrigatório aos pilotos civis, que efetivamente podem sofrer as consequências da norma.

Importante apresentar dados de como se comporta a Força Aérea Brasileira desde a regulamentação da lei. Ao ser instada a agir, a FAB acumula experiências satisfatórias, que estão longe de ofender preceitos constitucionais.

Quando da análise das fases do procedimento, muito se aclarou sobre como as ações são realizadas. Na averiguação, os sinais emitidos para o piloto são de conhecimento obrigatório. Nas medidas de persuasão, se a aeronave não for pressurizada (grande maioria dos casos) o piloto ouvirá o barulho alto dos disparos. A aeronave militar disparará por cima da asa, para que seja vista a munição traçante, e fará mudanças de posição também com o intuito de ser percebida.

Na quarta fase, como dito anteriormente, não se trata de destruição, mas de detenção, visto que a munição empregada não tem essa capacidade. Ademais, o piloto não pode mirar no outro piloto, no cockpit, ou na fuselagem; os disparos visam a asa, para inibir o voo; e são efetuadas duas rajadas de um segundo, sem o disparo de toda a munição de uma só vez: o objetivo é causar danos, não destruir. Por fim, todo o diálogo é gravado, o que permite a eventual comprovação de responsabilidade.

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Assim, não é possível se chegar à tese de pena de morte, pois em nenhum caso em que se autorizou no Brasil o tiro de detenção houve morte de qualquer tripulante. Pelo contrário; já houve caso em que o piloto conseguiu pousar e a tripulação fugiu da equipe da Polícia Federal que aguardava para fazer a abordagem em solo.

Antes da regulamentação da lei, diversos são os depoimentos de pilotos da FAB que sofriam com deboches, gestos obscenos dos pilotos civis, justamente por estes saberem que os caças não poderiam fazer nada mais do que os acompanhar. Hoje, porém, os pilotos da aeronáutica relatam a queda do número de aeronaves hostis, demonstrando sua ação inibidora.

Portanto, dentro do estrito cumprimento das fases procedimentais seguidas até o momento, não cabe  afirmar que a medida de detenção é pena de morte de tripulantes e passageiros de aeronaves hostis.


7. A REALIDADE BRASILEIRA E CASOS QUE NÃO OCORRERIAM NO BRASIL

Na prática houve redução do tráfego de aeronaves em voos desconhecidos: 32,3% (de 3585 para 251) nos primeiros trinta dias da aplicação da Lei do Abate ou do Tiro de Destruição, com fundamento nos dados da Comdabra entre os dias 16 de janeiro e 16 de outubro e de 17 de outubro a 16 de novembro de 2004[27].

Alguns casos noticiados sobre ocorrência de tiros de detenção demonstram sua necessidade e finalidade, como o ocorrido em 29 de outubro de 2009: um monomotor transportava 150 quilos de cocaína e foi interceptado por caças da FAB e forçado a pousar em uma fazenda em Cristalina (GO)[28].

E em 25 de abril de 2018, um bimotor sobrevoava Corumbá, no Mato Grosso do Sul, vindo da Bolívia; apresentava suspeitas de transporte de drogas e estava sem plano de voo e com matrícula falsa. Apesar do tiro de detenção, o piloto pousou no Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense e fugiu.

Todos os casos ocorridos até hoje não deixaram mortos, seja de tripulantes, seja de terceiros inocentes, o que demonstra a adequação da legislação brasileira à necessidade do país no combate ao tráfico de drogas, sem infringir direitos fundamentais.

Assim, convém justificar por que dois célebres casos internacionais, largamente apontados como fundamentos para a não adoção do tiro de detenção, não ocorreriam no Brasil.

Destaca-se o incidente que provocou a morte de 269 passageiros do Boeing 747 da Korean Airlines, abatido pela antiga União Soviética em 1º de setembro de 1983, por sobrevoar indevidamente o território daquele país. O voo vinha de Nova Iorque, EUA, para Seul, Coreia do Sul; contudo, como à época não existiam instrumentos de GPS[29], a aeronave estava a mais de 400 km de onde deveria estar, sem que a tripulação tivesse conhecimento desse erro.

Em um primeiro momento, quatro caças soviéticos foram enviados para interceptar o avião coreano, mas não o encontraram, porque o radar de solo havia sido danificado dias antes por uma tempestade, e acabaram sem combustível antes de o interceptar.

Tempos depois, outros três caças alcançaram o avião civil. Generais soviéticos discutiam se o abateriam ou não, pois não havia certeza de se tratar de uma aeronave inimiga. Os pilotos militares informaram que o avião era de passageiros, e mesmo assim receberam a ordem de abate. Os tiros atingiram a fuselagem, provocando a despressurização da aeronave e danificando os controles de voo e três dos quatro sistemas hidráulicos, que ficavam na cauda.

O erro de navegação coreano, a problemática cadeia de comando soviética e as tensões da guerra fria foram as causas do incidente. Deve-se levar em conta a tecnologia existente à época e o quadro geopolítico da guerra fria, pois o avião provinha dos EUA e sobrevoava a URSS. Já no Brasil, como apontado anteriormente neste estudo, somente suspeita de tráfico de drogas, com ausência de plano aprovado ou rota suspeita poderiam iniciar alguma ação das autoridades da Força Aérea Brasileira.

Como descrito no relato, não houve qualquer tentativa de averiguação com o piloto via rádio, intervenção para mudar a rota ou persuasão com disparos com munição traçante.

O tiro, esse sim, foi de destruição, pois disparado na fuselagem e em instrumentos essenciais para o prosseguimento do voo, exatamente o oposto ao determinado na legislação brasileira.

No caso descrito os pilotos puderam visualizar que se tratava de um avião de passageiros, mas obedeceram a ordens superiores de atirar.

Se o mesmo fato ocorresse no Brasil, os militares poderiam negar-se a praticar ato manifestamente criminoso (art. 38, § 2º, CPM); caso contrário, responderiam perante a Justiça Militar da União, assim como os comandantes que ordenaram a ação - o que, por óbvio, não ocorreu na União Soviética.

Caso mais recente ocorreu em 20 de abril de 2001. Um hidroavião que levava um casal de missionários americanos da cidade peruana de Islândia com destino a Iquitos foi abatido por engano, levando à morte Verônica Bowers, de 35 anos, e sua filha Charity, um bebê de 7 meses de idade. Noticiou-se que um avião da CIA e um oficial da força área peruana discutiam se a aeronave estaria sendo usada para o tráfico de drogas.

Antes do disparo contra o avião que transportava os missionários, houve uma advertência: "aeronave não identificada, você foi interceptada por um jato da Força Aérea peruana por não ter um plano de voo autorizado. Dirija-se para a base aérea mais próxima; se não obedecer, vamos prosseguir e derrubar você.” O avião dos missionários não respondeu ao alerta. O oficial peruano pediu autorização para abater, enquanto os tripulantes do avião americano de vigilância gritava que "Esse homem não se encaixa no perfil", "Diga a ele que pare. Não, não atire! Diga para ele parar”. O avião militar circundou o civil uma vez e então começou a atirar.[30]

O piloto afirmou que “viu o avião militar peruano apenas quando estacionou ao seu lado. Ele disse que nunca notou o avião de vigilância que avistou sua própria aeronave pela primeira vez.”.[31]

Ainda que haja discussão se havia plano de voo arquivado ou não – os familiares das vítimas apontam que sim, a Força Aérea peruana afirma que não –, mais uma vez verifica-se que não se passou por todos os níveis de interceptação de aeronave como determina a legislação brasileira.

Há informação inclusive de que a aeronave não respondeu ao aviso de interceptação e abate porque houve mistura de sinais e frequência de rádio equivocada; portanto, o caça interceptador não chegou a se comunicar com o piloto interceptado, nem a mostrar a frequência em que poderiam conversar.

O piloto informou ter visto a seu lado o caça interceptador somente quando este efetuou os disparos contra a fuselagem, acabando por acertar também as pernas do piloto.

Mais uma vez, não se seguiram as fases de interceptação, persuasão e detenção, passando-se diretamente de uma averiguação falha para uma efetiva destruição.

Desses dois casos emblemáticos, e muito divulgados, deve-se observar que nenhum ocorreu no Brasil, e neles as condutas ficaram distantes daquelas determinadas pela legislação brasileira, ora em comento. O primeiro caso citado implica o agravante da época em que ocorreu - marcada pela falta de tecnologia e pelas tensões da guerra fria. O segundo seguiu padrões completamente diversos do estabelecido para a ação da Força Aérea Brasileira.

Por certo que não bastaria a consistência de nossa legislação se, na prática, os pilotos da FAB não fossem altamente treinados para assim agir em situações críticas. Até o momento não há notícias de incidente ocorrido no Brasil.

Sobre a autora
Cristiane Pereira Machado

Assessora Jurídica de Procurador do Ministério Público do Estado do Paraná. Especialista em Direito pela Escola Superior do Ministério Público do Estado do Paraná - EMAP. Especialista em Direito penal e processual penal pela academia Brasileira de Direito Constitucional. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Cristiane Pereira. Lei do abate. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6556, 13 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91038. Acesso em: 27 dez. 2024.

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